Seria possível modificar a abordagem do controle da dor em crianças?

“Não se pode deixar criança sozinha um segundo”. Quem nunca ouviu essa frase? Os médicos do Instituto Dr. José Frota (IJF), hospital referência em traumatologia do Estado, confirmam que é a mais pura verdade. 

A maioria das crianças chega à emergência de traumatologia por fraturas ósseas e necessitam, por vezes, de intervenção cirúrgica para corrigi-las; mas será que o problema é somente o trauma em si? 

A resposta é NÃO. 

Existem alguns complicadores no tratamento; dentre eles, a medicação usada na analgesia de crianças.

Aí chegamos ao ponto: as medicações mais utilizadas para controle da dor, nesses casos, são as drogas opióides que, como o próprio nome já sugere, são derivadas do ópio, uma espécie de suco extraído de uma planta conhecida como Papoula do Oriente. A droga age deprimindo o sistema nervoso central e produzindo sensação de ausência de dor. 

Então, essas substâncias seriam a melhor opção para a analgesia em crianças

Temos razões para acreditar que não.

Percebeu-se, com o tempo, que o uso crônico dessas medicações pode gerar uma série de inconvenientes, como dificuldades respiratórias, dependência física e psíquica, além de aumentar a predisposição ao uso de drogas ilícitas.

Para ilustrar melhor a gravidade desse cenário, em 2017, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou como emergência de saúde pública nacional o uso indiscriminado dos opióides pela população. O estudo que pautou tal decisão afirmou que cerca de 150 óbitos, por dia, nos Estados Unidos estavam relacionados ao abuso dessas substâncias. Além disso, estima-se que até 75% dos usuários de heroína fizeram a transição para o uso de drogas ilícitas após prescrição de opióides regulares. 

Diante dessas informações, será que o risco vale o benefício da utilização desse tipo de medicação?

Como funciona a analgesia

Para entender um pouco melhor como funciona a analgesia, basta compreender que o corpo humano possui diversos receptores, que funcionam como captadores de mensagem de dor para o sistema nervoso. Existem receptores opióides (onde agem as medicações derivadas do ópio) e os não opióides (onde agem as demais medicações). Dessa forma, embora as medicações opióides sejam as mais utilizadas, existe um caminho alternativo na busca pelo bem-estar do paciente.

Some-se a essa problemática já exposta o atual panorama de saúde mundial gerada pela pandemia advinda do vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19. Com a quantidade aumentada exponencialmente de pacientes necessitando de intubação, o consumo de opióides em ambiente hospitalar aumentou de maneira inimaginável. Como consequência, vários centros espalhados pelo mundo enfrentaram uma crise de desabastecimento de medicações analgésicas, principalmente as derivadas do ópio.

A ausência de alternativas bem estabelecidas evidenciou um cenário de dependência preocupante das medicações opióides, em especial do fentanil, para analgesia de pacientes internados em unidades de terapia intensiva. Nesse contexto, fica evidente a necessidade de estudos que utilizem drogas alternativas para casos específicos. 

A boa notícia é que ensaios recentes demonstram que a cetamina - uma droga analgésica que age em um receptor não opióide - tem se mostrado uma opção viável e segura, com poucos efeitos colaterais, se utilizada em doses baixas. 
 
Informo que já existem vários trabalhos abordando essa temática em pacientes adultos, entretanto raros estudos têm sido dedicados à população pediátrica. O que é preocupante!

Então, como forma de ajudar a preencher essa lacuna, está sendo desenvolvido no IJF um ensaio comparando o efeito da cetamina (medicação não opióide) ao fentanil (medicação opióide) na analgesia de crianças com idade entre 3 e 16 anos submetidas a cirurgias de fratura de membro superior.

O objetivo é simples, e trata-se de proporcionar segurança  pós operatória maior aos pacientes, em especial aos pacientes pediátricos, que ainda tem tanto pela frente. Afinal, não se pode deixar criança sozinha nenhum segundo, nem mesmo depois da sua alta da sala cirúrgica.

Dr. Felipe Oliveira Marques, médico anestesiologista e aluno do Programa de Mestrado em Ciências Médicas da Universidade de Fortaleza.