Entrevista Nota 10: Valdester Cavalcante e a trajetória do transplante cardíaco no Ceará

seg, 25 setembro 2023 12:00

Entrevista Nota 10: Valdester Cavalcante e a trajetória do transplante cardíaco no Ceará

Doutor em Biotecnologia, o cirurgião cardiovascular do Hospital de Messejana fala sobre o percurso dos transplantes cardíacos no estado, os avanços da medicina e a importância da campanha Doe de Coração


Valdester esteve na Unifor para a abertura da exposição que apresenta as fotografias do seu livro “Transplante do Coração: Um Caminho para a Vida” (Foto: Guilherme Daniel)
Valdester esteve na Unifor para a abertura da exposição que apresenta as fotografias do seu livro “Transplante do Coração: Um Caminho para a Vida” (Foto: Guilherme Daniel)

No próximo dia 28 de setembro, às 18h30, acontecerá o “Simpósio Transplante do Coração: Um Caminho para a Vida”, no Auditório da Biblioteca da Universidade de Fortaleza. O evento faz parte da programação da campanha Doe de Coração 2023, promovida pela Fundação Edson Queiroz, e terá participação de cirurgiões do Hospital de Messejana (HM) — referência em transplantes cardíacos no Brasil —, como o Dr. Valdester Cavalcante Pinto Júnior.

A iniciativa ainda conta com a parceria do Instituto do Coração da Criança e do Adolescente (Incor Criança), do qual Valdester é fundador e ex-presidente. O profissional destaca como essencial a atuação de alunos do Incor Criança e de discentes das ligas acadêmicas de saúde da Unifor, não só no Simpósio, mas também nas ações de conscientização na campanha Doe de Coração deste ano.

“Os alunos [da Unifor] são criados dentro dessa cultura, já têm essa sensibilização, portanto, foram até nós para trazer esse trabalho para cá. E essa é uma contribuição e um agradecimento a eles e o reconhecimento da nossa sociedade à Escola de Pediatria do Incor e à Universidade, que abraçou essa demanda dos estudantes”, ressalta.

Chefe da Cirurgia Cardiovascular Pediátrica do HM, o médico esteve na última semana no Centro de Convivência da Unifor para a abertura de uma exposição com imagens de transplantes e transplantados feitas pelo fotógrafo João Palmeiro. As fotografias fazem parte do livro “Transplante do Coração: Um Caminho para a Vida”.

Escrita por Valdester, João David de Souza Neto, Juan Alberto Cosquillo Mejia e Kátia Castello Branco, a obra de 2017 foi editada em celebração aos primeiros transplantes cardíacos realizados no Brasil e no Ceará. Alguns exemplares serão distribuídos durante aos participantes que comparecem ao Simpósio do dia 28.

Médico pela Universidade Federal de Alagoas, Valdester fez residência em Cirurgia Cardiovascular no Hospital do Coração de São Paulo e tem especialização na mesma área pela Associação Médica Brasileira e pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCC) — a qual fundou e foi o primeiro presidente do Departamento de Cirurgia Cardiovascular Pediátrica.

Ele é mestre em Avaliação de Políticas pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Doutor em Biotecnologia pelo programa Renorbio da Universidade Estadual do Ceará (UECE), além de possuir MBA em Executivo em Saúde pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O médico ainda é sócio-fundador da World Society for Pediatric and Congenital Heart Surgery e da Sociedade Brasileira de Cardiologia Pediátrica.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, Valdester fala sobre o percurso dos transplantes cardíacos no estado, os avanços da medicina e a importância da campanha Doe de Coração.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Você realizou o primeiro transplante em neonato no Norte e Nordeste (1998) e implantou o primeiro coração artificial do Nordeste (2008), além de diversas outras intervenções e projetos no mesmo âmbito. Como foi participar de momentos tão importantes e decisivos para a trajetória dos transplantes de órgãos, especialmente cardíacos, em nossa região? Qual a importância desses marcos para a reputação do Ceará na área?

Valdester Cavalcante — Quando estamos naquele momento de trabalho, não dimensionamos a importância do que está sendo feito, e que, de algum modo, você está construindo uma história relacionada à atenção à saúde do seu estado, da sua cidade. Fazemos porque tem que ser feito. 

Eu e o Juan Alberto — ele na parte de cirurgia do transplante cardíaco de adulto, eu na parte do transplante pediátrico — tivemos nossa formação em São Paulo, onde isso era uma prática. Quando chegamos [em Fortaleza] da residência, decidimos continuar um programa de transplante que havia sido iniciado por outro médico e tinha parado. Reformulamos esse programa, o que levou dois anos de formatação e estruturação. Neste novo programa, fizemos os primeiros transplantes do nosso grupo [Cirucardio] no Hospital Antônio Prudente, depois fizemos o primeiro transplante pediátrico do Nordeste e do Ceará. Esse programa de transplante depois foi transferido para o Hospital de Messejana, onde ele perdura até hoje e nós fizemos mais de 500 transplantes ao longo dessas duas décadas.

Quando olhamos para trás e vemos esse percurso, nos sentimos bem por ter contribuído e continuar contribuindo com essa área do transplante cardíaco, mas é importante ressaltar o grande envolvimento institucional — das instituições e de uma gama muito grande de profissionais envolvidos nas mais diversas áreas do transplante adulto e pediátrico. Isso não é um programa feito por um cirurgião ou por um cardiologista, isso é fruto do trabalho e dedicação de muita gente. Essa é a sensação de ter contribuído com o início de um programa que salva vidas e que é reconhecido nacional e internacionalmente.

Entrevista Nota 10 — O Hospital de Messejana, conhecido popularmente como Hospital do Coração, é referência em transplantes cardíacos pediátricos e pulmonares, sendo o segundo maior hospital transplantador do Brasil. Como o trabalho de diversos profissionais, especialmente cardiologistas, vem consolidando essa posição nacional da instituição?

Valdester Cavalcante — É uma política de saúde pública. Isso nasce com a política nacional de transplante de órgãos e que se expande Brasil afora. Em um dado momento, o governador, o secretário de saúde, o diretor da instituição decidem que vão apoiar esse tipo de iniciativa. Não basta ter uma ideia e querer fazer primeiro, o correto e o que vale é querer evoluir naquele tipo de trabalho, porque as dificuldades são enormes, [como] a falta de insumo, a falta de gente, a falta. Vivemos hoje na saúde pública com faltas, mas isso não pode diminuir a empolgação e o comprometimento com o programa de transplante.

O Hospital de Messejana tem seu papel relevante nas mais variadas diretorias que lá passaram ao longo desse tempo. Mas vale mesmo ressaltar a determinação do grupo de profissionais que estão na ponta — enfermeiros, médicos, cardiologistas e cirurgiões, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, dentistas, assistentes sociais —, essas pessoas sentem e vivem o drama daqueles que precisam ser transplantados, da fila de espera, da captação, da implantação, da coisa toda. A instituição tem o seu valor e recebe em troca uma dedicação muito grande do corpo clínico do hospital, que ao longo desses anos todos tem dedicado boa parte da sua vida a um programa reconhecido nacional e internacionalmente.

Então, o Estado faz o seu papel, o hospital faz o seu papel e nós fazemos o nosso. Só temos a agradecer o apoio que temos da Secretaria de Saúde e da direção do Hospital por tocar um projeto que não é barato, é um investimento alto. E o transplante não é tão caro. O programa de transplante carrega consigo melhorias em várias áreas do hospital: na área de infectologia, na área de infraestrutura, na assistência ventricular, [entre outras]. Ele é o mobilizador institucional de melhorias. Nessa perspectiva, eu acho que o ganho institucional é muito grande com um programa desse tipo.

Entrevista Nota 10 — No início dos transplantes aqui no Ceará, podemos ver em seu livro “Transplante do Coração – um caminho para a vida” (2017) que o Hospital Antônio Prudente foi o lugar onde nasceram essas iniciativas e aconteceram as primeiras intervenções do tipo no estado. Como surgiu esse movimento em prol dos transplantes por lá?

Valdester Cavalcante — Eu não posso saber o que passou na cabeça do Cândido Pinheiro [fundador do Hospital Antônio Prudente], mas precisamos ter um gesto de gratidão com a instituição e seu proprietário, que vislumbrou naquele período que poderia usufruir do conhecimento do grupo de profissionais que chegava na cidade. Ali foi o início de muitos projetos, não só do transplante, mas de várias áreas. Foi lá que nós operamos as primeiras crianças complexas, neonatos, na cidade. Mas, pontualmente, na questão do transplante, ele deu início lá com outro cirurgião e depois nós assumimos.

Só que um programa dessa ordem precisa estar em uma instituição pública. São investimentos perenes e continuados, onde o olhar é social. Dentro de uma instituição privada, muitas vezes esse olhar se perde. Mas isso não tira o mérito, e precisamos realmente agradecer à instituição por ter compreendido, visto e apoiado o início do programa de transplante cardíaco no Ceará.

Entrevista Nota 10 — Desde que a ciência dos transplantes começou, não só aqui no Brasil, mas no mundo como um todo, já presenciamos muitos avanços na área. O que podemos citar de evoluções mais relevantes nas últimas décadas?

Valdester Cavalcante — Do início do transplante para cá, a técnica operatória mudou. Hoje o padrão de técnica é outro, diferente daquilo que, inclusive, aprendemos na residência médica.

O manejo do doente crítico mudou. O paciente que está ali deitado para receber um coração é um paciente extremamente crítico, sensível a oscilações de pressão no território pulmonar. Cada vez mais se opera o doente crítico com resultados melhores, e isso só é possível porque o manejo intraoperatório de monitorização e de anestesia melhorou muito. Para fazer um transplante, você precisa de um coração/pulmão artificial. Isso também melhorou muito nos últimos tempos.

Do ponto de vista especificamente do transplante, quando você transplanta existe a rejeição ou infecção — esse binômio entre infecção e rejeição precisa ser muito cuidado. A melhoria no manejo de drogas para o controle ou a imunomodulação para receber um órgão, ao longo desses mais de 50 anos, é que mudou a história natural do transplante. Hoje temos modos de trabalhar essa imunomodulação, nem com tanta droga que o paciente fique vulnerável à infecção, nem com pouca droga. Os medicamentos avançaram e permitem, hoje, uma vida com qualidade.

Uma outra situação que muda muito é o suporte desse paciente crítico até a cirurgia. Tem paciente, como você vê no meu livro, que ele está em uma situação tão crítica que temos que suportar, do ponto de vista cardiocirculatório, com equipamentos como o coração artificial até ele chegar em uma condição de transplante razoável. E [tem] alguns doentes tão críticos que dizemos “nós vamos transplantar, mas ele provavelmente no pós-operatório vai demandar ajuda”. Nessa hora, colocamos de novo o dispositivo enquanto o coração se recupera.

Isso permite que busquemos corações “marginais”, no sentido de que ele não é um coração “ótimo”. Nós vamos buscar corações a distância, com tempo de isquemia entre pinçamento e irrigação do coração no paciente acima de três a quatro horas. Isso só é possível porque tem substâncias que preservam o coração, e se esse coração mesmo assim ficar atordoado, eu tenho como botar máquinas que suportam 12, 48, 72 horas até recuperar.

Então, o avanço ao longo de décadas foi de: imunossupressão, que ela é mais adequada; melhoria da técnica; melhoria do manejo da anestesia e do pós-operatório. Tudo isso fez com que pudéssemos transplantar mais, aproveitar mais corações. E vem mais coisa por aí, isso não vai parar nem tão cedo.

Entrevista Nota 10 — E sobre isso que está por vir, o que você acredita ser o principal foco de estudo hoje? O que mais se busca?

Valdester Cavalcante — Primeiro, é captar mais. A captação pode melhorar muito sem precisar de outros mecanismos, só de conscientização da população. Isso já se faz. É o que nós estamos fazendo aqui [na Doe de Coração]. É [necessário] conscientizar a população no sentido de ser doador, de aceitar a doação — o que não é fácil pelo momento que se vive naquele momento. Esse é o primeiro ponto.

Já podemos usar um coração que parou dentro de um prazo: retiramos ele, colocamos a assistência, fazemos a proteção e transportamos. Antigamente, o coração precisava estar batendo. Já tem programas — nós não fazemos isso — de usar, inclusive, o coração pós-parada. Isso tudo [precisa ser] muito bem programado, porque se ele ficar muito tempo parado, minutos a mais, perdemos o coração.

A outra questão é o uso dessas máquinas de preservação. Eu tenho aí três, quatro horas de segurança entre captar um coração — vamos supor, em Sobral ou no Cariri —, trazê-lo para Fortaleza e implantá-lo. Batemos sempre “na trave” de três a quatro horas de implante dependendo da complexidade da criança que eu estou transplantando (muitas vezes é muito mais complexo um transplante de criança do que um transplante de adulto). Hoje existem máquinas que você retira o coração, acopla essa máquina e ele fica sendo perfundido com sangue e batendo. Ou seja, há um tempo maior de isquemia, portanto, pode-se buscar corações a maiores distâncias. Isso já é tecnologia estabelecida, mas nós não temos isso aqui [no Ceará].

A outra situação é de xenoenxerto ou uso de corações de animais para isso. Há uma busca incessante para que haja essa modulação na imunossupressão, que seja capaz disso. E outro ponto fundamental é a construção de corações artificiais, que já se tem no mercado mundial, mas há muito pouco aqui no Brasil. Fizemos alguns implantes aqui de corações artificiais de gerações anteriores, mas tem corações que o paciente pode viver cerca de um ano e pouco. A busca de um coração artificial é para não precisar da procura de um paciente de óbito, do doador morto. Isso não é recente, mas precisa-se mudar ligas metálicas para que seja menos trombogênico, e isso é um trabalho continuado.

Podemos ter essa perspectiva no futuro de ter equipamentos que possam substituir o coração por um tempo maior, sem provocar rejeição, mas ele certamente trará outros complicadores. É isso que se busca resolver.

Entrevista Nota 10 —  De acordo com a Central Nacional de Transplantes (CNT), são 386 pessoas aguardando na fila de espera para receber um transplante de coração no Brasil. Mesmo com os 244 procedimentos realizados no primeiro semestre de 2023 — um aumento de 16% em relação ao mesmo período do ano anterior —, há ainda diversas barreiras que atrapalham o ciclo da doação de órgãos para salvarmos mais vidas. Como podemos aumentar esses números?

Valdester Cavalcante — Acho que, hoje, é pelo exemplo. A Fundação Edson Queiroz já faz esse trabalho desde 2003 com a Doe de Coração. Temos aqui 20 anos de campanha ininterrupta de conscientização da população cearense acerca da importância da doação. Não tem outra forma que não seja educar e conscientizar a população da importância desse gesto. Então, não tem outro jeito.

Uma outra opção poderia ser educacional, onde houvesse dentro das escolas esse tipo de discussão. O cidadão seria formado a partir desses tipos de valores: os de doar, de cidadania e outros tantos. Então, para aumentar a doação, não existe outra alternativa.

O que eu falei anteriormente é sobre como aproveitamos mais os corações que muitas vezes descartamos. Hoje temos uma taxa de descarte de corações que é desprezível. A família doa, mas, para poder transplantar, fazemos um ecocardiograma para ver função, e aí percebemos que já tem disfunção porque demorou um tanto a doação. É preciso agilizar mais o processo de doação para que haja um coração “melhor”. Essa tecnologia que falei é incorporada para que esses corações, ainda que com disfunção, possam ser aproveitados. Isso também aumentaria o número de transplantes.

E por fim, a conscientização permanente. O que eu pontuo aqui é que não seja feita uma campanha só no mês de setembro, mas que possamos estender esse tipo de movimento de formas diferentes. Precisamos sentar, conversar e cuidar disso com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) sobre as mais variadas especialidades, que cuidam do rim, do fígado, da córnea, para que isso seja um trabalho continuado.

O Ceará já tem números interessantes de captação de órgãos. Ele é expressivamente melhor do que outras regiões e estados brasileiros, mas ainda é insuficiente. A Espanha pode ser citada como uma referência, onde a taxa entre doação e aproveitamento é muito interessante e muito boa. Mas acho que, para isso, é preciso de exemplos, e a Fundação Edson Queiroz dá esse exemplo já há 20 anos e precisa ser ampliado. Essa ressonância precisa ser dada para os outros meses, e aí é com os órgãos públicos.

O exemplo da Fundação está dado, tem sua repercussão, é importante e reconhecido pela sociedade cearense. Cabe a nós, profissionais, estarmos à disposição da Fundação. E é isso que estamos fazendo esse ano por meio dos alunos da Escola de Pediatria do Incor Criança. Eles motivaram esse tipo de situação e trouxeram essa discussão para dentro da Unifor — de onde partiu a ideia, inclusive. Vamos mobilizar e fazer um pouco diferente esse ano.