Unifor inesquecível
Olhos voltados para o inesquecível. Entre imagens e narrativas, a ordem é abrir passagem para a memória do lugar através das memórias das pessoas. Individual e coletiva a um só tempo, dinâmica porque intrinsecamente ligada aos indivíduos, ao modo como (se) narram e reconfiguram os fatos do passado no presente, a memória de quem testemunhou de perto a criação e o crescimento da Unifor se desenrola como um fio solto do novelo, entrelaçando roteiros sentimentais e abraçando a poética do espaço.
Em foco, frames tremeluzentes de histórias de vida, recordações indestrutíveis, camadas de subjetividades recolhidas entre o ontem e o que está por vir. Com Nair, Leonilha e Carlos Alberto, três veteranos da casa, o passeio rememorativo em torno da história da Unifor se dá de mãos dadas com o vivido, atrelado às relações de afeto que ativam e animam o espírito do lugar. Perfilados, cada um, a seu modo, vem afirmar a ideia de memória como montagem e justaposição de tempos que se agitam para além das datas oficiais e dos fatos estanques, do visível ou do aparentemente imutável.
Juntos, fazem um elogio à memória como atitude mobilizadora - e não somente rememorativa -, um dispositivo capaz de abrir ou reativar espaços contínuos de interferência e pertencimento.
Passados-Presentes
Aos 74 anos, Nair Silva de Castro não apenas conta o passado da Unifor. Ela o contém como as linhas das mãos. E é capaz de revê-lo em cada ângulo do prédio monumental, entre corrimãos, corredores, escadas, salas, telhados, janelas. Isso porque chegou ali antes mesmo da inauguração do complexo educacional sonhado e tornado realidade pelo industrial Edson Queiroz (1925-1982), no início da década de 1970. Lembra como se fosse hoje: por mais de uma vez, veio ver de perto, encantada, a finalização das obras de construção da universidade, na pele da então secretária do major José Raimundo Gondim, que, a convite do tenaz e visionário dono da Unifor, deixaria a Federação das Indústrias para compor o staff de confiança do amigo, assumindo o cargo de vice-reitor de administração.
“Não esqueço o brilho no olho do seu Edson, de tão empolgado. Ele sempre trazia autoridades, convidados pra ver as obras, parecia uma criança com um brinquedo novo. Todo fim de semana passava por aqui. Tem uma história folclórica que foi quando ele chegou na Unifor, em um dia de domingo, pedindo pro guarda pra entrar, perguntando o que era aquela obra e tal. Mas o guarda não deixou entrar, por não reconhecê-lo, já que ele fez questão de não se identificar. Mesmo insistindo, não entrou. No dia seguinte, o guarda foi chamado na administração. Quando viu o seu Edson é claro que pensou: “Vixi, tô demitido”. Mas não. Seu Edson havia chamado para agradecê-lo e dizer que queria exatamente gente assim trabalhando com ele”, recorda, aos risos, dona Nair.
Do passado, a então corresponsável pelo setor administrativo-financeiro sabe até do que não houve: o terreno original onde seria construída a Unifor ficava na avenida Francisco Sá, onde funcionou a fábrica da Esmaltec, mas, ao fazer um estudo mais detalhado de localização e às voltas com a precariedade do próprio sistema de transporte naquela área, Edson Queiroz teria declinado da ideia. “Foi quando ele conversou com amigos e um deles, também industrial de sucesso, só que do ramo da construção civil, Patriolino Ribeiro, cuja família sempre teve muito terreno nessa área do Cocó, ofereceu como doação o terreno pra Universidade. Aí, como só o do Patriolino ainda seria pequeno, seu Edson comprou uma outra parte”, revela.
Definido o terreno, a peleja maior ainda estava por vir. Segundo dona Nair, a ideia de uma universidade particular em Fortaleza nos idos da década de 1970 “doeu nos calos” de alguns setores da política e do empresariado brasileiro. “Ora era uma época em que a Universidade Federal do Ceará (UFC) monopolizava a demanda local por formação de nível superior, então havia interesses em jogo e foi o então senador Virgílio Távora quem intercedeu a favor da criação da Unifor junto ao Ministério da Educação, em Brasília. Ainda propuseram que fosse faculdade e não universidade. Mas seu Edson já tinha comprado o terreno e dizia: “Eu transformo isso aqui na maior fábrica de papel higiênico da América do Sul, mas só sai se for universidade. Faculdade eu não quero”. Bateu o pé e, na queda de braços, venceu, né?”, regozija-se a funcionária aposentada que ainda hoje se orgulha de ter, à época, datilografado o projeto “Uma Universidade para o Nordeste”, para vê-lo, enfim, aprovado no âmbito do MEC.
Inoxidável, a memória de dona Nair também guarda marcos históricos ligados ao campo do sensível. Como o plantio do pau-brasil na praça central da Unifor, próximo à fonte, feito pelo próprio Edson Queiroz. “Perguntaram por que ele plantou justo aquela árvore. Disse que era uma árvore que demorava muito a crescer, mas quando crescesse seria bastante frondosa. E era esse crescimento que ele vislumbrava para a Universidade. Então, tinha um cuidado imenso com essa árvore. Botou até o Pereira, um funcionário antigo que tomava conta do almoxarifado, pra regar de manhã, de tarde e de noite. E ameaçou, brincando: “Pereira, você vai aguar todo dia essa árvore. Olhe, se ela morrer você morre junto”. E tá lá o pau-brasil, frondoso como ele sempre quis e um símbolo vivo da fortaleza da Unifor”, atesta.
E nem memórias soterradas escapam ao poder de rememoração de dona Nair. Foi através dela que a Pedra Fundamental da Unifor foi redescoberta, já nos anos 1990. “Em 1971, quando isso aqui ainda era um descampado e as obras de construção estavam começando enterraram um cofre em determinado local com jornais noticiando o nascimento da Unifor e algum dinheiro da época, moedas, enfim, coisas que caracterizavam o período. Os anos se passaram e um belo dia resolveram procurar a pedra fundamental. Onde foi? Uns diziam: “foi ali, foi acolá”. Cavaram embaixo do monumento lá fora, aquele dos triângulos invertidos, onde, no dia da inauguração da Unifor, o então Ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho, disse: “hoje vi uma universidade nascer e um homem chorar”, se referindo ao seu Edson. Pois bem, não estava lá. Daí me lembrei do seu Zé Paes, o mestre de obras que ajudou a construir os primeiros prédios da Unifor e já havia se aposentado há anos. Ele garantiu: “esse cofre tá na entrada do auditório da biblioteca. Viraram, mexeram e nada, disseram até que Zé Paes tava broco. Mas quando foram fazer uma reforma no auditório da biblioteca e cavaram mais fundo, viram lá. Zé Paes, que de tão competente foi nomeado por seu Edson o primeiro prefeito da Unifor, tão logo finalizaram as obras, estava certo”, comemora.
Inesquecíveis, para dona Nair, também são os primeiros dias de aula na Unifor, de onde pinça capítulos singelos. Vide a solução encontrada para vencer as dificuldades de acesso ao campus, fincado nos confins da cidade, ainda no início da década de 1970. “O hoje bairro Edson Queiroz, altamente urbanizado, em nada lembra o de 45 anos atrás. Essa ainda era uma área erma e distante do centro da cidade. Antes você chegar na Unifor, passava ali pelas salinas, onde hoje tem o Parque do Cocó e aquilo era um descampado maior do mundo, só se via os montinhos de sal e uma estradinha estreita, onde só passavam dois carros, um de ida e um de volta. E só havia um ônibus que fazia a linha pra universidade, então demorava a chegar, era aquela demora, atraso de aluno. Aí foi quando o próprio prefeito do campus resolveu colocar na calçada da universidade umas plaquinhas afixadas nos postes de luz: “Seu Zé, me leve!!! Ou então: “Aceitamos carona”. E o pessoal parava pra dar carona. Era muito bacana isso. E até 1977, 78 ainda existiam as plaquinhas lá, com a turma sempre dando carona pros alunos e alunas da Unifor”, suspira.
É também festiva a memória de dona Nair. Ela lembra do primeiro vestibular da Unifor, aquele que não foi tão concorrido por um natural receio de boa parte dos fortalezenses em assumir o ônus de uma universidade paga. Documentos registram: 2.007 candidatos inscritos, disputando 1.270 vagas para 17 cursos. “A criação da Unifor e esse primeiro vestibular tiveram uma repercussão grande na cidade, claro, apesar de não ter sido muito concorrido. Mas foi maravilhoso, a universidade cheia, todo mundo alegre, quem passou fez uma festa linda. Esse clima de alegria inaugural era corrente e durou muito tempo, viu? Me lembro que dois ou três anos depois da universidade abrir as portas teve o aniversario de 50 anos do seu Edson. E os próprios alunos resolveram fazer uma festa pra ele aqui na parte de baixo da biblioteca. Um grupo da engenharia que tinha um conjunto foi tocar pra ele. Esse homem dançou tanto nessa festa com os alunos, estava tão feliz. E olhe que ainda nem tinha formado a primeira turma, mas aquilo foi uma homenagem dos alunos a ele pela chance de estar dentro de uma universidade, já que, até então, só tinha a UFC e era grande a concorrência”, recorda.
Memoráveis também, para dona Nair, foram as festas de Natal organizadas de perto pelo então chanceler Edson Queiroz ao longo da década de 1970. Segundo ela, havia uma verba específica para cada setor comemorar a seu modo, mas, em nome de uma declarada relação de consideração e respeito com os funcionários da Unifor, ele impunha anualmente sua marca. “Ele mandava fazer uma feijoada no restaurante da universidade para os funcionários e mandava comprar um presente pra cada funcionário: pros homens era uma camisa, pras mulheres um corte de tecido. Lembro porque era uma trabalheira e quem comprava isso era eu. Depois ainda fazia sorteio de brindes e de dinheiro. Era aquela brincadeira toda. Gente saía daqui com dinheiro no bolso pra comemorar três Natais pela frente. E por fim almoçava com a gente, acessível e bem-humorado como de costume”, rememora dona Nair.
Aposentada desde 2014, Nair contabiliza nada menos do que 41 anos de dedicação à Unifor. E como responsável pelo setor administrativo-financeiro a relação de confiança e amabilidade conquistada junto ao dono da Universidade se estendeu para toda a clientela cujo investimento lhe passava diretamente pela mão. “A área financeira tinha tudo pra ser um troço chato, né? Mas em todos esses anos consegui ter um relacionamento muito bom com alunos e pais de alunos, que, chegada a época de renovar matrícula, normalmente vinham negociar dívida ou aliviar multas. Era aquele chororô, cheque pré-datado, a gente tirava uns juros e assim ia facilitando a vida de pais e alunos. Essa era a orientação do seu Edson, que tinha um espírito conciliador. Então, aprendi com ele a procurar manter o aluno aqui dentro. Essa foi a minha escola. E a que mais gostei e me apliquei. Quero um bem danado a essa universidade”, derrete-se a ex-normalista formada em Filosofia que chegou a ser professora de escola pública por dois anos e veio a se realizar profissionalmente viabilizando crédito justamente para quem, um dia, desejou fortemente estudar, investindo o próprio suor.
Memórias de Hércules
O espaço anima a memória. Em suas muitas cavidades e reentrâncias, é ele que retém o tempo comprimido, os fósseis imperecíveis do passado, as longas permanências. Após quatro mandatos como reitor e cargos diversos na administração superior da Unifor, o odontólogo Carlos Alberto Batista não esquece a época em que trabalhou na linha de frente pelo reconhecimento definitivo da instituição junto ao Conselho Federal de Educação, do MEC. Revalidação alcançada em 1983, às custas de intenso empenho profissional e espírito colaborativo, já que a ordem era reinventar-se no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, ganhando, mediante o atendimento de um rol de exigências, autonomia para tal.
Trabalho de Hércules, portanto, do tipo que o levou a enxergar a Unifor na dimensão de sua realidade, mas também de sua virtualidade. “Esse foi meu primeiro grande trabalho dentro da universidade, envolvendo toda a universidade, já que o novo padrão MEC levava em conta desde o aproveitamento dos alunos até o planejamento para criação de novos cursos de graduação e pós-graduação, sem falar no necessário investimento em infraestrutura, construção de novos prédios e laboratórios, enfim, era praticamente a construção de uma nova universidade. Daí porque não tem um pedaço de tijolo ali que eu não conheça”, aferra o ex-reitor, testemunha ocular da história da Unifor desde 1975, quando vem do Piauí para Fortaleza no escopo da Reforma Universitária de então e já às voltas com as mudanças da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Enraizamento imediato. Vinha para ficar um ano, colaborando com o projeto de criação do curso de Odontologia, o que só veio a vingar, de fato, na década de 1990, mas acabou envolvido na implantação do sistema acadêmico para, após breve passagem como diretor pelo Centro de Ciências da Saúde (CCS), assumir a Reitoria por duas vezes na década de 1980 e outras duas nos anos 2000. Períodos-chaves, particularmente desafiadores. “Saímos de 17 cursos de graduação validados quando da inauguração da Unifor, em 1973, para a aprovação de um leque enorme de outros tantos, chegando a 29 nos anos 2000. Sem falar da criação de núcleos de pesquisa em cada Centro de Ciências, além das especializações, seguidas de mestrados e doutorados, tudo isso entre as décadas de 1980 e 2000”, elenca.
O ex-reitor enfrentou outras provas de fogo até ver a Unifor andar com as próprias pernas. Na linha do tempo, não titubeia em localizar: as duas grandes greves dos estudantes, em 1980 e 1984, abalaram as estruturas da instituição. “Todas as greves foram por conta de aumento da anuidade. Queriam ensino público e gratuito, claro, aí os grupos empresariais concorrentes se aproveitavam disso. Ninguém acreditava que o chanceler Edson Queiroz criaria uma universidade que não fosse pra ganhar dinheiro, ou que fosse, como ele costumava dizer, uma iniciativa pensada em prol do desenvolvimento da terra dele. Mas realmente a Unifor pra ele não era negócio, era estratégia de desenvolvimento econômico através da educação. E o começo foi bem difícil, não corria dinheiro solto, ao contrário. A Unifor foi feita em cima de nãos, contenção e economia. A gente comia e pedia emprestado. Mas sempre honramos a folha de pagamento do corpo docente, prioritariamente. Salário de professor nunca atrasou um dia. Era assim”, garante.
Dos voos memoráveis, puxa brasa para a própria sardinha: a criação do NAMI (Núcleo de Atenção Médica Integrada) da Unifor, projeto saído do papel em 1978, graças a um convênio com a Fundação Kellogg´s. “Antero Coelho Neto, o primeiro reitor, esteve à frente do processo, junto conosco, do Centro de Ciências da Saúde. Seria um laboratório pros nossos alunos estagiarem e prestarem um serviço de qualidade à população carente da favela do Dendê. Mas já nasceu com a concepção de atendimento integrado. Então, a enfermagem, a fisioterapia, a terapia ocupacional e a educação física passaram a atuar juntas. Depois vieram a fonoaudiologia, a psicologia, a nutrição e enfim a Medicina. Qual era a concepção? O aluno da saúde é aluno da saúde e não só da fisioterapia ou da terapia ocupacional. Ele interage com o aluno da Educação Física, da fonoaudiologia, da Medicina. Era uma concepção avançadíssima pra época. Porque cada instituição tinha o seu curso em separado. Não havia integração”, lembra o ex-reitor.
Não à toa, portanto, foi no NAMI que também se plantou o projeto-piloto de implantação da graduação em Medicina, depois que a vistoria do MEC viu de perto e aprovou as instalações de laboratórios e toda uma infraestrutura condizente com o exigido, o que resultou na autorização formal para o funcionamento do curso, em 2004. “A Medicina já nasceu com essa concepção de integração também com outras áreas de ensino e clínicas integradas. Lá, o PBL (Problem-Basead Learning – Aprendizagem Baseada em Problemas) é a ferramenta pedagógica principal. Ou seja, desde o início do curso o aluno tem contato com a prática. Você tem o problema e vai estudar todas as disciplinas a partir daquele problema. Por exemplo, dor. Você vai estudar anatomia da dor, fisiologia da dor, patologia da dor etc. Agora essa filosofia está sendo implantada em todo o CCS, a partir de três eixos: humanístico-profissional, técnico-científico e comunitário-assistencial. No Ceará, fomos pioneiros nisso”, regozija-se o ex-reitor.
Interiorização também foi uma palavra que professores e alunos CCS conheceram na prática ainda na década de 1970. Como derivação do próprio NAMI, o projeto Cascavel consistia em deslocar semanalmente professores e alunos para prestar atendimento integrado em saúde na terra-natal do chanceler Edson Queiroz. Viajavam de Kombi e lá tinham o suporte de uma das empresas do industrial: a Cascaju. “Era uma espécie de laboratório ambulante e o atendimento se dava nos postos de saúde ou junto às próprias comunidades carentes do município. Isso durou uns cinco anos, mas com o fim do apoio da Fundação Kellogg´s não pudemos continuar”, recorda.
Ao se afastar da Unifor, em 2009, o ex-reitor Carlos Alberto deixou plantada a semente da Educação a Distância. A atual menina de seus olhos, acredita, deve ganhar cada vez mais espaço nas universidades brasileiras. Uma aposta quase que naturalmente ganha. “Os instrumentos da Educação a Distância vêm junto com as novíssimas tecnologias e já são utilizados hoje nas aulas presenciais. É uma questão de tempo para se consolidarem”, vislumbra.
No coração da Unifor
Na Unifor, corre um fio invisível que liga uma pessoa a outra e vai dar no órgão vital do campus: a biblioteca. Ali, mais do que em qualquer outro nicho, a memória social encontra guarida, empoleirando-se junto a uma constelação heterogênea de saberes que pulsa e se propaga para além do tempo e do espaço. Bibliotecária responsável pelos batimentos do “coração” da universidade, Leonilha Lessa toma pulso da tão necessária partilha do sensível há exatos 36 anos. Chegou aos 25, como estagiária do turno da noite, no final da década de 1970, quando ainda nem se cogitava o livre acesso à estante ou mesmo o uso de fichários. No acervo físico, não havia mais que 30 mil obras. Hoje, contam-se 210 mil.
Indivisíveis, Unifor e biblioteca sempre se olharam nos olhos, uma instigando a vitalidade da outra, entre fases que hoje soam até prosaicas, como lembra Leonilha. “De 1973 até 1980 era isso: o aluno dizia o nome do livro, ou o assunto. Se o funcionário encontrasse bem, porque não havia controle de nada. Entre 1979 e 1980, foram contratados dez bibliotecários para organizar a biblioteca manualmente. Daí vieram fichário de autor, título e assunto à disposição do aluno. Ele buscava manualmente, dizia o nome do livro e através do mapa de identificação o funcionário localizava a obra. Nos anos 1990 é que a biblioteca foi ampliada e automatizada, passando a usar um sistema local de microcomputadores. Uma revolução – ou a primeira delas -, numa época em que todas as bibliotecas universitárias começaram a organizar os seus catálogos em sistemas. Em 1991, portanto, a biblioteca foi reaberta já com livre acesso à estante e o sistema de microcomputadores”, detalha.
Leonilha viu mais: a efetiva chegada da internet nas universidades, entre 1996 e 1997, quando, na Unifor, o sistema de microcomputador sairia de cena para dar lugar ao uso de um servidor próprio, adotado a partir dos anos 2000. Era o início do “turbilhão” de serviços on line hoje oferecidos à comunidade acadêmica, que veio dar na integração de catálogos e dispositivos móveis, compra de plataformas de periódicos, além de incremento do acervo de livros digitais. “Cumprir uma trajetória que vai de uma biblioteca sem organização na estante pra uma biblioteca com 23 mil livros digitais em 2017, é gratificante. Também me orgulho do nosso pioneirismo: em 1991, quando todo o acervo da biblioteca da Unifor estava catalogado e o sistema automatizado, as grandes universidades federais tinham sistemas iniciados, mas não concluídos. A primeira automação do acervo completo, ouso dizer que fomos nós que fizemos, em âmbito nacional mesmo”, sugere.
Não à toa, ousar tem sido palavra de ordem na biblioteca da Unifor, onde o céu é literalmente o limite, já que o próprio projeto arquitetônico abre brechas em sua estrutura física para o lado de fora, fazendo do meio uma mensagem destinada ao infinito. E foi entre nuvens que os próprios bibliotecários vieram a desenvolver, em parceria com o Núcleo de Tecnologia da universidade, um sistema de software próprio de causar inveja. “Existem hoje vários softwares comercializados, mas o nosso não é, justamente porque sempre fomos prioridade na Unifor. A gente não depende de terceiros pra fazer a melhoria que quiser ou resolver um problema no sistema. Quando participo de congressos Brasil afora e digo dos recursos que o nosso sistema tem todos ficam encantados”, garante Leonilha.
Com autossuficiência inconteste, a biblioteca que faz brilhar os olhos da comunidade acadêmica se tornou indispensável. Tanto assim que, ao longo dos anos, nem durante suas reformas ou ampliações pôde fechar as portas. Daí porque, na linha do tempo de quem experimentou por dentro transformações de toda ordem, o desafio de se manter perene ressurge em primeiro plano. “Quando a biblioteca foi ampliada de 1900 metros quadrados pra 2400 tive que deslocar todo o acervo daqui pra Reitoria. Isso eu ainda trago na memória: comandar o remanejamento de 100 mil livros porque tínhamos que trocar o piso da biblioteca. Agora estou prestes a sentir a mesma adrenalina: temos que remover 210 mil obras entre estantes que não podem sair do lugar, por conta de uma necessária manutenção estrutural. Mas já mexemos em coluna, parede, teto, tudo com a biblioteca funcionando. Então vamos conseguir de novo. Essa é uma das historinhas estimulantes e inesquecíveis que sempre conto pras bibliotecárias”, diverte-se a diretora.
Estimulante e inesquecível também foi a doação que o Instituto Moreira Salles (IMS), do Rio de Janeiro, fez à Unifor: desde janeiro de 2017, parte do acervo pessoal da escritora cearense Rachel de Queiroz repousa no campus, em um espaço especialmente criado para acomodá-lo. Composto de aproximadamente 3.100 itens, sendo 2.800 livros e cerca de 300 periódicos, além de objetos pessoais, o presente é mais um capítulo à parte na história da biblioteca. “De posse da obra de Rachel de Queiroz abraçamos a literatura, alcançando não só a comunidade acadêmica, como as escolas e a sociedade como um todo. Com isso, elaboramos um projeto de visitação, contratamos profissional de Letras para atender essas pessoas e disponibilizamos um local adequado, adaptando as condições para fazer jus à doação de valor cultural e histórico. Valeu à pena. Estive recentemente participando do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, aqui em Fortaleza, e a Unifor foi uma das grandes atrações para o Brasil. Isso por conta da coleção Rachel de Queiroz, que atraiu esses pesquisadores-visitantes e hoje é, sem dúvida, um de nossos diferenciais”, credencia Leonilha.
Satisfeita com próprio passado e em sintonia com o seu tempo, a biblioteca da Unifor, hoje apta a treinar permanentemente alunos, professores e funcionários interessados em usar as novas tecnologias e suas ferramentas em prol do ensino, da pesquisa e da extensão, é a mesma que também já se empenha em avançar na seara da acessibilidade. “Já dispomos de telas para pessoas com baixa visão, teclado em braile, scanner que transforma texto em áudio... enfim, investimos em equipamentos e já estou preparando meu profissional para disseminar isso. O próprio MEC exige. E nós corremos atrás”, ilustra Leonilha. Os passos adiante também se anunciam: a biblioteca da Unifor quer vir a encarar mais de frente as questões e demandas específicas de minorias sociais.
Atenta e comprometida com o próprio tempo, já vem dialogando com o projeto nacional de implementação de bibliotecas prisionais. “Queremos ajudar a compor esses acervos com leituras complementares e já iniciamos as doações para presídios locais. Nada mais condizente com a universidade que tem um curso de Direito com nota seis, atrelado a um escritório de práticas jurídicas, ambos referenciais no País”, empolga-se Leonilha. Ativa e dotada de um inconteste potencial transformador através da leitura, a biblioteca da Unifor contém dentro dela o incabível: passados-presentes grávidos de futuro.
Conteúdo publicado na Revista Unifor | 3ª edição | Março 2018