qui, 22 setembro 2022 10:18
Pioneirismo marca legado de transplantes de órgãos no Ceará
Doe de Coração homenageia o médico nefrologista Dr. João Batista Evangelista Júnior pelo pioneirismo e brilhante legado no serviço de transplante de órgãos e tecidos no Estado
O Movimento Doe de Coração, da Fundação Edson Queiroz, mantenedora da Universidade de Fortaleza (Unifor), contribui anualmente com a mobilização e sensibilização da população sobre a importância da doação de órgãos e tecidos. Lançado no último dia 5, a 20ª campanha tem promovido diferentes ações para orientar e engajar as pessoas nesse movimento de solidariedade, a favor da vida.
“É uma campanha muito exitosa. Na verdade, a Doe de Coração é uma das principais campanhas do Ceará. Ela é fundamental, um patrimônio não só da equipe de transplantes, mas do povo cearense”, diz a coordenadora da Doe de Coração 2022 e professora da Unifor, a médica hepatologista Elodie Hyppolito.
Desde 2003, a Doe de Coração desenvolve ações em Fortaleza, o que trouxe à Fundação Edson Queiroz o prêmio 'Destaque na Promoção da Doação de Órgãos e Tecidos no Brasil', do Ministério da Saúde, em 2021, uma das conquistas do Ceará no cenário de transplante de órgãos e tecidos no Brasil.
Pioneirismo cearense
Dentre as realizações mais marcantes na Saúde Estadual, está a que ocorreu em 1º de setembro de 1977: o primeiro transplante de órgão realizado no Ceará. O médico nefrologista e docente da Universidade Federal do Ceará (UFC) Dr. João Batista Evangelista Júnior integrava a equipe, a qual fez o transplante renal de doador vivo, procedimento pioneiro nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
O receptor foi um paciente portador de doença renal crônica em programa de hemodiálise, nascido no Rio Grande do Norte, Braz Marinho Neto, 38 anos. A doadora foi sua irmã Sebastiana Marinho Torres. Dois meses depois, o segundo transplante foi realizado e assim instituído o programa de parceria entre o Centro de Pesquisas em Doenças Hepato Renais do Ceará e Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) da UFC. O Ceará passou a ser um centro de referência e intercâmbio de experiências e palco de encontros nesta área.
Duas décadas mais tarde, foi criada a Central de Transplantes do Estado do Ceará, em 9 de junho de 1998, através da Portaria n.º 797/98 da Secretaria da Saúde do Estado, obedecendo a determinação do Decreto Federal nº 2.268/97 que regulamenta a Lei Federal 9434/97. De lá para cá, o Ceará tornou-se referência em transplantes. E deste cenário, fazia parte o Prof. Júnior, como era carinhosamente chamado pelos colegas e alunos.
Ele faleceu no dia 1º de setembro de 2022, deixando um grande legado nas áreas de nefrologia e transplantes do Ceará. Segundo seus colegas e amigos, Dr. João Evangelista Jr. sempre fazia o resgate histórico e homenagens aos pioneiros da nefrologia no Estado, principalmente na área do transplante renal.
“Prof. Júnior sempre foi um homem de um bom coração, além da simplicidade e disponibilidade para ajudar os outros, aos pacientes e atender um pedido de um amigo. Ele era só alegria. O legado que nós devemos manter é esse, de alegria pela vida, amor ao trabalho, pensar sempre no paciente”, fala Dra. Paula Frassinetti, ex-aluna, colega de trabalho e amiga pessoal.
De acordo com a médica, também nefrologista e atuante no serviço de transplantes, Prof. Júnior foi sua inspiração e referência quando decidiu fazer residência médica em nefrologia e, logo em seguida, ingressar no serviço de transplantes.
“Segui seus passos. Fui para Inglaterra, fiquei com o mesmo tutor, o Prof. Cameron, herdei seu ambulatório de glomerulopatias do nosso querido Hospital das Clínicas (Hospital Universitário Walter Cantídio da UFC) e a paixão pela patologia renal, pela nefrologia clínica, vasculites autoimunes, diálise e transplante renal. E assim como a mim, ele incentivou uma geração de alunos a fazer nefrologia. Somos muitos, a maioria, alunos de iniciação científica que se tornaram nefrologistas”, comenta Frassinetti.
A médica Paula Frassinetti (Foto: Arquivo pessoal)
A empatia e a dedicação do professor ao trabalho também foram testemunhadas pela médica nefrologista Dra. Cláudia Oliveira. Uma lição que ela aprendeu com o Dr. João Evangelista Jr. é que a felicidade vem mais em doar do que receber. “O trabalho com amor traz muita realização, mesmo com as lutas diárias para alcançar os objetivos, as dificuldades a serem vencidas; mesmo convivendo com o tratamento da doença renal crônica e seus efeitos orgânicos e psicológicos negativos. Também lidamos com a esperança, com a luta pela vida e vida com qualidade, a alegria do transplante, o que faz todo o trabalho e seus desafios valerem a pena”, declara.
Entre os colegas, alunos, amigos, familiares e pacientes, Dr. Júnior era considerado uma pessoa muito alegre. “Ele gostava de celebrar a vida. Sendo assim, acredito que devemos nos lembrar dele com alegria no coração, com um sentimento de que foi muito bom ter convivido com ele, que a saudade é grande, mas que vamos nos lembrar do seu ombro amigo, da sua força, capacidade de luta, e solidariedade. A luta dele pelo programa de transplantes no HUWC não será esquecida, tendo deixado muitos bons frutos”, ressalta Dra. Cláudia.
O Ceará está entre os 10 estados brasileiros que mais realizam transplantes de rim, sendo o segundo do Nordeste, de acordo com o último relatório semestral da Associação Brasileira de Transplante de Órgão (ABTO). Atualmente, 1.091 transplantes de órgãos e tecidos foram feitos neste ano, até agosto. Conforme dados do IntegraSUS, da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, desse total, 130 foram de transplante renal de doador falecido e nove de doador vivo.
‘Um médico cidadão’
Rony Figueiredo é transplantado renal há 30 anos. O rim que recebeu foi doado por sua irmã. Ele precisou do transplante devido ao diagnóstico de insuficiência renal crônica. “Foi um momento duro, difícil, mas tive a sorte de tê-lo [Dr. Evengelista Jr.] como meu médico que logo demonstrou seu jeito de ‘médico cidadão’, que encorajava. Tenho certeza que Deus reservou um lugar bem ao seu lado”, fala.
Graças à nova chance que recebeu com o transplante, ele hoje comemora a vida e a oportunidade de ter uma família. “Eu formei uma bela família. Tenho uma esposa e um filho espetaculares. Meu filho está concluindo medicina para contribuir com a vida das pessoas. E a minha irmã que doou, depois do transplante casou também, tem uma filhinha. Isso foi fruto da nova chance de nossas vidas”, agradece.
Para a estudante de Odontologia, Bárbara Façanha, a alegria em comemorar sua vida não é diferente. Desde criança, ela foi acompanhada pelo Dr. João Evangelista Jr. “Conheci o doutor Júnior ainda bem pequena, quando comecei fazendo consultas com ele. Eu lembro de gostar do médico de bigode que me chamava de baixinha e que deixava eu brincar com o ônibus vermelho de Londres que decorava o consultório“, relembra.
Bárbara é transplantada renal há 22 anos. Ela tinha um pouco mais de um ano quando recebeu o diagnóstico de síndrome nefrótica, passando por vários tratamentos até realizar o transplante. O rim doado chegou para ela aos 12 anos de idade.
“Eu conheci e fui acompanhada por vários profissionais da saúde antes e até hoje no pós-transplante. O doutor Júnior é o que eu lembro como sendo o primeiro médico de uma longa lista, sua presença me marcou muito por eu ser criança na época, pela competência dele e pela forma como ele se importava com seus pacientes. Eu lembro da expressão dele sempre alegre e animadora me chamando de baixinha, independente da minha condição de saúde no momento. E mesmo no pós-transplante, quando eu o encontrava, anos depois eu lembrava com carinho dos momentos difíceis, mas que se tornaram mais serenos devido aos cuidados de pessoas como ele”, fala.
Bárbara Façanha, transplantada e estudante de Odontologia
Sobre Dr. Evangelista Júnior
João Batista Evangelista Júnior nasceu em Fortaleza, Ceará, em 15 de junho de 1951. Filho de João Batista Evangelista e Maria Neusa Pessoa Evangelista. Concluiu o curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará em dezembro de 1976.
Participou da criação do Centro de Pesquisa em Doenças Hepato-Renais do Ceará (CEPHRECE), ligado à Universidade Federal do Ceará, instituição filantrópica a nível municipal, estadual e federal. Assumiu a Direção do CEPHRECE há alguns anos e era seu atual Presidente até o dia de sua morte súbita.
Fez residência médica em Nefrologia no Hospital Pedro Ernesto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no Rio de Janeiro, nos anos de 1977 e 1978.
Foi professor do Departamento de Medicina Clínica da UFC desde 1º de março de 1979, nas áreas de Clínica Médica e Nefrologia. Permanecia dando aula até os dias atuais. Ainda não tinha se aposentado.
Foi Fellow do "The British Council", no Guy’s Hospital - Renal Unit, em Londres-Inglaterra, de 1983 a 1984, sob a orientação do Prof. Cameron.
No Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) da UFC, exerceu a função da chefia do Serviço de Nefrologia e chefe do Transplante Renal, com atividades de enfermaria, ambulatório e orientação dos médicos do Serviço de Nefrologia e Transplante Renal, até 2014. Foi o idealizador e principal fundador da Residência Médica em Nefrologia do HUWC, tendo sido preceptor e orientador dos médicos residentes até 2014.
Faleceu em 1º de setembro de 2022, data em que o Ceará completou 45 anos de realização do primeiro transplante renal nas regiões Norte e Nordeste, procedimento pioneiro do qual participou.