Entrevista Nota 10 | Ilana Farias e o desafio da compatibilidade genética no transplante de medula óssea
seg, 22 setembro 2025 16:56
Entrevista Nota 10 | Ilana Farias e o desafio da compatibilidade genética no transplante de medula óssea
Responsável técnica do Laboratório de Histocompatibilidade do Centro de Pesquisas em Doenças Hepato-Renais do Ceará fala sobre transplante de órgãos e tecidos, histocompatibilidade e Doe de Coração

A coleta de medula óssea tem crescido no Brasil, segundo o Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME). O ano de 2024, por exemplo, registrou um aumento de 8% em células-tronco de medula coletadas para doação, além de um crescimento significativo no cadastro tanto de doadores quanto de receptores.
Isso tem sido influenciado por diversos aspectos, sendo um deles o acesso à informação e a conscientização popular sobre o transplante de órgãos e tecidos. Campanhas como a Doe de Coração, promovida anualmente em setembro pela Fundação Edson Queiroz, são exemplos disso: em 2025, o melhor desempenho da série histórica em transplantes no Ceará é puxado pelo trabalho realizado pela iniciativa há mais de 20 anos.
Para Ilana Farias Ribeiro Araújo, responsável técnica do Laboratório de Histocompatibilidade do Centro de Pesquisas em Doenças Hepato-Renais do Ceará (Cephrece) — que presta serviço à Central de Transplantes do Ceará, realizando exames de histocompatibilidade dos candidatos na fila de espera para transplantes —, esses movimentos informam e dão visibilidade, além de estimular o cadastro de novos doadores.
Ela conta que o principal desafio para o transplante de medula óssea é achar um doador 100% compatível geneticamente com o receptor. “[...] É muito difícil encontrar um doador, então, quanto mais pessoas se cadastrando, melhor para que uma pessoa consiga o seu tão sonhado transplante”, explica.
Egressa do curso de Farmácia da Universidade de Fortaleza, ela é mestre em Patologia e especialista em Hematologia e Hemoterapia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), além de especialista em Bioquímica e Biologia Molecular pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Atua como preceptora do Projeto de Tutoria “Qualificação em Doação e Transplante Renal” e tem experiência em histocompatibilidade, imunologia e hematologia.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela fala sobre transplante de órgãos e tecidos, os desafios da histocompatibilidade de medula óssea e a importância de campanhas como a Doe de Coração.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Como funciona a histocompatibilidade e qual o seu papel na realização de transplantes de órgãos e tecidos? Quais foram os principais avanços científicos e tecnológicos recentes que trouxeram evoluções significativas para essas áreas?
Ilana Farias — A histocompatibilidade é a compatibilidade entre tecidos do doador e do receptor no transplante. A compatibilidade entre doador e receptor é muito importante para aumentar a sobrevida do enxerto [tecido, órgão ou células transplantados de um indivíduo para outro]. Então, quanto mais compatíveis doador e receptor, geneticamente falando, maior é a sobrevida do enxerto. Isso é fundamental para o sucesso do transplante.
Antigamente, essa compatibilidade era sorológica. Hoje em dia, já fazemos por biologia molecular, com o DNA do doador e o DNA do receptor. Fazemos a tipagem, que chamamos de tipagem HLA [Antígeno Leucocitário Humano], de doador e receptor e vemos quem é o mais compatível. E aí, quanto mais compatível for, melhor para o transplante.
Entrevista Nota 10 — No transplante de medula óssea, a histocompatibilidade é um fator fundamental para o sucesso do procedimento e a possibilidade de salvar vidas. O que diferencia o peso dessa compatibilidade entre a doação de medula óssea e a de demais órgãos e tecidos? Quais são os principais desafios nessa área?
Ilana Farias — Existe uma diferença entre a compatibilidade de doação de medula óssea e a compatibilidade entre os demais órgãos. No caso da compatibilidade de medula óssea, ela é fundamental para evitar complicações, como a doença do enxerto contra hospedeiro. A compatibilidade entre doador e receptor é fundamental para o sucesso do transplante de medula óssea acontecer.
No caso do transplante de órgão, a compatibilidade é importante, mas ela não é tão importante quanto o de medula óssea, não é tão crítica. Porque conseguimos transplantar órgãos com apenas uma compatibilidade, duas compatibilidades, diferente da medula óssea, que tem que ser 100% compatível. Então, no caso de transplante de órgãos, se não for 100% compatível, só temos que ter um cuidado para não haver anticorpos contra algum alelo desse doador. Elas são diferentes nesse sentido.
O desafio que eu acho para a medula óssea é encontrar doador e receptor bem compatíveis, porque são genes muito polimórficos, ou seja, existem muitos tipos de genes HLA. É bem difícil encontrar doador e receptor idênticos, principalmente aquelas pessoas que não têm irmãos HLA idênticos. Então, esse é o principal desafio no transplante de medula.
Entrevista Nota 10 — O Laboratório de Histocompatibilidade do Cephrece presta serviço à Central de Transplantes do Ceará, realizando os exames de histocompatibilidade dos candidatos na fila de espera para transplantes. Como responsável técnica do laboratório, qual a sua visão sobre a importância do trabalho promovido pelo Cephrece para a sociedade e a saúde pública? Como funciona essa parceria com a Central?
Ilana Farias — O Cephrece é uma instituição filantrópica especializada em pesquisas clínicas e experimentais no ramo de transplante de órgãos. São quase 50 anos de história, sendo responsáveis pelo primeiro transplante renal do Norte e Nordeste, que foi realizado em 1977. O Cephrece tem uma parceria com a Central de Transplante, fundamental para que aconteçam todos os transplantes no estado do Ceará.
O Centro de Pesquisa é responsável por fazer a seleção de todos os receptores que vão entrar em provas cruzadas, tanto de doação de rim como de pâncreas, coração, pulmão etc. Então, sempre os receptores vão colher soro no Cephrece. Fazemos essa seleção junto com a Central de Transplante, que envia o ranking de compatibilidade para o Cephrece e ele seleciona os receptores que vão entrar para a prova cruzada, mostrando quem vai entrar no transplante, quem vai receber e ser contemplado por esse doador falecido.
Entrevista Nota 10 — Em 2025, a tradicional campanha Doe de Coração tem como foco sensibilizar a sociedade para a importância da doação de medula óssea, além dos demais órgãos e tecidos. Qual o papel de campanhas como essa na conscientização da sociedade e na expansão da lista de doadores? Na sua visão, qual a importância em trazer esse tema aos holofotes?
Ilana Farias — Essa época de campanha em setembro é muito importante porque traz na mídia a importância que tem esse tema, que é o transplante. Muitas pessoas aguardam um transplante de medula ou de órgão, e ainda há um pouco daquilo das pessoas não quererem, da família negar ou [a pessoa] não querer se cadastrar no REDOME [Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea] por um pouco de receio ou não entender tanto o assunto.
Eu acho muito importante quando vem essa época de campanha, porque aí torna mais visível, é mais esclarecedor, o público é sempre informado sobre o que está acontecendo, sobre a importância da doação de medula, que pode salvar vidas, incentiva as pessoas a se cadastrarem. Porque aí, quanto mais pessoas se cadastrarem, maior a chance de encontrar um doador compatível para as pessoas que precisam do transplante.
Então, essas campanhas podem focar no aumento da visibilidade, quanto mais pessoas se cadastram, mais tem a chance. Como eu falei anteriormente, é muito difícil encontrar um doador, então, quanto mais pessoas se cadastrando, melhor para que uma pessoa consiga o seu tão sonhado transplante.
Entrevista Nota 10 — Você começou a carreira na saúde durante sua formação em Farmácia na Universidade de Fortaleza. Como sua experiência no curso te levou a escolher o caminho profissional que você trilha hoje? De que maneira a graduação na Unifor te preparou para exercer a função que você tem hoje e como esse aprendizado reverbera na sua profissão?
Ilana Farias — Eu me formei na Unifor em Farmácia, em 2010. Sempre estagiei. No final do curso, em 2008, eu entrei no estágio no Cephrece e aí eu me apaixonei pela área de transplante graças à professora Silvia Fernandes, que foi quem me convidou para fazer esse estágio. Ela sempre me fez amar essa área, sempre teve muito amor por isso e passou para mim. Então, ela saiu do Cephrece e eu fiquei no lugar dela, ela me deixou nessa missão. Sou apaixonada pela área e devo muito a ela.
Estou aqui hoje no Cephrece já tem quase 17 anos e, como egressa da Unifor, agradeço muito à Universidade porque me fez chegar onde eu cheguei. Tanto pelo curso, pela universidade, como pela professora Silvia Fernandes, a quem sou muito grata a tudo.