null 60 anos do Golpe Militar: Revisitar o passado para libertar o futuro

Seg, 1 Abril 2024 12:12

60 anos do Golpe Militar: Revisitar o passado para libertar o futuro

Docentes da Universidade de Fortaleza analisam período conturbado da história brasileira e ressaltam a importância de falar sobre o regime de 1964


A ditadura brasileira ficou conhecida como uma das mais violentas da América Latina (Foto: Reprodução/Carta Capital)
A ditadura brasileira ficou conhecida como uma das mais violentas da América Latina (Foto: Reprodução/Carta Capital)

Entre os fatos que compõem a história de uma nação, nem todos são dignos de orgulho. Alguns, na verdade, desencadeiam na população sentimentos de vergonha e desonra. No Brasil, a opinião pública considera o Golpe Militar de 1964 como um desses momentos sombrios que deixaram marcas profundas na sociedade até hoje.

Censura, prisões arbitrárias, violência física e psicológica, desaparecimento de pessoas, violações sexuais como forma de tortura e terror fizeram parte do conjunto de atrocidades que se tornaram corriqueiras durante os “anos de chumbo”.

Seis décadas após o Golpe, o país vive um período de ameaças à democracia, questionamento sobre a ciência e polarização política, contexto que torna a elucidação do tema ainda mais pertinente

Contexto histórico e escalada da repressão

Após a Segunda Guerra Mundial, sob influência da polaridade entre Estados Unidos e União Soviética, qualquer movimento ligado à classe trabalhadora era visto com muita tensão no Brasil. Assim, a inclinação do presidente João Goulart às reformas sociais fez com que a elite econômica o considerasse comunista e uma ameaça à democracia.

Foi quando teve início uma conspiração entre empresários, militares e setores mais conservadores para a deposição do então presidente e a tomada do poder político pelo alto comando do Exército brasileiro.

Wagner Borges, coordenador do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza, observa que o golpe de estado aconteceu de maneira bastante trabalhada entre as forças conservadoras e dominantes para dar a ideia de legalidade. O objetivo por trás desse esforço foi não gerar comoção na sociedade. “Praticamente não se viu derramamento de sangue inicialmente”, destaca o jornalista.

No entanto, o que houve em sequência, explica Mariana Andrade — doutora em Ciência Política e professora do curso de Direito da Unifor —, foi uma das ditaduras mais violentas da América Latina, marcada pela absoluta desconsideração aos direitos humanos.

De acordo com a jurista, grande parte dos brasileiros não reconhece a existência de “um dos períodos mais trágicos do país” e se manifestam “com um inquietante despudor em prol da volta de militares ao poder”.

“Parte da opinião pública, impulsionada pelo discurso político de extrema-direita, defende o retorno ao regime militar, utilizando-se de uma prerrogativa democrática (liberdade de expressão) para pedir pelo retorno à repressão. É um paradoxo motivado pela ignorância (seja ela consciente ou não)”, afirma Mariana.


“É importante trazer à memória determinados eventos da política brasileira, reais como são, além de valorizar a pluralidade e a diversidade, fomentar o pensamento livre e informado, estimular o senso crítico e, principalmente, corrigir os erros do passado, evitando que se repitam no futuro.”Mariana Andrade, doutora em Ciência Política e docente do curso de Direito da Unifor

A docente explica que a ideia de torturar para investigar se tornou popular entre os adeptos do regime por dois motivos. Primeiramente, a ausência de testemunhas, uma vez que a imprensa, sob o risco de perder direitos de transmissão ou mesmo a integridade física dos responsáveis, não divulgava os violentos atos de repressão.

Além disso, os Atos Institucionais (medidas privativas ao Presidente da República com hierarquia superior ao texto constitucional e de execução imediata) legalizavam os crimes cometidos, protegendo os militares e as elites apoiadoras.

Depois da primeira supressão a direitos constitucionais, vieram os avanços sobre a democracia representativa. Houve a eliminação do pluralismo partidário, o estabelecimento de eleições indiretas e fiscalização ideológica massiva

“É incompatível falar sobre democracia, que pressupõe individualidade para a escolha livre e alternância de poder, em um contexto de violação contumaz de direitos e negação contínua de liberdades”, destaca Mariana.

Para Martônio Mont'Alverne, pós-doutor em Direito e professor do curso de Direito da Unifor, as principais violações aos direitos humanos documentadas durante o regime foram:

  • assassinatos de presos políticos,
  • torturas,
  • fechamento de jornais,
  • aposentadorias forçadas de professores,
  • exílio de políticos, artistas e intelectuais.

“As consequências do golpe para a liberdade e democracia foram as piores possíveis: cassação de mandatos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores; fim dos partidos políticos; fim de garantias como habeas corpus e a liberdade de imprensa e de associação", enumera o advogado.

Efeitos da censura sobre a informação

Bastante afetado pela censura, o jornalismo, por inúmeras vezes, não pôde cumprir seu papel de informar a sociedade de maneira objetiva. Opiniões contrárias ao governo ou matérias divergentes dos interesses da ditadura sucumbiam à figura do censor, símbolo da falta de liberdade de imprensa na época.

“Grandes matérias eram censuradas de última hora, e no dia seguinte, quando os jornais circulavam nas bancas, onde deveria estar a matéria ou editorial haviam receitas de bolo ou poemas. A ideia era deixar o leitor se questionando por que aquele tipo de conteúdo estava substituindo a informação jornalística”, relembra Wagner.


“Criava-se, de alguma forma, uma comoção no sentido de gerar um estranhamento que levasse as pessoas a perceberem que a liberdade e o direito à informação estavam sendo seccionado de forma cada vez mais ostensiva.”Wagner Borges, jornalista e coordenador do curso de Jornalismo da Unifor

Em contraponto às restrições, houve também vários movimentos de resistência. “Isso começava a acontecer, por exemplo, em veículos como a Rede Tupi e Rede Bandeirantes, que tentavam colocar uma programação em que temas áridos, que desagradavam a ditadura, pudessem ser abordados”, pontua o coordenador.

Um dos casos mais emblemáticos relacionados a esse período é o do então diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, que foi chamado para dar explicações sobre suas atividades ao regime militar. Tempos depois, um laudo expedido pela Polícia Técnica de São Paulo informou o suposto suicídio do jornalista.

“Foi um ato bárbaro travestido de suicídio que além de não convencer ninguém, começou a alertar dentro do cerne da imprensa a que nível a violência institucional já estava chegando [...] Herzog foi morto exatamente porque fazia o seu papel, que era cobrir o dia a dia da cidade, do país e do estado, no momento em que a cidade estava sendo governada dentro de um estado de exceção”, analisa Wagner.


A morte do jornalista Vladimir Herzog escancarou as violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar no Brasil (Foto: Wilson Ribeiro/Acervo Vladimir Herzog)

Impunidade histórica

Após 60 anos do início da ditadura, com a análise retrospectiva da história, é possível identificar falhas procedimentais, como a não punição de torturadores e assassinos. Apesar de ter permitido o retorno dos exilados e a liberação dos presos políticos, a Lei de Anistia, por exemplo, possibilitou também a impunidade de criminosos.

Para o docente Wagner Borges, o ideal seria que os que foram perseguidos pelo Estado fossem anistiados e os que, em nome do Estado, perseguiram, torturaram e mataram, fossem penalizados, como aconteceu na Argentina.


Cartazes de protesto na casa do coronel Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI, centros de tortura e assassinato de quem se opunha ao governo (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

“Em um país onde os direitos individuais são consagrados e respeitados, em uma sociedade que é evoluída, não se pode pensar que pessoas que, em nome do Estado, mataram, perseguiram, torturaram ou fizeram pessoas desaparecer, sejam anistiadas no mesmo nível que outras pessoas que cometeram crimes menores do ponto de vista da lei”, reforça o jornalista.

“O Ministério Público Federal já ingressou com diversas ações para garantir o julgamento e a punição dos torturadores, não apenas para dar um desfecho mais justo aos familiares (se é que se pode falar em justiça), mas também para assegurar a memória e manter vivo o legado dos que se foram”, acrescenta a professora Mariana Andrade.

Neste mês de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu a possibilidade de desengavetar o assunto no segundo semestre de 2024. A ideia é revisar a Lei de Anistia, proposta que ganha força após posicionamento do ministro Dias Toffoli a favor da decisão.

+ LEIA | Lei de Anistia: do alívio na reabertura à impunidade militar

Memória nacional

Wagner Borges salienta a importância do jornalismo como memória e do conhecimento dos fatos para que a história não se perca como perspectiva, valor, referência e marco civilizatório.

“Esse conhecimento é a base que faz com que as pautas sejam revistas, reavivadas e permanentemente resgatadas para o público leitor, porque o papel do jornalismo também é fornecer uma memória diária do nosso presente, do nosso futuro, baseado naquilo que como memória entendemos que foi o passado”, enfatiza o docente.


O Memorial do MPF, inaugurado pelo Ministério Público Federal, recebeu uma exposição sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar (Foto: Tânia Rêgo/Arquivo Nacional)

Para Mariana, nada será suficiente para compensar os horrores da ditadura no Brasil. Prova disso, são as muitas audiências da Comissão da Verdade e os relatos dos que sobreviveram ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Andrade afirma ainda que os esforços devem se voltar à justiça e reparação para as famílias das vítimas, razão pela qual o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em março de 2024, a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), extinta em 2022.

Segundo a docente, o propósito consiste em retomar os trabalhos da Comissão para possibilitar a execução das condenações impostas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ao Brasil.

É fundamental relembrar esse período, para que nenhum vislumbre coletivo psicótico motivado por uma completa dissonância da realidade de bolha justifique o retorno, ou o mero flerte de retorno, do pior período da história política brasileira”, frisa a professora.

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