“Não há trégua no mundo dos homens”: professor de filosofia reflete sobre espetáculo “Guerra e Paz”

qui, 29 agosto 2024 15:55

“Não há trégua no mundo dos homens”: professor de filosofia reflete sobre espetáculo “Guerra e Paz”

Após assistir ao espetáculo, André Moreira registrou suas percepções sobre diversas questões que permeiam a existência humana 


Por André Moreira¹

“Não há trégua no mundo dos homens”. Essa frase foi retirada de um texto interpretado no espetáculo intitulado Guerra e Paz, inspirado na obra de Cândido Portinari e realizado pelo Grupo Mirante de Teatro Unifor, da Universidade de Fortaleza.

Tive o prazer de assistir esse espetáculo e de perceber a profundidade do pensamento de um homem, que por meio de suas pinturas, textos, cartas, enfim, de suas experiências, comprovou a complexidade pela qual se traduz a existência humana.

O título Guerra e Paz já marca o tom e a intensidade que a peça quer apresentar. Uma temática que incomoda a nossa realidade, justamente pelo fato de vivermos num mundo entre guerra e paz. A complexidade da existência humana é marcada justamente pela dicotomia, pela luta de contrários que traz essa dinâmica, gerando, portanto, angústia em nós. Intensidade que o espetáculo, por si só, conseguiu transmitir na plateia, com um texto que mexeu com todos que estavam ali, conduzindo à profundidade da experiência de Portinari: experiência única de mergulho nessa loucura que é a realidade, que é o ser humano.

O tema da existência humana, da angústia e da liberdade e suas consequências é própria do existencialismo, corrente filosófica que ficou bastante conhecida, por sinal, nos pensamentos de Kierkegaard e Sartre, entre outros. Essa doutrina concebe o ser humano como artífice de sua própria história. Ao anunciar que nós somos condenados a ser livres, os pensadores existencialistas evidenciam que construímos nossa essência, erigimos nossa história. E essa condenação, que a princípio parece algo interessante, geradora de paz, esconde em si a angústia da escolha. Decidir nosso caminho, construir nossa história gera angústia justamente pelo fato que é a tomada de decisão, isto é, escolher entre possibilidades. A escolha gera angústia, que leva a dor da resistência, da necessidade de ser assertivo levando ao incômodo, incerteza, aflição, que muitas vezes tocam não só em uma pessoa, mas um grupo e até mesmo toda a humanidade. Isso acabam gerando uma confusão, conflito generalizado, divisões, enfim, guerra. E essa luta de contrários, Guerra e Paz, foi mostrado de forma esplêndida no espetáculo.

A peça mostra um Portinari que sai do seu campo, dizendo que lá ele se sentia bem, tranquilo, livre, porque ele cuidava de coisas simples. Então, vai ao mundo dos homens, percebendo que “não há trégua no mundo dos homens”. É interessante isso, ao retornar nas memórias do próprio autor, a gente parece perceber que ao tomar nossas decisões, começamos a arcar com as consequências. Portinari vai perceber a injustiça, a divisão, os problemas sociais. As feras que o transtornam são amostras das dores causadas por decisões equivocadas e egoístas de si mesmo e da sociedade, que busca poder, custe o que custar. A dor da guerra, da morte, do desamparo, marcam as pinceladas do artista, e lhe ferem a alma, assim como também o corpo, pelas tintas tóxicas utilizadas por ele.

Entretanto, por mais que possa gerar conflitos, que possa se converter em dor, em tristeza, o existencialismo também quer mostrar que é justamente por meio dessa loucura da liberdade, que nós construímos nossa própria história, que nós erigimos nossa própria essência. Por isso, a existência vem antes da essência, porque nós somos como vasos de barro sendo construído, nós construímos a nossa vida, nós podemos construir. As decisões, nós que a tomamos, e por isso, justamente por isso que, ao sabemos o que podemos fazer, nós devemos fazer. É justamente o ser humano que realiza a obra, que pinta seu quadro. Então, por mais que a possamos nos sentir angustiados, pelo fato de tomarmos as nossas decisões e sermos condenados a ser livres, também devemos observar a bênção que é a liberdade. Ser livre se transforma em algo bom, justamente pelo fato de que nós que somos livres. Então, bem formados na nossa consciência, podemos tomar as melhores decisões possíveis.

A peça demonstra esse processo de tomada de decisão do ser humano, de que nós somos capazes de fazer esse mundo melhor, que nós somos capazes de construir, que nós somos capazes de vencer as nossas próprias feras, que nós somos capazes de nos unirmos para transformar o mundo num bom lugar, em algo melhor e transformar a nossa sociedade.

O espetáculo Guerra e Paz do grupo Mirante viaja por essa loucura que é ser humano. Na luta por um mundo melhor e, para tanto, precisa batalhar por ele, vencendo as feras e convertendo guerra em paz, por meio do olhar desse grande artista, que foi Cândido Portinari. Fiquei realmente muito feliz, grato por ter participado dessa experiência, ter vivido essa experiência e indico com muito prazer. Parabéns a todos os envolvidos.

> Grupo Mirante de Teatro Unifor apresenta o espetáculo "Guerra e Paz”, inspirado na obra de Candido Portinari

¹ Carlos André de Oliveira Moreira, professor de Ensino Religioso (Relações Humanas) e Filosofia do Colégio Christus. Formado em Filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza e em Teologia no Studium Theolocicum do Centro Universitário Claretiano.