seg, 10 setembro 2018 10:03
Entrevista Nota 10: o ócio no cerne das pesquisas do prof. Clerton Martins
Tome-se a palavra sem a couraça do senso-comum que lhe empobrece o real sentido: ócio deriva do latim “otium”, termo que nos remete ao fruto das horas vagas, do descanso e do sossego, abrigando ainda a ideia de repouso e de pausa desejada, num âmbito que está para além de um tempo e de um lugar.
O conceito, que nada tem a ver com o estado de espírito pejorativamente associado à ociosidade, anima a formação acadêmica e o cerne das pesquisas do pesquisador José Clerton de Oliveira Martins, professor-titular do curso de Psicologia da Unifor e doutor em Psicologia pela Universitat de Barcelona, com pós-doutorado justamente em Estudos do Ócio pela Universidad de Deusto, na Espanha.
À frente das disciplinas Estudos sobre Ócio, Tempo Livre e Comportamento Social, na graduação, e Estudos sobre Trabalho, Ócio e Temporalidades Sociais, no Doutorado em Psicologia da Unifor, o professor revela em entrevista o quanto o trabalho de si e também os mais engenhosos e transformadores projetos laborais devem a essa palavrinha tão mal quista em sociedades capitalistas destruidoras das vontades sociais e de riquezas do campo do sensível geradoras de sociabilidade e produtividade partilhadas. Como coordenador do OTIUM, grupo de estudos multidisciplinares sobre ócio e tempo livre e também membro-fundador da OTIUM/ Rede Iberoamericana de estudos do ócio, Clerton Martins conta ainda como a Unifor se tornou uma das universidades pioneiras e líderes no Brasil em tais pesquisas.
Professor, o ócio é uma necessidade básica para todos e qualquer um?
CLERTON MARTINS: Veja só: você tá no cotidiano monótono todo bem enquadrado num sistema de crenças, valores, os chamados encaminhamentos do homem de bem, aquele que vive para o trabalho, que é proativo, realizador. Mas tudo nele está dizendo assim: será que é só isso? Quando é que vai chegar o final de semana? Quando vou ter um tempo? Quando eu vou me aposentar? Tenho que sair desse lugar, que tá me consumindo.
Conforme apontou Jonathan Crary, vivemos “em modo 24/7”. O autor denomina assim um novo estilo de vida em que, conectados 24 horas por dia, 7 dias por semana, o tempo do nosso existir é demarcado pela satisfação dos ditames do mercado global. Esse modelo significa a imposição generalizada à vida humana de uma duração sem interrupções, de um tempo homogêneo.
Como podemos ver, numa sociedade com tais características, pensar em gratuidade, tempo de nada fazer, ocupar-se em contemplar, convoca de imediato a ideia de resistência, de ir no sentido contrário ao hegemônico. Por outro lado, ao pensarmos que nossa contemporaneidade desloca o termo para os domínios do hegemônico.
Nesse sentido, o ócio aparece confundido com o lazer dos tempos livres, é justificado por este, encampando o hiperconsumo e orientado pelo mercado. Podemos encontrar seus sujeitos nas atividades do consumo e do turismo, nas festas e eventos, na indústria das diversões e das férias, na verdade, generalizados no senso comum pela distração, convocados pelos apelos da indústria do entretenimento.
O tédio, o vazio e ruído exterior e a vida (des)narrada convocam a busca de sentido, um tempo pleno de realização subjetiva. Difícil, sim, imposível, não! Afirmam os pesquisadores recentes que nesta contemporaneidade o ócio é acessível mas paradoxalmente, pouco sabido! Para tal convoca-se sensibilização.
Como você conseguiu afirmar o ócio pessoalmente e em sua atribulada trajetória acadêmica, que começa numa graduação em História e se desdobra no mestrado, doutorado e pós-doutorado na Espanha, agora já no campo da Psicologia?
CLERTON MARTINS: Um verdadeiro chamado! Sempre fui próximo ao trabalhado. Ouvia: você tem que ser alguém na vida. Discursos comuns de família, organizações, mercado. Comecei a trabalhar aos 14 anos, como menor aprendiz, na área financeira. Sempre um trabalhador nessa área financeira, burocrática, organizacional, trabalhando com planilhas, cálculos, até que cheguei no desenvolvimento gerencial e especialização em gestão de recursos humanos nas organizações. Na Psicologia, ou mesmo em qualquer pesquisa que me insira, está a interface entre a investigação das subjetividades e a vida social, sigo pelo viés da etnografia. E assim é que, no desenvolvimento gerencial, descobri, através de pesquisas, que quando gestores e empreendedores queriam tomar uma decisão importante, optavam por pausar a rotina, ou seja, isso exigia deles pequenas ou longas “paradas”. E eles tinham um truque para poder parar. Inventavam um discurso, uma justificativa para poder parar. Isso ficou na minha cabeça. Os gestores estratégicos, os altos executivos, de altas performances, diziam: eu tenho que parar para tomar a melhor decisão. Eles retiravam-se de determinado contexto e iam para um momento próprio, que davam o nome de lazer. Mas mais tarde descobri que isso era algo mais, mas tarde descobri que buscavam encontrar em si, tranquilidade para amparar seu interior e isso se enquadra na perspectiva que mais tarde identifiquei como âmbito do ócio: um momento para poder analisar com inteireza uma demanda gerencial, com seus números e resultados. Essa pesquisa empírica rendeu meu primeiro trabalho acadêmico que se intitulou “Lazer para o resgate do homem”. Ou seja, eles iam se apropriar de experiências que os convocavam a uma apropriação de si, do mundo, do outro, dos problemas, para que, com responsabilidade, pudessem tomar decisões. Não era lazer a palavra. E fui atrás de que nome era dado a isso.
Dai seguiram percursos que cada vez mais me integraram ao movimento acadêmico internacional na descoberta do lugar do ócio nas culturas contemporâneas.
E ao descobrir que era ócio como conseguiu emplacar uma hipótese quase sem nome?
CLERTON MARTINS: Até a década de 1980, pelo menos no Brasil, a palavra ócio sempre foi execrada, era pejorativa. Evite o ócio que é a oficina do demônio. Evite o ócio, você não pode ser ocioso e tal... só que ócio não é nada disso, nunca foi nada disso desde os filósofos antigos. Para que exista uma grande criação, uma grande obra, uma grande reflexão exige-se uma parada. Essa parada traz muitas coisas boas. Claro que a desapropriação do que se fazer no tempo em que se para gera outro problema, que é a ociosidade, que também está mudando de nome, é o tédio. Esse tempo do ócio é todo meu, mas por que eu preciso dele? E tem outros problemas relacionados a isso: o workaholic, por exemplo, que é outra patologia, a pessoa não sabe viver um tempo fora daquele tempo de trabalho, e tudo é relativo a isso e o mundo vai desabando, mas ele só foca em um lugar de realização, que é esse lugar da produtividade, e vai se desmanchando. Foi investigando o significado de trabalho, as formas de estar numa gestão organizacional, os estilos de liderança, a relação de trabalho com emprego, as questões ergonômicas, ambientais e relacionais envolvidas, que fui procurar compreender como esse tempo dentro e esse tempo fora interferiam na elaboração do sofrimento psíquico. Isso me levou a potencializar os estudos do ócio no pós-doutorado, através da pesquisa “Educando para o ócio no trabalho e no tempo livre: potencializando sujeitos para a vida”, na Universidad de Deusto, na Espanha, um centro multidisciplinar de referência sobre os estudos do ócio.
O ócio então é possível e necessário inclusive como estilo de vida, no trabalho e fora dele?
CLERTON MARTINS: Sim. Seja no social, seja no econômico, no espaço doméstico, no espaço urbano, o mundo se organiza a partir da possibilidade de experimentar o ócio, muitas vezes tomado como lazer. Por exemplo, as grandes feiras do mundo reúnem os espaços de ócio e os espaços de negócio, as exposições de gado, as feiras livres, tudo é um grande lugar de ócio, onde neles cabem diversão, interação, comunicação, desenvolvimento, relações, comportamento. Trabalhar é muito bom e o trabalho de fato dignifica, mas quando o trabalho é digno. Tem um ditado espanhol que acho fantástico: o homem que trabalha com o que gosta nunca tem férias. Que é exatamente o contrário de que o ócio é a oficina do diabo. Na década de 1980, no Brasil, apareceu um termo de um italiano da sociologia do trabalho, o ócio criativo, cunhado por Domenico de Masi. Que nada mais é do que tornar divertido o trabalho. Só que isso não tem nada a ver com o ócio, ou seja, transformar o tempo livre num trabalho que você irá desenvolver. É o contrário. Quando o trabalho nasce dessa sua possibilidade de criação, ele é ócio. E você ganha dinheiro com ele.
Mas por que se faz necessária uma pedagogia do ócio ou uma educação para o ócio na contemporaneidade?
CLERTON MARTINS: Quando você, geração após geração, fez com que todos desaprendam o valor desse lugar é preciso uma sensibilização. Nas formações em geral não tem mais filosofia, sociologia, você não tem mais a educação para se tornar um sujeito que transforma o seu meio. Sua trajetória enquanto elaboração do sujeito é a partir de tudo o que trazes. Se vai se limitar apenas a observar e seguir os valores externos do mercado você vai ser um operário padrão sim, mas nunca vai saber o valor de produzir coisas inclusive mais criativas. A contemporaneidade diz: traga algo original que a gente compra. Isso requer tempo, paradas, rupturas, outros movimentos e não apenas se repetir, ficar dando voltas. Em sala de aula as pessoas querem ter experiências, envolvendo inclusive ludicidade, um estado de estar presente transformando. Desmitificar, tirar o ranço do ócio, pensando um à toa, mas com um sentido subjetivo de burilar o ser, ao invés de só estar produzindo, produzindo, produzindo, pra A, pra B, pra C, é optar por um trabalhar para si também, um trabalho paralelo existencial.
Ócio e negócio não são opostos, portanto...
CLERTON MARTINS: Não mesmo! Estamos pensando o “desnegocio”, inclusive, um apelo contemporâneo. A essência filosófica desse pensamento em torno do ócio vem do grego, que é um caminho de construção de sua psiquê. Então, quando chegou pra gente, já foi a partir de Roma, o ócio como tempo para descanso, as horas vagas, depois que você se acaba de trabalhar. Existia uma concepção civilizada de que as pessoas não podiam extrapolar o seu tempo de ser em atividades que não lhe pertencessem. Então, com o pensamento burguês, do comércio, da produtividade, dos inventos, veio a negação do tempo de integração. Revolução industrial brasileira, modernidade. Um momento em que o tempo livre passou a ser apropriado para produzir homens docilizados para o trabalho. Hoje, vivemos tempos de cansaço, superconsumo, tempos apressados. E a condição de ser sujeito nesse tempo, inclusive assujeitado, ocasiona desapropriações. Então por que será que ócio voltou para a linha da qualidade de vida, do anti-estresse? Porque se chegou ao ponto máximo dessa exaustão, junto a novas patologias, como síndrome do pânico. Daí surge o pensamento fora desse padrão de robotização. E assim,volta-se ao óbvio: eles não têm tempo para serem sujeitos de si mesmo. É quando surgem os “desnegócios”, as novas profissões, novas formas de trabalho, menos programáticas, a informalidade, lugares onde não se paga tanto imposto, os “fab-labs”, formas alternativas e sustentáveis de comércio, os produtos reciclados, os co-working, onde você faz o seu tempo. Então, a desconstrução desse pensamento, criando novas redes de produção, a produção não no sentido de um fim fora, mas um sentido voltado a esse grupo. Isso é uma resistência a isso que está posto como um tempo que dessubjetiva, esmaga, aliena. Aí o que stamos vendo? A retomada da condição de homo faber e ludens, o lúdico com o fazer. Tudo isso dentro de uma perspectiva da criatividade.