seg, 3 abril 2023 19:01
Trabalho escravo: como a prática criminosa afeta milhares de trabalhadores no Brasil?
Denúncias de trabalho análogo à escravidão no festival de música Lollapalooza escancaram uma triste realidade brasileira

Há 134 anos, em maio de 1888, a princesa Isabel assinava a Lei Áurea, que declarava extinta a escravidão no Brasil. Desde então, o trabalho escravo deixou de ser legalizado no país, mais de 300 anos depois desse tipo de opressão. Apesar da medida, as práticas que submetem os trabalhadores a condições subumanas não chegaram ao fim, perpetuando-se hoje.
Por isso, em 2003, foi criado o artigo 149 do Código Penal, que criminaliza qualquer tipo de trabalho análogo à escravidão — classificado como a submissão de trabalhadores a condições degradantes pela violação de direitos fundamentais decorrente da relação profissional, quando se adota formas contemporâneas de escravidão, tais como:
- Submissão do trabalhador a trabalho forçado;
- Jornada exaustiva;
- Sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho;
- Restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Ana Virginia Moreira, docente do Programa de Pós Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza — da Fundação Edson Queiroz — e doutora em Direito do Trabalho, ressalta que a tipificação do crime de redução à condição análoga à de escravo foi um avanço muito importante da legislação brasileira.
“Foi superada a definição caracterizada somente pelo trabalho forçado, alcançando assim a realidade das formas atuais de exploração do trabalho análogo à escravidão no Brasil”, explica ela, que também é coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e Seguridade Social (NEDTS).
“O Superior Tribunal de Justiça já formou jurisprudência consolidada afirmando que a caracterização do crime não depende da restrição à liberdade do trabalhador, trata-se de uma infração que possui diferentes formas de ser cometida e conteúdos diversos” — Ana Virginia Moreira, docente do PPGD da Unifor.
Realidade brasileira
Mesmo com a legislação, o cenário brasileiro em relação ao trabalho escravo é bastante crítico. De acordo com o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, foram encontrados 60.251 trabalhadores em condições análogas às de escravo entre 1995 e 2022. Os estudos também apontam que:
- Os setores em que ocorrem mais casos de trabalho escravo no Brasil são agropecuária, construção civil e mineração.
- A maioria dos trabalhadores afetados são homens, mas também há casos de mulheres e crianças em situação de trabalho escravo;
- 64% dos trabalhadores resgatados são pretos ou pardos;
- 77% têm até o ensino fundamental incompleto.
Ana Virginia ressalta que esses dados são apenas a ponta do iceberg, pois muitos casos de trabalho escravo ainda são subnotificados e diversos trabalhadores continuam em situação de exploração sem conseguir denunciar seus empregadores. “O combate ao trabalho análogo à escravidão é um desafio constante para as autoridades brasileiras e para a sociedade como um todo”, destaca.
Lollapalooza e as denúncias
Um caso que escancarou essa triste realidade foi o do festival de música Lollapalooza, considerado um dos maiores do mundo. Uma semana antes do evento, que aconteceu em São Paulo entre os dias 24 e 26 de março, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou cinco trabalhadores que prestavam serviços para a marca.
Lollapalooza aconteceu este ano mesmo tendo acumulado denúncias de trabalho escravo (Foto: Maurício Santana/Getty Images)
Segundo o MTE, eles estavam em regime de informalidade, prestando serviços de logística de bebidas. O órgão relatou que os trabalhadores eram obrigados a dormir no local para fazer a vigilância das cargas. Assim, passavam a noite no chão ou em pedaços de papelão, sem energia elétrica e sem receber equipamentos de proteção individual (EPIs), nem mesmo papel higiênico ou sabonete.
Os empregados foram contratados pela Yellow Stripe, empresa terceirizada pela Time For Fun, que organiza o Lollapalooza no Brasil. Eles recebiam R$130,00 por dia de trabalho, frente a jornadas exaustivas que chegavam a 12 horas diárias. Em decorrência disso, o festival encerrou o contrato com a firma. O caso tramita agora no Ministério Público Federal.
Direito dos trabalhadores
Mas afinal, quais são os direitos básicos para que todos os trabalhadores possam exercer sua atividade profissional com dignidade?
A professora Ana Virgínia explica que o conceito de trabalho decente desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) se refere a um conjunto de direitos e condições que todos os trabalhadores devem ter para poderem exercer suas atividades profissionais com dignidade.
“Trabalho decente e desenvolvimento econômico” é o oitavo dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU (Foto: Getty Images)
A promoção do trabalho decente é uma das principais missões da OIT e deve ser uma prioridade para governos, empresas e sociedade civil em todo o mundo. Nesse sentido, a atividade inclui proteção e diálogo social, oportunidade de trabalho e renda, além da garantia dos direitos fundamentais no trabalho, como:
- Fim da discriminação no trabalho: todos os trabalhadores têm o direito de serem tratados com igualdade, sem discriminação baseada em gênero, raça, etnia, religião, orientação sexual, idade ou qualquer outra condição pessoal;
- A liberdade de associação e a negociação coletiva: os trabalhadores têm o direito de se organizar em sindicatos e de negociar coletivamente com seus empregadores, sem sofrer retaliações;
- A eliminação do trabalho forçado e a abolição do trabalho infantil: todos os trabalhadores têm o direito de trabalhar voluntariamente, sem serem submetidos a coerção ou violência, e as crianças têm o direito de serem protegidas de qualquer forma de trabalho;
- A segurança e a saúde no trabalho: os empregadores têm a responsabilidade de garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável para seus empregados, protegendo-os de riscos e perigos.
“Ademais, com base nas normas da OIT e no Direito do Trabalho brasileiro, pode-se afirmar que todos os trabalhadores têm o direito a um salário justo e igualdade de remuneração por trabalho de igual valor, a um horário de trabalho razoável, ao descanso e a férias remuneradas, dentre outros direitos básicos”, conclui a docente.
Penas e punições
Segundo Ana Virgínia, as empresas que exploram o trabalho análogo à escravidão estão sujeitas a diferentes tipos de punições. Algumas das possíveis sanções incluem multas, interdição do estabelecimento e punição criminal (de dois a oito anos de reclusão, além da pena correspondente à violência praticada).
A punição é aumentada caso o crime seja cometido contra crianças e adolescentes ou ainda por motivos de preconceito contra raça, cor, etnia, religião ou origem. Costumam ainda influenciar na mudança da pena os seguintes fatores:
- Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
- Manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Vale ressaltar que cada município pode desenvolver legislações de combate e punição a esse crime. Em Fortaleza, por exemplo, a Lei Ordinária nº 10.631, de 25 de outubro de 2017, dispõe sobre a cassação do Alvará de Funcionamento e demais licenças do município para qualquer empresa que faça uso de trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão.
A legislação busca monitorar, evitar e reparar casos de trabalho análogo ao escravo na sociedade (Ilustração: Getty Images)
Apesar de uma vasta legislação, a punição penal vem se mostrando falha no sistema jurídico. Conforme a pesquisa “Trabalho escravo na balança da justiça”, realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre 2008 e 2019, houve 2.679 acusados de violar essa lei.
Dos acusados, somente 112 (4,2% do total de acusados) foram condenados criminalmente. Desses, apenas 1% estaria em risco de prisão, pois com base nas penas aplicadas, o restante seria elegível para a substituição da pena por sanções restritivas de direitos.
“No entanto, essa possibilidade só seria concretizada se não ocorresse a prescrição da ação, o que não é improvável dada a lentidão da justiça nesses casos. A punição criminal é essencial para desestimular a prática do crime”, avalia a professora Ana Virgínia.
Como denunciar?
Hoje existem várias maneiras de denúncia. Visando a importância desse ato, Ana Virgínia listou algumas opções:
O Disque Direitos Humanos é um serviço do governo federal que recebe denúncias de violações de direitos humanos, incluindo trabalho escravo e tráfico de pessoas. O serviço é gratuito e funciona 24 horas por dia.
O MPT é responsável por fiscalizar o cumprimento das leis trabalhistas e pode receber denúncias de trabalho escravo. É possível entrar em contato com o MPT por meio do site, do aplicativo Pardal ou diretamente em uma das suas unidades em todo o país.
Função exercida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que tem como objetivo fiscalizar o cumprimento das normas trabalhistas e previdenciárias. É possível denunciar empresas que exploram o trabalho escravo através do site do Ministério do Trabalho ou diretamente em uma das suas unidades em todo o país.
Existem diversas ONGs que atuam na defesa dos direitos dos trabalhadores e no combate ao trabalho escravo, como a Repórter Brasil, a Comissão Pastoral da Terra e o Instituto Ethos. Essas organizações também podem receber denúncias e encaminhá-las para as autoridades competentes.
Desde 2020 as denúncias relacionadas a trabalho escravo foram agregadas em uma única plataforma digital, chamada Sistema Ipê. Esse é um mecanismo desenvolvido pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência e que permite qualquer pessoa fazer denúncias de forma anônima, fácil e segura.
Trabalho escravo em debate
Compreendendo a importância da discussões que englobam essa temática, o Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social (NEDTS) do PPGD, em parceria com a Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Ceará (ESA-OAB/CE), vai realizar o seminário “O Combate ao Trabalho Escravo em Redes Empresariais”.
O evento acontecerá no dia 14 de abril, às 14h, no Auditório A4. Na ocasião, especialistas vão abordar a temática a partir de três perspectivas: O papel das empresas na erradicação do trabalho escravo; as políticas públicas necessárias para a superação desse problema; e as questões de direito penal relevantes para se efetivar a punição criminal.
Serviço
Seminário “O Combate ao Trabalho Escravo em Redes Empresariais”
Data: 14 de abril de 2023
Horário: 14h
Local: Auditório A4