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Seg, 13 Março 2023 17:17

Entrevista Nota 10: Anna Beatriz Maia e a presença feminina na contabilidade e no futebol

Mestre e doutora em Administração e Controladoria, Anna Beatriz explica o que é controladoria e governança corporativa, além de falar sobre contabilidade em times de futebol e a presença feminina no mercado contábil


Ela é docente do curso de Ciências Contábeis e do Mestrado Profissional em Administração, além de coordenar o Núcleo de Apoio Fiscal (NAF) da Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)
Ela é docente do curso de Ciências Contábeis e do Mestrado Profissional em Administração, além de coordenar o Núcleo de Apoio Fiscal (NAF) da Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)

Aos 16 anos, Anna Beatriz Maia entrou na graduação em Ciências Contábeis da Universidade Federal do Ceará (UFC) sem fazer ideia do universo de possibilidades que se apresentaria a ela na profissão. Hoje, como contadora formada e gabaritada, afirma confiante: “Não tenho dúvidas que foi a melhor escolha que fiz!

Mestre e doutora em Administração e Controladoria, é especialista em Gestão Pública Municipal e executiva de futebol pela CBF Academy. Sua expertise em unir contabilidade com futebol — duas áreas que foram, e ainda são, majoritariamente dominadas por homens — culminou na experiência como diretora de futebol feminino do Fortaleza Esporte Clube em 2022.

Anna Beatriz é membro de Comitês Técnicos do Conselho Regional de Contabilidade do Ceará (CRC-CE) — CRC nas Escolas, Diversidade e Inclusão Social, Ensino Acadêmico) — e do Coletivo Contábil de Inclusão e Diversidade (Colid). Na Universidade de Fortaleza, ministra aulas dos cursos de Ciências Contábeis e do Mestrado Profissional em Administração (MPA), além de coordenar o Núcleo de Apoio Contábil e Fiscal (NAF) e o grupo de pesquisas Bate-Bola Acadêmico.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, a professora conversa sobre controladoria e governança corporativa, contabilidade em times de futebol e a presença feminina no mercado contábil, além de compartilhar um pouco de sua trajetória profissional.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Professora, o que te motivou a entrar na área de ciências contábeis? Poderia compartilhar brevemente sua trajetória na profissão? 

Anna Beatriz Maia – A contabilidade é conhecida por ter um mercado de trabalho vasto e sempre com muitas vagas e oportunidades. Eu sempre tive muita facilidade com números, e tenho familiares contadores. Então, quando prestei vestibular não foi tão inesperada a escolha pela profissão contábil. Contudo, naquela época, quando entrei no primeiro dia de aula na graduação com 16 anos, não fazia ideia do universo de possibilidades e oportunidades que me seria apresentado. Hoje, não tenho dúvidas que foi a melhor escolha que fiz!

Iniciei minha trajetória profissional na Universidade de Fortaleza, quando fui convidada pela professora Marcelle Colares Oliveira para integrar seu grupo de pesquisa como pesquisadora voluntária. Foi um ano intenso de pesquisas, mas bem produtivo e recompensador. Ao final, foi produzido um artigo científico, que foi apresentado no Congresso Brasileiro de Custos. Esta oportunidade permitiu que outra docente pudesse me conhecer mais de perto na pesquisa e me convidasse, no ano seguinte, para ser sua bolsista de iniciação científica. Tenho a honra de dizer que sou pesquisadora desde o princípio.

Fui bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UFC) por meio do projeto "A auditoria no contexto da Governança Corporativa", da professora Márcia De Luca, que me possibilitou alçar novos vôos. Nossa pesquisa resultou no artigo "Os Mecanismos de Auditoria Evidenciados pela Empresas Listadas nos Níveis Diferenciado de Governança Corporativa e no Novo Mercado da Bovespa", em que apresentei no Congresso AnpCont e que, com muita felicidade, tornou-se minha primeira publicação em revista científica de grande prestígio nacional: a Contabilidade Vista & Revista.

Ao fim, recebi novo convite para integrar outro projeto de pesquisa, mas já havia começado a estagiar na Associação Cearense de Estudos e Pesquisas (ACEP), convidada pela docente Glória Peter. Na ACEP, tendo como mentor o professor Marcus Machado, senti o primeiro “gostinho” da auditoria e controladoria pública. Pude participar da equipe organizadora do Concurso do Banco do Nordeste e aprender bastante com as diversas experiências e consultorias na gestão pública.

Como resultado científico desta parceria, não posso deixar de mencionar meu TCC "Programa de Educação Fiscal para crianças e adolescentes: um estudo nos Municípios de Fortaleza e Caucaia" — que nos fez ser uma das vencedoras do Prêmio Sefin de Finanças Municipais (2010), ganhar como prêmio dinheiro suficiente para comprar meu primeiro notebook, dar minha primeira entrevista a um jornal de grande circulação no Ceará, e apresentar tal artigo no Congresso USP. Ao finalizar a graduação, tendo essa trajetória acompanhada de perto por grandes mentores, meu destino não poderia ser outro que não o mestrado acadêmico. A partir de então, conheci outra professora e parceira importante que carrego até hoje: minha orientadora, Alessandra Vasconcelos.

Após dois anos de mestrado, senti a necessidade de ter mais experiência profissional antes de ir para a sala de aula. Então, me dediquei à gestão pública municipal, inicialmente como Controladora Geral do Município de Limoeiro do Norte e, depois, como Diretora de Orçamento e Contabilidade de Aquiraz. Com muitos casos práticos para serem trazidos à sala de aula, aceitei o desafio de iniciar a docência em algumas faculdades de Fortaleza.

Depois de conciliar academia e mercado, realizei o doutorado em Administração e Controladoria, tendo a felicidade de receber a mesma orientadora do mestrado. Juntas publicamos sete artigos em revistas científicas, dois capítulos de livros e dezenas de artigos em eventos, nacionais e internacionais, além de coorientações e bancas de TCCs e dissertações. Hoje, tenho a satisfação de tê-la como integrante do meu grupo de pesquisas cadastrado no CNPQ, o grupo de pesquisa Bate-Bola Acadêmico, criado em 2019, quando entrei na Unifor.

A partir das publicações — sobre contabilidade e desempenho no mercado do futebol, aspectos contábeis e de governança ao futebol feminino e desempenho dos clubes — e, em sequência, com a formação de Executiva de Futebol pela CBF Academy, consegui iniciar uma trajetória profissional também no mercado esportivo, tendo uma primeira experiência à frente da diretoria do Futebol Feminino do Fortaleza em 2022.

Entrevista Nota 10 – Você é mestre e doutora em Administração e Controladoria, contando com uma vasta experiência de atuação nesse campo. Como enxerga o papel da controladoria no sucesso da governança corporativa hoje em dia? São aspectos que podem ser vistos separadamente ou já são indissociáveis em uma boa gestão, tanto pública quanto privada? 

Anna Beatriz Maia – Em geral, muitos confundem governança e gestão, como se fossem a mesma coisa. É preciso compreender que a governança é o sistema pelo qual as organizações (públicas ou privadas) são dirigidas, incentivadas, monitoradas e avaliadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios (ou cidadãos, nas organizações públicas), conselho de administração, órgãos/instâncias externas (auditoria independente, controle social organizado) e internas (auditoria interna, ouvidoria, comissões e comitês) de apoio à governança e a alta administração (diretoria executiva). Já a gestão é o sistema pelo qual as organizações (públicas ou privadas) executam, controlam, agem e planejam novas ações, envolvendo a alta gestão (diretoria executiva), gestão tática (dirigentes) e gestão operacional (gerentes). Em suma, a governança define o direcionamento estratégico da organização e a gestão tem a função de executar os planos aprovados de forma a entregar os resultados definidos.

Sob essa perspectiva, a controladoria, geralmente subordinada à diretoria financeira (CFO, acrônimo de Chief Financial Officer), tem a função de detectar, prevenir e mitigar desvios, erros, ineficiências, fraudes, irregularidades e ilegalidades. Assim, apesar de informar e orientar a alta administração (diretoria executiva) no seu processo de gestão, também pode ser vista como uma ferramenta importante de governança, ao passo que verifica se as estratégias estabelecidas pelos shareholders estão sendo cumpridas ou não. Em suma, uma organização que possui uma controladoria bem estruturada — com pessoas qualificadas, processos bem definidos e adequada tecnologia —, possui maior capacidade de prever e agir perante os riscos existentes e potenciais, sendo eficaz quanto à estratégia definida pela governança e eficiente quanto à execução das atividades definidas pela gestão.

Entrevista Nota 10 – Segundo o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), a porcentagem de mulheres no mercado contábil em 2020 era de 47,4% – quase metade da força de trabalho desse setor. Neste Mês da Mulher, como podemos analisar a forte presença feminina hoje em uma profissão que, por muito tempo, foi dominada por homens? O que mais mudou de lá para cá?

Anna Beatriz Maia – Muito obrigada por essa pergunta. Como membro de três Comitês Técnicos do CRC-CE, dentre eles o da Diversidade e Inclusão Social, considero essa provocação relevante para que tenhamos cada vez mais uma classe inclusiva e comprometida com as questões sociais. Afinal, a contabilidade é uma ciência social. Inclusive, no ano passado, elaboramos (NAF/Unifor) um vídeo sobre a história da contabilidade sob a perspectiva da diversidade. Com os dados de hoje, (março/2023), somos 228.330 contadoras brasileiras ativas (43,4% do Brasil), sendo 5.579 cearenses (42% do Ceará). Os estados brasileiros que apresentam maior presença feminina na classe profissional ativa são do Norte: Amazonas (52,18%), Roraima (50,28%) e Pará (50,06%).

Então, em termos gerais, sim, ainda prevalece a dominância por homens na contabilidade, assim como em cargos de liderança em geral na sociedade, contudo, tivemos muitos avanços como já podemos perceber na dominância das mulheres nos estados do Norte. Essa força é tamanha que o XIII Encontro Nacional da Mulher Contabilista, que acontecerá de 20 a 22 de setembro de 2023, será em Manaus. O I Encontro Nacional da Mulher Contabilista — que ocorreu em 1991 na cidade do Rio de Janeiro —, junto com a 43ª Convenção dos Contabilistas do Estado do Rio de Janeiro, foi o marco para que milhares de mulheres contabilistas pudessem levar adiante o objetivo de promover o aprimoramento técnico-cultural, por meio de ações de incentivo a uma maior participação das contabilistas na vida social e política do país.

Na Universidade de Fortaleza, contamos com contadoras fortes e competentes naquilo que fazem, como: nossa Vice-Reitora de Ensino de Graduação e Pós-Graduação, Maria Clara Bugarim, contadora, primeira e única mulher a presidir o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), a Academia Brasileira de Ciências Contábeis e a Associação Interamericana de Contabilidade; nossa coordenadora do curso de Ciências Contábeis e Vice-Presidente da Comissão Técnica CRC nas Escolas, Alexandra Siebra; e outras professoras que, além de suas funções acadêmicas e profissionais, também compõem Comissões Técnicas do CRC-CE (Ana Paula De Melo, Roselene Del Vecchio e Welynadia Pereira).

Entrevista Nota 10 – Falando em presença feminina, você é executiva de futebol pela CBF Academy e, no ano passado, foi gestora de futebol feminino do Fortaleza Esporte Clube. Como foi a experiência de dirigir uma iniciativa esportiva desse porte? 

Anna Beatriz Maia – Foi uma experiência gratificante, de muito aprendizado e novos insights. Eu sou uma pessoa inquieta, curiosa e que busca aprender a todo instante. Então, ao finalizar meu doutorado, já busquei uma forma de continuar aprendendo e o Programa de Formação de Executivos de Futebol da Escola de Gestão da CBF Academy me possibilitou ter uma visão mais sistêmica, estratégica e multidisciplinar de Governança e Gestão no mercado do futebol, com a troca de experiências com presidentes, dirigentes e outros profissionais de clubes nacionais e internacionais.

Por sua vez, imediatamente receber o convite e participar do processo seletivo para Diretora do Futebol Feminino do Fortaleza Esporte Clube, foi uma honra. O que me motivou a aceitar esse desafio, sem sombra de dúvidas, foi o propósito de contribuir com a percepção do futebol feminino ou de mulheres como um produto no clube, que necessita de investimentos como outro qualquer, para que possa gerar resultados e lucro. Ou seja, minha missão ao aceitar esse desafio foi profissionalizar a gestão e os processos dentro do clube, com vistas à sustentabilidade do futebol feminino como negócio. Assim, em questão de tempo, a modalidade em nosso Estado poderia ser bem diferente, mais próspera e respeitável.

Entrevista Nota 10 – É possível perceber um movimento de inclusão de gênero e diversidade no futebol enquanto negócio? Esse posicionamento também inclui mudanças na gestão e no funcionamento internos dos clubes?

Anna Beatriz Maia – Sem dúvidas, há pequenos avanços neste sentido, como exigências da própria FIFA, CONMEBOL e CBF. Mas, infelizmente, dentro dos clubes a resistência ainda é muito grande. Faço um desafio a você: acesse os sites dos clubes de futebol brasileiros, ou mesmo cearenses, e analise a sua composição de diretoria e conselho. Verá que a presença feminina é muito rara.

Na Unifor, coordeno o projeto de pesquisa "Diversidade, Gestão e Governança: Fatores Determinantes ao Desempenho dos Clubes Listados no Women'S Club World Ranking 2022", com fomento da Fundação Edson Queiroz e da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), aos bolsistas de iniciação científica (Davi Vettorazzi Rola e Rafael Monte de Carvalho). O projeto tem como objetivo geral analisar os fatores determinantes ao desempenho dos clubes listados no Women's Club World Ranking 2022, considerando o perfil de diversidade na gestão e governança. Uma de nossas hipóteses, que pretendemos verificar se pode ser aceita ou não, é exatamente que esse posicionamento diverso e inclusivo inclui mudanças na gestão e no funcionamento internos dos clubes (características institucionais).

Entrevista Nota 10 – A Federação Internacional de Futebol (Fifa) aponta que o futebol mundial movimenta cerca de US$286 bilhões por ano, equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) de um país como a Finlândia. Já a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) indicou que o esporte movimenta um total de R$52,9 bilhões na economia nacional, representando 0,72% do total do PIB. De que maneira as novas formas de consumo, como a busca pela responsabilidade socioambiental e a ascensão das plataformas digitais, têm influenciado nas receitas dos clubes?

Anna Beatriz Maia – Sem dúvidas, a ascensão das plataformas digitais têm influenciado e podem influenciar ainda mais as receitas dos clubes. O streaming, especialmente, promete revolucionar com novas fontes de receitas e na assinatura de contratos com valores recordes, inaugurando uma nova era de investimentos no futebol brasileiro, que viabiliza melhorias na infraestrutura dos clubes e em suas equipes. Isto é exatamente o que estamos vendo acontecer com alguns clubes brasileiros, como é o caso do São Paulo FC.

Em 2022, o São Paulo já evidenciou em suas Demonstrações Financeiras a monetização de conteúdo de áudio e vídeo em plataformas de streaming e nas principais mídias sociais, nas quais figura entre os clubes com maior engajamento, tanto no Brasil como na América Latina. Por outro lado, apesar da maioria dos clubes brasileiros serem constituídas sob o formato de Associações Sem Fins Lucrativos, e portanto, presume-se o compromisso social destas entidades, é insipiente ainda a evidenciação de tais informações pelos clubes, e por sua vez, não se é possível identificar quantitativamente a influência da responsabilidade socioambiental com as receitas dos clubes.

Seria muito bom que as entidades desportivas atendessem a todos os princípios de governança (transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa), para que se fosse possível avaliar com efetividade a gestão, e por sua vez, o desempenho destas entidades desportivas. Contudo, ainda há muito que se caminhar neste sentido. Apesar de, no Brasil, a Interpretação Técnica Geral (ITG) 2003 (R1 - Entidade desportiva emitida pelo Conselho Federal de Contabilidade) estabelecer critérios e procedimentos específicos de avaliação, de registros contábeis e de estruturação das demonstrações contábeis das entidades desportivas; e, a Lei federal nº 13.155/2015, estabelecer princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira e de gestão transparente e democrática para entidades desportivas profissionais de futebol e criar a Autoridade Pública de Governança de Futebol (APFUT) — com a missão de fiscalizar, regular e disciplinar as condições para manutenção das entidades esportivas no Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut); muitos artigos científicos demonstram a baixa evidenciação e cumprimento dos clubes de futebol brasileiros a tais regulamentações.

É claro que, com a Lei federal nº 14.193/2021, que institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, a expectativa é de que os clubes institucionalizem mudanças institucionais por pressões isomórficas: coercitivas (leis e regulamentos), normativas (métodos e processos definidos pelas associações profissionais) ou miméticas (cópias de práticas consagradas por outros clubes - benchmarking).