null Entrevista Nota 10: Joisa Barroso e o urbanismo no desenvolvimento social

Ter, 18 Outubro 2022 10:00

Entrevista Nota 10: Joisa Barroso e o urbanismo no desenvolvimento social

Arquiteta e urbanista doutora em Planejamento Urbano e Regional, Joisa Barroso compartilha sua trajetória no urbanismo e no poder público, além de mostrar a importância das discussões sociais no âmbito da moradia


(Foto: Arquivo pessoal)
(Foto: Arquivo pessoal)

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), é dever do Estado garantir o direito à moradia como um direito humano fundamental vinculado à dignidade e ao direito à vida. A arquiteta e urbanista Joisa Maria Barroso Loureiro conhece bem a discussão e defende, com afinco, os movimentos populares que buscam assegurar esse bem vital à humanidade. Especialmente aqui no Ceará.

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza, Joisa é mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua atuação é focada nos temas sobre cidade, habitação de interesse social, planejamento urbano e regional, regularização fundiária, ecologia e organização do espaço urbano.

As experiências em órgãos públicos englobam passagens pelo Departamento de Ambiente Urbano (DAU) da Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano (SRHU), setor que pertence ao Ministério do Meio Ambiente, e pela Prefeitura de Acaraú, onde foi convidada para elaborar o Plano Diretor do município. Ela também foi coordenadora do Programa Cidade Sustentável da ONG “Cearah Periferia”, que tinha como principal projeto a Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular (EPPC).

De 2003 a 2005, chegou a participar do Conselho Nacional das Cidades – órgão que estuda e propõe diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), além de acompanhar a sua execução. Atualmente, a pesquisadora faz parte do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles (UFRJ/INCT/CNPq/CAPES).

Na Entrevista Nota 10 desta semana, Joisa Barroso fala sobre como foi parar no área do planejamento urbano e pontua a importância da infraestrutura urbana de qualidade para o desenvolvimento social. Ela ainda conta mais do seu projeto em parceria com a Prefeitura de Fortaleza sobre as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), além de compartilhar sua experiência na formação política junto às lideranças comunitárias.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Você tem uma sólida carreira dentro da arquitetura e do urbanismo, especialmente na área de planejamento urbano. Como surgiu o interesse nesse campo de atuação?

Joisa Barroso – Esse caminho aí foi bem simples: surgiu por necessidade. Estava trabalhando em um escritório de arquitetura e eu fiquei desempregada. Surgiu um convite por parte da prefeitura de Acaraú – isso falando em 1999, por aí – para ir trabalhar na coordenação do Plano Diretor do município. E foi assim que começou o meu interesse pelo tema. Como eu não sabia absolutamente nada sobre isso, tive que estudar em um mês o que eu não estudei sobre planejamento em cinco anos de faculdade. E aí eu fui, me envolvi, estudei – estudei bastante – e daí não parei mais de trabalhar com isso.

Por isso que eu sempre falo aos meus alunos que a gente não pode, principalmente dentro da Universidade, estar fechando as portas e as janelas sobre os diferentes temas que a universidade oferece. De trabalho, de estudo, de pesquisa, de extensão. Porque a gente não tem condição de prever as nossas necessidades profissionais e aquilo que a gente vai ter que fazer e trabalhar para conseguir sobreviver com a profissão que escolheu.

Depois de Acaraú, fui trabalhar com consultoria na área de urbanismo, com planos de ação turística (o Centro de Apoio ao Romeiro, em Juazeiro; o Roteiro da Fé). Comecei a entrar realmente na área do urbanismo, do projeto, da pesquisa, do planejamento e não parei mais. Fui pro Cearah Periferia, que também tinha uma atuação muito grande na época, principalmente com o surgimento do Ministério das Cidades, em 2003. Aí surgiu toda uma demanda na área de planejamento urbano, dos Planos Diretores. O Cearah Periferia foi contratado pelo Ministério da Cidade para vários projetos de regularização fundiária. Toda a agenda da política urbana, não havia aqui, a nível local, ninguém que trabalhasse com leis como o Estatuto da Cidade nem com a perspectiva do planejamento urbano a partir de uma nova questão – que é a questão da terra.

Então nós, dentro do Cearah Periferia, assumimos essa política nacional de implementação dessa lei, que foi uma das prerrogativas iniciais do Ministério das Cidades: a implementação de planos diretores participativos à luz do Estatuto da Cidade; e, também, outra política importante inicial foi o programa Papel Passado, de Regularização Fundiária. A gente começou a trabalhar e a desenvolver ainda mais a nossa atuação nessa agenda, nessas políticas.

Entrevista Nota 10 – A moradia é um assunto pertinente e vital a todo ser humano, mas muitas vezes acaba sendo negligenciado quando falamos sobre bem-estar e qualidade de vida. Por que o acesso tanto à moradia quanto à infraestrutura urbana de qualidade é essencial para o desenvolvimento social?

Joisa Barroso – A moradia é uma questão essencial. Não existe ser vivo – aí eu não estou falando nem de seres humanos – que não necessite de duas coisas: de abrigo seguro e adequado às suas condições de reprodução; e de fonte de recursos para que ele consiga viver. Então nessa perspectiva, trazendo para a questão humana, é a moradia e o trabalho. O ser humano não existe sem essas duas coisas. E em um sistema capitalista como o nosso, para além da questão da moradia e do trabalho, ele precisa de uma renda adequada para lidar com as condições de saúde, de educação, de lazer, de cultura. Porque estas questões, infelizmente, assim como a moradia, foram transformadas em mercadoria.  Você não tem dinheiro, você não consegue acessar. Não aquilo de qualidade.

A gente tem o Sistema Único de Saúde (SUS), a educação pública. Mas a gente sabe que vem um processo crescente de sucateamento e abandono por parte do Estado. Então essas questões têm sido fundamentais para o desenvolvimento da sociedade em termos de que as pessoas que não conseguem ter uma renda para alcançar a aquisição dessas mercadorias, infelizmente vão ser alvo de um processo de precarização. Elas entram no que o pessoal da assistência social chama de “círculo vicioso da pobreza” – muito fácil de você entrar e muito difícil de sair. Então essa questão da moradia é fundamental, e ela tem sido negligenciada exatamente pelo que eu acabei de falar: não é que ela se tornou negligenciada, ela se tornou uma mercadoria como outra qualquer. Ela deixa de ser bem comum. Não é que o Estado negligencia, é porque ele muda a forma como ele observa e trata essas questões.

Infelizmente, a partir do momento que você encara essas questões – moradia, saúde, educação, cultura, transporte, até mesmo o próprio trabalho – em uma relação meramente de mercadoria, as pessoas que não têm renda para acessar essa mercadoria passam a ser excluídas do acesso de qualidade a esses bens. Então não é questão de negligência. É questão de uma ideologia que transforma a forma como as pessoas passam a se relacionar com a moradia, com a saúde, com a educação, com o lazer, com a cultura, o transporte. A própria natureza também foi transformada em mercadoria. Há toda uma questão.

O Brasil é signatário da Carta dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais. Inclusive o direito à moradia é um direito humano social. E a partir do momento que ele se torna signatário, ele assume compromissos. Ele recebeu benefícios financeiros, captou investimentos (inclusive privados), por muitos anos contraiu dívida externa para se desenvolver da forma que se desenvolveu. Então você assume que o estado brasileiro está recebendo esses recursos para conseguir prover à sociedade o acesso a esses direitos: moradia, saúde, cultura, educação, a própria questão dos direitos econômicos, de trabalho e renda. Então, não é favor, não é o Bolsa Família. É um direito que o Estado está assumindo.

Essa questão da moradia vencer essa lógica mercadológica é um desafio. Tem que realmente ser assumido enquanto uma política. Infelizmente diversas cidades brasileiras caminham a passos lentos nessa questão da moradia. Praticamente não existe cidade nesse País, sobretudo de médio e grande porte, que não tenha favela. Inclusive, em cidades de pequeno porte você encontra favela. Entre o discurso, a política e as leis – que a gente também já tem muita lei construída nessa questão da moradia –, a prática do Estado é de negligência, sim. Ele não assume formalmente ou faz política, como a gente diz, “para gringo ver”. Mas realmente nunca encarou. Principalmente para a população mais pobre, que foi excluída na época do Banco Nacional da Habitação (BNH), no Minha Casa Minha Vida – apesar dos avanços e da retomada da política nacional de produção de moradia e regularização fundiária. E, infelizmente, agora estamos totalmente sem políticas.

Entrevista Nota 10 – Recentemente você teve um artigo publicado sobre Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) da capital cearense. Realizado por meio do convênio entre a Unifor e a Prefeitura de Fortaleza, esse trabalho levanta um tema pouco conhecido pela população geral, mas de extrema relevância para a organização da sociedade. Poderia explicar o que são os ZEIS e qual é a importância de trazer essa discussão a público?

Joisa Barroso – Na Constituinte 1988, foram aprovados, no capítulo que trata da política urbana, apenas dois únicos artigos, o 182 e o 183. O artigo 182 traz duas questões muito importantes: o Plano Diretor passa a assumir uma política de desenvolvimento urbano do município, que tem que ser inclusive elaborado de forma democrática, de forma participativa. O artigo 182 também traz a questão de que você pode ser proprietário de um imóvel, mas o teu imóvel – ou seja, a terra urbana – tem que cumprir uma função social para a sociedade. Porque, inclusive, toda infraestrutura que dá valorização para a terra urbana é feita pelo pagamento de impostos, sobretudo imposto sobre consumo de toda a população. Aquele investimento que a sociedade fez na valorização de determinadas áreas da cidade, por exemplo, tem que voltar, tem que cumprir uma função social.

E o artigo 183 trouxe outra questão que deu o pontapé para as ZEIS. Foi a questão de reconhecer naquelas pessoas – que ocupam imóveis há mais de cinco anos, imóveis com 250m² ou menos, imóveis que utilizam para moradia, que só têm aquele imóvel no campo ou na cidade, que aquele imóvel nunca foi questionada a posse pelo pseudo proprietário, nunca houve uma ação de desapropriação –, essas pessoas, atingindo esses critérios, o Estado tem que reconhecer a propriedade e promover o processo de regularização fundiária dessas pessoas. E aí é que estão as ZEIS.

As ZEIS surgiram em Recife e em São Paulo por volta de 1984 e 1986. São comunidades, favelas, assentamentos precários e lideranças nessas comunidades que se juntam a ONGs e universidades, organizados pelas igrejas que lideram esses movimentos, no sentido de pensar em um instrumento que impedisse o processo crescente de remoção dessas comunidades que estavam sendo expulsas – tanto pelas prefeituras, como pelo mercado imobiliário. Então elas se reuniram e pensaram nesse instrumento, que foram Zonas Especiais de Interesse Social, onde, a partir de um movimento de pressão bem organizado, conseguiram que as prefeituras assumissem o instrumento formalmente na época.

Aí é que está o benefício de você se transformar em ZEIS: Você tem que ser prioridade no processo de regularização fundiária, você tem que ser prioridade para determinados projetos de infraestrutura, de melhoria habitacional que possibilite uma regularização fundiária. Não apenas que dê o papel da casa, mas que também traga melhorias para aqueles moradores e eles queiram ficar. Se der só o papel da casa sem melhoria, sem infraestrutura, ele venderia mais rápido, como aconteceu no Chile e no Paraguai. Porque a regularização ela tem que ser da posse, da regularização jurídica, mas tem que ter a regularização urbanística, a regularização ambiental, das questões da moradia. Todas essas questões têm de acontecer nas Zonas ao mesmo tempo e de forma célere. Por quê? Porque a ZEIS é assentamento precário, ela é passível de regularização fundiária, ela atende aqueles critérios que eu falei lá do 183 da Constituição, e ela está sob ameaça de remoção. Todo mundo tem direito à regularização fundiária. Mas a ZEIS, o critério maior para além de ser favela, para além de ser passiva de regularização, é ela estar sob ameaça de remoção. Seja por parte do estado, seja por parte do setor imobiliário.

Por isso que a regularização tem que ser integrada. A partir dessa priorização, você tem a inclusão dessas pessoas porque elas acessaram a terra bem localizada. Elas têm direito de estar ali. Elas têm direito constitucionalmente, inclusive, que o estado reconheça a posse delas e transforme isso em propriedade legítima. Título de propriedade, no caso de terra privada que foi ocupada. Tem que trazer melhorias às condições de vida para que aquela Zona passe a fazer parte, de forma digna e sustentável, do ambiente onde ela já está e ela deixe de ser ZEIS. Esse é o grande objetivo: deixar de ser. Porque enquanto ela é ZEIS, é porque ela ainda não atingiu o grande objetivo que é a inclusão social dessas famílias na terra que é delas por direito.

Entrevista Nota 10 – As pessoas que vivem na periferia e em demais assentamentos não-convencionais lidam com um descaso histórico e as consequências decorrentes de tal situação. Apesar disso, como esses grupos têm conseguido conquistar seus direitos e lutar pela dignidade de viver em Fortaleza?

Joisa Barroso – Esses grupos, essas lideranças comunitárias, essas pessoas conquistam as coisas através de muita luta. Elas participam dos fóruns, são elas que participam das coisas da Prefeitura. Por exemplo, na revisão do Plano Diretor, a maioria das pessoas que estão lá participando são pessoas pobres. São essas lideranças comunitárias. Elas estudam, elas procuram se informar, elas ocupam a Câmara e a Prefeitura. Estão em constante articulação com ONGs, sendo assessoradas, fazendo projetos. Como o pessoal lá, por exemplo, do Plano Popular lá do Titanzinho, que a gente tem acompanhado e tem dado assessoria para eles.

Eles estão em um processo constante de ameaça de remoção, as casas marcadas, então começaram a se organizar em torno da ideia de fazer um Plano Popular de Regularização Fundiária. Estão lá conseguindo fazer o plano. Conseguiram inclusive que, a partir desse Plano, a Prefeitura assumisse a elaboração do Plano de Regularização Fundiária deles. Eles foram a única ZEIS esse ano que foi contemplada com o Plano Integrado de Regularização Fundiária. Mas estão lá, se mobilizando, indo atrás. É assim que eles conseguem as coisas: participando e se colocando, se contrapondo a essa lógica de abandono, de remoção. É na luta cotidiana, indo atrás de recursos para conseguir resistir e melhorar as condições de vida deles.

Entrevista Nota 10 – Durante seu período como coordenadora do Programa Cidade Sustentável, da ONG “Cearah Periferia”, você pôde expandir sua atuação sobre o espaço urbano. O projeto Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular (EPPC), apoiado pela União Européia, é um dos principais destaques desse momento. Como a Escola ajudou a trazer luz ao desenvolvimento urbano integrado e solidário?

Joisa Barroso – A EPPC era um projeto de formação política. Você tinha a Escola formada por um curso de longa duração onde eram selecionadas 40 pessoas dentre lideranças comunitárias e estudantes universitários (a maioria eram lideranças comunitárias). Eles eram selecionados na Semana da Capacitação em Massa, na qual a gente se distribuía pela cidade de Fortaleza, em cada Regional, e fazia eventos, atividades, seminários, oficinas. Essas lideranças recebiam todo o processo de capacitação, de formação política na área da moradia, os instrumentos do Estatuto da Cidade, as leis, as normas, além de outras questões com relação à questão dos direitos.

Em toda essa formação, durante oito meses, havia muitos professores da UFC – como Renato Pequeno, José da Silva Borzacchiello, eu mesma dei aula na escola antes de ser coordenadora. Então era um espaço de formação política onde dava condição e subsídio para que essas lideranças se engajassem nos movimentos e procurassem mudar a realidade delas através de um protagonismo, da incidência política. Elas recebiam capacitação para se qualificar do ponto de vista político, do entendimento das leis, dos instrumentos legais, para ir atrás e exigir que o Estado trabalhasse e favorecesse melhorias nas condições de vida deles.

Foram mais de 300 lideranças comunitárias em sete anos de EPPC que a gente formou, fora os cursos de curta duração, ações e campanhas. E essas lideranças comunitárias se mobilizam até hoje e continuam atuando. Uma pena que a escola acabou. Porque a cooperação jurídica internacional sai do urbano de 2007 a 2009. Ela começa a sair do Brasil porque ele começa a ser considerado como um país em desenvolvimento, um país rico. O problema era a distribuição da riqueza, mas não havia mais motivo para a cooperação internacional continuar no urbano, então ela fica só na parte ambiental.