seg, 6 fevereiro 2023 10:24
Entrevista Nota 10: Rafael Mota e o poder da soberania nacional
Pós-doutor em Ciências Militares, o advogado criminalista fala sobre interesses de pesquisa e analisa questões jurídicas sobre o conflito Rússia-Ucrânia, assim como as consequências da invasão aos Três Poderes em Brasília
A simpatia e cordialidade na conversa contrastam com os temas densos e complexos estudados pelo advogado criminalista Rafael Gonçalves Mota. Docente do curso de Direito da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, ele desenvolve pesquisas sobre direito, tecnologia e guerra — assuntos com os quais se empolga prontamente em discutir.
No seu pós-doutorado em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), o jurista se debruçou sobre tópicos como Direito Internacional Humanitário, responsabilidade do comandante militar e armas autônomas letais. Ainda conta com uma passagem na Escuela Superior de Guerra (ESDEG) da Colômbia, onde estudou Fundamentos de Inteligência Estratégica em parceria com a Escuela Superior de Guerra del Ejército do Peru.
Mestre e doutor em Direito Constitucional pela Unifor, Rafael elaborou sua dissertação sobre direito penal, crime organizado e terrorismo, além da tese de doutoramento sobre guerra cibernética e estado democrático de direito. Ele também faz parte da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).
Na Entrevista Nota 10 desta semana, o professor fala sobre interesses de pesquisa na trajetória acadêmica, assim como analisa questões jurídicas sobre o conflito Rússia-Ucrânia e as consequências da invasão aos Três Poderes em Brasília, que aconteceu no início de janeiro.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 – Professor, você possui uma sólida trajetória nos estudos sobre Direito relacionado a tópicos como guerra, democracia, segurança e cibernética. Poderia contar como surgiu o interesse por essas áreas de pesquisa?
Rafael Mota – Desde minhas pesquisas de mestrado, estudo os estados constitucionais excepcionais em matéria de segurança pública e defesa. Minha dissertação investigou os modelos previstos na Constitucional Federal de 1988 para o enfrentamento do crime organizado e do terrorismo.
Ao iniciar o doutorado, incorporei os temas de tecnologia e cibernética, desenvolvendo tese sobre a análise da guerra cibernética à luz da Constituição brasileira. Ao final, proponho a criação de um novo modelo de estado constitucional de exceção: o Estado de Emergência Cibernética, previsto ao lado dos Estados de Sítio e de Defesa, a ser ativado quando existisse um risco cibernético grave contra o Estado Nacional.
Aprofundando esses estudos, tive a oportunidade de fazer um estágio pós-doutoral em Ciências Militares na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), no Rio de Janeiro. Lá pude desenvolver pesquisa sobre armas dotadas de inteligência artificial, completamente autônomas, e a responsabilidade dos comandantes militares que viessem a decidir pelo seu uso à luz do Direito Internacional dos Conflitos Armados. O resultado desses estudos foi um artigo científico que, em breve, será publicado por uma conceituada revista de Direito Internacional.
Entrevista Nota 10 – Qual a diferença entre defesa e segurança nacional? De que forma esses elementos estão ligados à soberania de um país?
Rafael Mota – Diversas são as diferenças entre os conceitos, apesar de possuírem vários pontos de contato, muitas vezes indissociáveis.
Tradicionalmente, o conceito de defesa nacional está relacionado ao conjunto de medidas estatais (militares e não militares) destinadas a dotar o país de proteção frente a ameaças externas, sejam estatais ou não estatais. Ele envolve a preparação das Forças Armadas nacionais em ações de dissuasão, bem como ofensivas e defensivas, criação de meios logísticos e industriais destinados a prover o país com meios de defesa, estabelecimento de uma força de reservistas que possam ser mobilizados em tempos de guerra, entre outros.
Já a segurança nacional apresenta um conceito mais amplo. Na modernidade, passou a albergar todas as ameaças internas e externas ao Estado Nacional, desde ações puramente criminosas (muitas vezes relacionadas ao crime organizado), terrorismo e insurreições políticas ou sociais, entre outras condutas que gerem o comprometimento potencial ou real da sensação de segurança da sociedade.
Ambos os conceitos são fundamentais à soberania de um país. Sem a preservação dos elementos essenciais de um Estado — território, poder de mando e população —, não é possível ao ente estatal cumprir suas obrigações fundamentais: promoção do bem-estar, segurança e harmonia do povo. Daí serem tão necessários e importantes os estudos em matéria de segurança e defesa nacional, considerando que eles devem ser sempre multi e interdisciplinares, envolvendo as ciências jurídicas e militares, relações internacionais, entre outros campos do saber acadêmico.
Entrevista Nota 10 – Agora em fevereiro, o conflito entre Rússia e Ucrânia completa um ano desde seu estopim, contabilizando milhares de mortes e diversas ocupações militares em territórios no país do Leste Europeu. Organizações como a Anistia Internacional acusam o estado russo de violar o direito internacional e a soberania ucraniana. Como o mundo jurídico tem lidado e discutido o assunto? É possível vislumbrar alguma solução ou saída estratégica para amenizar esse embate?
Rafael Mota – Infelizmente, as guerras fazem parte da história da humanidade e estão diretamente relacionadas à essência do homem, sendo elemento constante em todas as eras históricas conhecidas.
A invasão russa ao território ucraniano não encontra qualquer justificativa no direito internacional, devendo ser considerada como um ato ilegal, já que ofende não apenas as normas aplicáveis — a Carta da ONU, por exemplo —, como os conceitos essenciais do chamado “Direito da Guerra”.
Ocorre que, quando analisamos o cenário internacional, especialmente as relações internacionais, diversos são os elementos que tornam a questão mais complexa. No panorama internacional, não existe um único ente dotado de soberania e autoridade, com necessário poder de coerção, que possa impor sua vontade política e um ordenamento jurídico internacional fixado. Em outras palavras, diferente do cenário interno, onde os países são detentores de jurisdição e capacidade coercitiva, no plano multinacional isso não existe.
Assim, fazer frente e reagir a uma agressão militar ilegal como a russa impõe a utilização de múltiplos atores (estatais e não estatais), que reagem em diversas frentes, desde as políticas, passando pelas puramente militares ou econômicas.
Esse conflito representa um ponto de ruptura com a realidade fática que existia na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial: uma guerra de fronteiras com invasão de território. Tal fato, bem como o conhecido interesse russo em ampliar sua projeção de poder na região, fazem com que o futuro seja incerto, não sendo ainda possível prever quanto tempo ainda durará a guerra. Porém, algo é certo: as relações de poder internacionais já não serão as mesmas, havendo grande interesse de diversos países, especialmente os que fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em voltar a investir pesadamente em suas forças militares.
Entrevista Nota 10 – Seguindo o tema “conflitos”, aqui no Brasil tivemos uma situação que também chamou a atenção da comunidade internacional com a invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília. Visando mitigar as ações criminosas, o atual presidente decretou uma intervenção federal, encerrada na última terça-feira, na capital brasileira. A medida, de caráter excepcional e temporário, afasta a autonomia dos estados, Distrito Federal e municípios. Apesar de parecer contraditória, de que forma essa decisão funciona para garantir a manutenção da democracia? A soberania nacional entra nessa conta?
Rafael Mota – Os eventos ocorridos em Brasília no último dia 8 de janeiro foram gravíssimos sob diversos ângulos, notadamente o político e o jurídico. Não há dúvidas que a intenção dos criminosos era não apenas a agressão física aos Poderes da República, mas, principalmente, uma ação violenta contra a autoridade que eles representam.
Havia ali, ao que parece e na direção que as investigações apontam, uma ação deliberada de — a pretexto de contestar as eleições presidenciais — realizar um golpe de Estado que impusesse pela força outro caminho político ao país, abandonando o resultado legítimo extraído das urnas. Diante disso, foi necessário que o Estado utilizasse de instrumento coercitivos. Lembrando que a coerção, dentro dos limites constitucionais e legais, é atributo essencial do ente estatal para que ele preserve não apenas o exercício de seu poder, mas a legitimidade de suas ações.
A defesa da democracia, essencial no modelo constitucional em vigor desde 1988, não impede o uso de mecanismos de força pelo Estado, apenas os vincula a situações excepcionais, com os devidos controles legais e jurídicos. Nesse sentido, a intervenção federal é uma dessas ferramentas constitucionais de exceção, prevista para o enfrentamento de situações igualmente excepcionais, como foi o caso.
Em tudo isso, a soberania nacional sempre é lembrada — e, sim, “entra na conta” — porque, quando a compreendemos do ponto de vista acadêmico, é importante lembrar que ela possui duas dimensões básicas: a primeira é a soberania externa, caracterizada pela capacidade de um país de se fazer respeitar frente a outros; a segunda é a sua face interna, marcada pela possibilidade de o ente estatal impor ao povo a observância de seu ordenamento jurídico e de sua jurisdição.
Assim, o grave ataque aos poderes constituídos que assistimos no início de janeiro representa, sim, um risco concreto à soberania estatal. Daí porque merecem ser enfrentados com toda a energia institucional possível — dentro, obviamente, de parâmetros legítimos e constitucionais.
Entrevista Nota 10 – Responsável por “reorganizar” a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, o interventor Ricardo Cappelli entregou, no dia 31 de janeiro, um relatório que levantou as principais falhas no comando da segurança da capital, além de diversos dados de inteligência que já apresentavam um risco de invasão e depredação dos prédios públicos, mostrando um nível de organização virtual nos ataques. O que essa série de questões representa para a imagem da segurança e defesa nacional? Seria possível uma atuação em cibersegurança para evitar o que aconteceu?
Rafael Mota – Muito ainda há que se investigar, porém alguns pontos já parecem claros. Primeiro, houve uma ação organizada e financiada que visava promover uma contestação violenta do resultado das eleições e imposição de um novo modelo de governo. Da mesma forma, está evidenciado que muitas das forças de segurança — quer do Distrito Federal, quer da União — falharam em diversos aspectos. Resta saber se por negligência ou por ato deliberadamente intencional. Isso, apenas o aprofundamento das investigações irá responder.
Porém, algumas conclusões já são evidentes. Vivemos em uma sociedade não apenas extremamente conectada ciberneticamente, mas exposta virtualmente em redes sociais e outros meios de grande alcance. Assim, é importante que as instituições públicas em geral, assim como as forças responsáveis pela segurança pública e nacional, entendam que o maior conhecimento das questões cibernéticas é caminho indispensável para a maior promoção da defesa social e estatal. Aquilo que vivemos no chamado ciberespaço, esse ambiente etéreo e muitas vezes não visível, reflete e ecoa no nosso mundo “real”. Com isso, uma maior atuação cibernética do Estado poderia ter prevenido ou minimizado a gravidade das ações.