qui, 10 dezembro 2020 14:47
Afinal, o que é comer bem?
Nutricionistas e psicólogos da Universidade de Fortaleza explicam qual o sentido da alimentação e dão dicas para alimentar o corpo e a alma
Nem a dieta rigorosa e inflexível, nem o alimento como tapa-buraco de um vazio existencial. Até porque não há receita única ou ingredientes insubstituíveis quando o desejo é simplesmente aprender ou reaprender a comer bem. Amplo, o conceito da boa alimentação é tão biológico quanto psicológico, afetivo, social, cultural, político e econômico. Assim pensa a nutricionista Ana Paula Oliveira de Queirós, que coordena o Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (PRONUTRA) da Universidade de Fortaleza, instituição ligada à Fundação Edson Queiroz. Para ela, atentar para o que comemos, por quê comemos e como comemos sempre estará na ordem do dia.
“Não podemos negligenciar todo o simbolismo e o significado que a comida condensa na vida dos seres humanos. O alimentar-se reflete a relação que temos conosco e com os outros, com nossas histórias e memórias. Envolve, portanto, autoconhecimento e autorrespeito, porque diz sobre a conexão e entendimento com nosso corpo. Por isso, comer bem também requer um pouco do nosso tempo e da nossa atenção, já que a rotina precisa ser organizada em torno dessa necessidade. Comer com consciência e atenção plena, prestando atenção no próprio ato, na textura, cor, sabor e quantidade do alimento... Comer de forma intuitiva: as crianças são comedoras intuitivas natas e a gente vai perdendo isso ao longo da vida, esse olhar diferenciado e holístico para a comida”, observa Ana Paula.
“Comer é uma prática de autocuidado. Quanto autocuidado existe na sua forma de comer ou nas suas escolhas alimentares?” - Ana Paula de Queirós, coordenadora do programa PRONUTRA da Unifor (Foto: Ares Soares)
Para ser prazer, equilíbrio e consciência, ao invés de punição, sacrifício ou culpa, o comer bem prima por digerir o que motiva ou está por trás de nossas escolhas alimentares. Eis a investigação interdisciplinar levada a cabo no PRONUTRA, programa pioneiro do curso de Nutrição da Unifor, criado em 2005. “Em 2020, o Pronutra completa 15 anos de cuidado ambulatorial junto a pessoas que apresentam os mais diversos transtornos alimentares, como anorexia nervosa, bulimia nervosa, Transtorno da Compulsão Alimentar (TCA), Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE), entre outros. Atendemos também às famílias dos pacientes e em 2019 criamos o grupo ‘Para Além do Peso’, especialmente voltado para mulheres com obesidade. A equipe formada por nutricionistas, mas também psicólogos e psiquiatras, busca justamente melhorar essa relação com a comida e o corpo através do autoconhecimento”, reitera Ana Paula, comemorando particularmente o acolhimento de uma parcela da população que, sem o Pronutra, não teria condições financeiras para acessar tratamentos particulares.
Ao prescindir das fórmulas prontas e olhar mais atentamente para o comportamento alimentar, a Nutrição Comportamental elege como prato principal o desafio comum de conhecer e ouvir o próprio corpo, seja para entender o chamado da fome ou encontrar o limite da saciedade. “Comer é uma prática de autocuidado. Quanto autocuidado existe na sua forma de comer ou nas suas escolhas alimentares?”, questiona Ana Paula. Para ela, comer bem, por exemplo, pode ser “descascar mais e desembalar menos”. Ou optar por alimentos in natura e levar em conta a procedência deles. Pode ser também desenvolver habilidades culinárias, tudo para se ter contato com a comida, valorizando e ritualizando o tempo do preparo. Ou ainda atentar para o equilíbrio entre grupos alimentares construtores, reguladores e energéticos, sem excluir nenhum. “É importante saber entender e atender da melhor forma as sensações enviadas para nosso corpo. É quando a gente não reconhece a saciedade que acaba ultrapassando limites e quantidades. Percebendo tudo isso, comer bem se torna algo prazeroso porque passa pelo filtro de suas necessidades, sua rotina e seu bolso, equilibrando todas essas partes”, conclui.
Você tem fome de quê?
Comida tem significado. Nutriente tem definição. É assim que Larissa Albuquerque, nutricionista e professora do curso de Nutrição da Unifor, ilustra a tese de que não basta considerar apenas os aspectos nutricionais quando tratamos de alimentação adequada ou saudável. “Se eu perguntar a você se o ômega 3 marcou mais a sua vida do que o bolo, a tapioca, o feijão ou o cuscuz, dificilmente você irá identificar qualquer memória afetiva naquele. E isso prova que aspectos psicológicos e sociais não podem ser negligenciados quando elegemos certos alimentos. Então, comer bem deve partir do princípio de que saúde não é só ausência de doenças, mas um completo e complexo bem-estar que passa por determinantes sociais diversos e todo um estilo ou condição de vida que se reflete naquilo que vai ao prato”, destaca.
E ela se pergunta: “será que vale à pena eu viver a base de salada se me sinto extremamente insatisfeita com isso?”. A resposta é não. Para Larissa, há de se fazer as pazes com a comida, recuperando a lógica do alimentar-se como um ato prazeroso e natural ao invés de algo regrado, padronizado ou tiranizado em nome das aparências. “Comer bem não está atrelado a um peso, a uma medida ou a um numero na balança. Precisamos adotar comportamentos saudáveis, ressignificando a própria noção de saúde. No Pronutra, por exemplo, onde atendemos pacientes com transtornos alimentares, há pessoas com peso teoricamente adequado, se seguirmos certos parâmetros em voga, mas que apresentam comportamentos disfuncionais ou compulsivos em relação à comida e ao corpo. Daí porque é preciso defender que saúde pode sim existir em diferentes tamanhos, já que somos um país de muita diversidade e ter um só padrão de beleza seria no mínimo injusto”, assinala.
Para Larissa, há de se “honrar a fome”, ao invés de negá-la ou enganá-la. “Quando priorizo e separo um tempo para comer, compartilho refeições com pessoas queridas ou tento fazer pelo menos uma refeição ao dia com atenção plena, sem olhar para o celular ou o computador, isso me reconecta com meu corpo. Aceitar, acolher e saber que não preciso seguir a mesma dieta todos os dias ou que sentirei mais ou menos fome de acordo com meu humor ou o ambiente em que estou é também um exercício para se entender o que é e como comer bem, sem sentimento de culpa”, observa.
Ao recorrer aos escritos da nutricionista Ellyn Satter, Larissa lembra ainda que não existe alimentação saudável sem autonomia. Assim, subscreve: “comer normalmente é ser capaz de comer quando você está com fome e continuar comendo até ficar satisfeito. É também dar permissão a você mesmo para comer às vezes porque se está feliz, triste ou entediado - ou apenas porque é gostoso. Comer normalmente é, na maioria das vezes, fazer três, quatro ou cinco refeições por dia, ou deixar a fome lhe guiar. Mas é também deixar de comer algum pedaço de bolo porque você pode comer mais amanhã - ou comer mais agora porque ele é maravilhoso enquanto ainda está quentinho. Comer normalmente é comer em excesso às vezes. Também é comer pouco vez em quando, desejando ter comido mais. Comer normalmente é confiar que seu corpo conseguirá corrigir os pequenos ‘erros’ da sua alimentação”.
E, se as emoções interferem na alimentação, a recíproca também é verdadeira. “Nessa pandemia muitas pessoas recorreram sim à comida como fonte de prazer. E em alguns momentos todos nós poderemos fazer isso. O problema é quando alimentar-se vira algo disfuncional, quando a única forma que eu tenho de resolver o que está me fazendo mal é comendo. Também é preciso questionar certos mitos reforçados pela mídia, já que o alimento, sozinho, não cura doenças, emagrece ou traz felicidade, como às vezes a publicidade quer nos fazer crer. “Comer bem está ligado a alimentos variados, os mais naturais possíveis. Mas os modismos de cada época tendem a condenar ou vangloriar certos alimentos. Para desconstruir o senso-comum quero então recomendar duas publicações do Ministério da Saúde: ‘Desmitificando dúvidas sobre a Alimentação’ e o ‘Guia Alimentar da População Brasileira’, que poucos brasileiros conhecem, mas é um guia premiado internacionalmente. Leitura necessária e saborosíssima”, garante a nutricionista.
Para devorar corpo e alma
“Quando o ato de comer aparece como a única solução ou compensação para os problemas ele deixa de ser saudável. Daí é preciso pensar: o que sinto quando sento em uma mesa para comer? Que sentimentos a comida desperta em mim? Não é um doce que vai resolver a minha angústia.” - Lucas Bloc, docente e pesquisador em Psicologia da Unifor (Foto: Ares Soares)
Somos o espelho do que comemos? Na contemporaneidade, mais do que nunca, comer envolve saúde e estética. E é a partir dessa interface que o professor do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, Lucas Bloc, desenvolve pesquisa em torno de transtornos alimentares e obesidade enquanto pós-doutorando ligado ao APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Clínica Humanista-Fenomenológica, sob supervisão da Profa. Dra. Virgínina Moreira, do Programa de Pós-graduação em Psicologia. Para ele, o ato de comer e tudo o que nos entra pela boca vêm carregando quilos de subjetividade, assim como desejos e demandas socialmente construídas. E cabe ao corpo sustentar a carga.
“Não há uma via dicotômica entre corpo e alma no pensamento fenomenológico. O corpo não é simplesmente um conjunto de elementos físicos comandados a partir de uma mente. Há um entrelaçamento entre o físico e o psíquico. Portanto, minha relação com meu corpo afeta o modo como eu me alimento. E pesquisas recentes revelam como o mundo contemporâneo tem tomado esse corpo como objeto, um alvo que as pessoas estão sempre olhando e que aparece nas redes sociais como se nele não existisse ali um sujeito que sente e vive as experiências. O corpo é sujeito e objeto. E quando atravessado pela dimensão de controle que a sociedade faz dele acaba julgado e exposto ao olhar massacrante do outro. As mulheres sofrem mais com isso, é fato. E, se o ato de comer interfere na minha composição, ou melhor, na minha forma corporal, isso pode me levar a comer em excesso ou restringir minha alimentação. Daí porque precisamos nos reapropriar do corpo na busca por uma relação saudável com o alimento”, reflete o professor.
Para Lucas, o corpo moldado e normatizado que afeta e se deixa afetar pela disputa de poderes do mundo contemporâneo tem na comida, muitas vezes, uma válvula de escape. “Mas quando o ato de comer aparece como a única solução ou compensação para os problemas ele deixa de ser saudável. Daí é preciso pensar: o que sinto quando sento em uma mesa para comer? Que sentimentos a comida desperta em mim? Não é um doce que vai resolver a minha angústia. E o ato de comer não deve ser atravessado pelo sofrimento. Então, através do tratamento psicológico, ultrapassamos a lógica unicamente biomédica para pensar e entender o que constrói nossos hábitos alimentares. E assim passo a investigar como me relaciono com meu corpo e o que cada um precisa para conduzir de modo saudável a relação de troca que o sujeito estabelece ao longo de toda uma vida com o alimento”, observa.
Segundo o professor, pesquisas realizadas na própria Unifor demonstraram que quadros de ansiedade e depressão decorrentes do isolamento social potencializaram ainda mais a ocorrência de distúrbios alimentares. “Foi quando os cientistas inclusive cunharam novas expressões, como ‘comer as emoções’... Tudo para enfatizar que em momentos de crise e incertezas as pessoas acabam se abalando emocionalmente - e isso reflete no ato de comer. A dimensão do hábito como algo constituído ao longo de nossa história foi abalada. E assim o cuidado com a saúde mental ganhou ainda mais importância. Buscar apoio ou tratamento psicológico, portanto, passou a ser tão necessário quanto a prática de uma atividade física como medida de proteção ou cuidado para não se deixar aprisionar por certos comportamentos patológicos”, sublinha.
Como água para chocolate
Contagem de calorias, pesos, medidas. Foi justamente a “camisa-de-força” da exatidão da Nutrição Clínica que levou a nutricionista Márcia Nogueira a procurar uma segunda graduação e depois o mestrado em Psicologia na Universidade de Fortaleza. Para ela, ao investigar caminhos que pudessem levar as pessoas atendidas em consultório a ter uma boa alimentação, a conta não fechava caso não fossem postas à mesa, para análise e tratamento complementar, questões ligadas à subjetividade.
Para obter o título de mestre, Márcia mergulhou então numa investigação científica em torno da anorexia nervosa. E hoje, como doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor e e membro do APHETO, pesquisa sobre a obesidade e a eficácia da psicoterapia junto a pacientes obesos, sob supervisão da Profa. Dra. Virgínia Moreira (UNIFOR) e do Prof. Dr. Daniel Sousa (ISPA-Lisboa-Portugal). No percurso, ficou claro como água: a comida está, desde o nosso nascimento, agregando e vinculando as pessoas em torno de uma mesa, ao mesmo tempo em que é usada como objeto de troca, prêmio ou compensação.
Assim é que, culturalmente, a questão nutricional, por si só, cai por terra, sobretudo quando se trata de transtornos alimentares. “Basta dizer que o sujeito diagnosticado com obesidade é enquadrado pelos órgãos de saúde, a partir de índices de marca corporal previamente determinados, como obeso 1, 2 ou mórbido. Essa simples classificação reduz demais o sujeito a um número, assim como impõe de antemão que suas medidas devem ser diminuídas a todo custo. Ou seja, essa pessoa tem que perder peso e isso é consenso, pelo menos quando olhamos do ponto de vista biologicista. Sim, existem as comorbidades ligadas à obesidade, vários fatores que põe a vida do obeso em risco, além do estigma e preconceito. Então, ele precisa perder peso sim, mas, a partir da Psicologia, o que se propõe é um olhar anterior. Ok, você está acima do seu peso, mas o que lhe fez chegar até aqui? Para que precisou de tanta comida? Qual o significado de tanta comida a por que ela resultou em um quadro de adoecimento?”, detalha Márcia.
Voltar ao começo do processo de adoecimento e lançar luz sobre o decorrer dos acontecimentos que levaram a um quadro final crônico ou mesmo mórbido são desafios que o psicólogo enfrenta diante da necessidade de desvendar e desatar os nós que aprisionam o sujeito a uma relação patológica com o alimento. “Há de se enfrentar ainda a tirania alimentar, que é atrelada aos padrões corporais. Sem falar que a comida não me julga, ela simplesmente está ali para me saciar, me acarinhar, me dar prazer... Mas é preciso tentar entender quais são os vazios que a gente preenche através do ato de comer, escavar esse buraco, saber onde ele fica e como foi escavado. E assim procurar entender para que você precisa da comida. Para então se perguntar: será que é só a comida que pode me dar sustentação para eu passar por essa situação de dor e sofrimento? A psicoterapia quer ajudar nessa difícil mas libertadora digestão”, conclui a pesquisadora.