Entrevista Nota 10: Alex Minkin e a conexão religiosa entre as tradições judaicas e os terreiros afro-brasileiros

seg, 12 maio 2025 18:16

Entrevista Nota 10: Alex Minkin e a conexão religiosa entre as tradições judaicas e os terreiros afro-brasileiros

Diretor do documentário “Saravá Shalom” esteve na Unifor para a pré-estreia do filme, que reflete sobre o impacto das diásporas étnicas e como diferentes culturas podem se unir em um único “terreiro encantado”


Antropólogo visual, ativista cultural e diretor da ONG Ticún Brasil, Alex é considerado uma importante figura da cultura brasileira no mundo judaico (Foto: Ares Soares)
Antropólogo visual, ativista cultural e diretor da ONG Ticún Brasil, Alex é considerado uma importante figura da cultura brasileira no mundo judaico (Foto: Ares Soares)

A diversidade étnica e cultural se apresenta como uma das características mais marcantes do Brasil, o que possibilita conexões e interseccionalidades entre costumes e até mesmo práticas religiosas de povos distintos e, aparentemente, distantes. Um exemplo disso é a ponte entre o Judaísmo e as religiões afro-brasileiras apresentada pelo documentário “Saravá Shalom” (2025).

Dirigido por Alex Minkin — antropólogo visual, ativista cultural e diretor da ONG Ticún Brasil —, o filme é mais que um documentário: é uma verdadeira obra de arte e ferramenta de cura, que visa confrontar os traumas de intolerância inter-religiosa que perduram ao longo de várias gerações.

A produção aborda com sensibilidade e profundidade as histórias de descendentes de escravizados africanos, indígenas e judeus, com foco especial em André Feitosa, artista cearense e personagem central do filme. “Saravá Shalom” entrelaça essas diversas histórias e ritualísticas, propondo um espaço de reflexão sobre o impacto das diásporas e como diferentes culturas podem se unir em um único “terreiro encantado”.

No dia 8 de maio, Alex Minkin esteve no campus da Universidade de Fortaleza, instituição mantida pela Fundação Edson Edson Queiroz, para promover a pré-estreia exclusiva do documentário. Após a exibição da obra, houve um momento de debate sobre o cinema sob a perspectiva do diálogo intercultural. O evento foi promovido pela Divisão de Arte e Cultura da Vice-Reitoria de Extensão da Unifor, em parceria com o curso de Cinema e Audiovisual.

Desde 2012, Alex concentra sua pesquisa nas interseções entre as culturas judaica e brasileira, tendo apresentado seu trabalho em diversas universidades e centros culturais nos EUA, Brasil e Israel. Seus artigos sobre a cultura brasileira foram publicados em Jewish Currents, Sounds and Colours, Forward e na Revista AntHropológicas.

Ele também contribuiu com a pesquisa para o HÍBRIDOS.cc, um projeto multimídia com mais de cem filmes sobre a espiritualidade brasileira do cineasta francês Vincent Moon. O primeiro documentário de Minkin, “Urban Orishas” (2022), sobre arte e religião brasileiras em Nova York, foi selecionado pelos festivais Heritales e Rendezvous.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, o diretor fala sobre as religiosidades judaicas e afro-brasileiras e suas interseccionalidades, além de comentar sobre a pré-estreia do documentário “Saravá Shalom” aqui na Unifor.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — A presença da comunidade judaica no Brasil remonta desde o período colonial, contando com diferentes ondas de imigração ao longo dos séculos. Qual o contexto da chegada dessas populações aqui no país? Como os costumes e as práticas religiosas dos judeus influenciaram a formação da identidade brasileira, especialmente no Nordeste?

Alex Minkin — À  medida  que  o  poder  e  a  pressão  da  Inquisição  aumentaram  em Portugal no século XV, a recém-descoberta terra do Brasil tornou-se  um  dos  destinos  dos  judeus  convertidos  ao  catolicismo,  longe  da  inquisição. A próxima onda de imigração judaica ocorreu em meados do século XIX, quando judeus  marroquinos  estavam  fugindo  da  pobreza,  pogroms e perseguições. A maioria dos aproximadamente 120.000 judeus que vivem no Brasil hoje são descendentes de imigrantes que chegaram aqui no início e em meados do século XX vindos do Leste Europeu e do Oriente Médio.

No Nordeste, o impacto dos judeus, chamados de cristãos-novos pela Igreja [Católica] — aqueles convertidos à força ao cristianismo pela Inquisição —, está profundamente enraizado. Pode-se perceber na literatura bíblica de cordel, dos folhetins, que reescrevem todas as histórias judaicas, apesar da censura da Igreja, e trazem as histórias bíblicas para o povo. Pode-se degustar uma sobremesa local chamada cartola, cuja receita vem dos cristãos-novos e das xilogravuras de Gilvan Samico. Em Saravá Shalom, mostramos pela primeira vez o universo de memórias da diáspora judaica no Brasil, que no contexto da perseguição religiosa foram acolhidos em quilombos e terreiros da diáspora afro-brasileira.

Entrevista Nota 10 — Com a diáspora negra, diversos povos de origem africana precisaram adaptar costumes e religiões ao serem trazidos para o Brasil, como é o caso da umbanda. Qual o papel do sincretismo na preservação da cultura afro-brasileira e na manutenção dos costumes ao longo do tempo? Como a resiliência religiosa pode se tornar resistência contra uma sociedade excludente?

Alex Minkin — Não é possível separar, no Brasil, o trauma da escravidão racializada, portanto, a memória do navio tumbeiro, do comércio de corpos agrilhoados em praça aberta, da tortura, da senzala, da exploração da força de trabalho para riqueza de terceiros. A Umbanda faz parte desse novo léxico cultural, dos encontros e das necessidades entre pessoas reais, dos arranjos e pactuações, sobretudo, entre o mundo dos vivos e a presença dos seus seus mortos ancestrais.

Em caminho oposto à confluência de povos e das tradições, foi a pretensão do colonizador sustentar uma hipótese abstrata de “purismo” para fins de distinção e preservação de benefícios econômicos, seja da identidade, seja do sangue, seja de uma confissão espiritual. Há que se lembrar que, para citar apenas um grupo étnico, a formação de nenhum povo, incluído o português europeu, não corresponde à expectativa de qualquer pureza, quiçá a respectiva crença de fé que, ao longo dos séculos, também absorveu e transmutou-se em novas narrativas.

Em que se resguarde o valor de inclusão e adaptabilidade da Umbanda, o amálgama que ali se presentifica não é diferente da complexidade que se traduz, no Brasil, como o próprio Sertão. Não é excepcionalidade da Umbanda o sincretismo, antes os povos são cruzamentos de diásporas e tessitura entre restos dispersos de sonhos anteriores. Talvez possamos imaginar que nossas práticas sociais de sobrevivência envolvem um mosaico de sobreposição entre culturas, em muito diferente da suposição de verdade ou origem únicas.

Entrevista Nota 10 — De que maneira as tradições místicas judaicas e afro-brasileiras se entrelaçaram no sincretismo social que temos hoje? Mesmo parecendo diferentes à primeira vista, o que faz essas práticas e visões distintas se tornarem tão próximas a ponto de fundirem-se em uma nova interseccionalidade?

Alex Minkin — A experiência social do Brasil talvez nos exija um pensamento mais complexo que as reflexões do século passado, a saber sobre fusão, bricolagem, hibridismos. Nossa experiência visual enfatiza uma orientação poética, ou seja, de experimentação sobre a matéria social, assumindo que a arte representa, nela mesma, uma prática de conhecimento que opera com seus fundamentos próprios. Quando a arte, enquanto matriz de conhecimento, aproxima-se de duas grandes diásporas, talvez a experiência da imagem possa ajudar-nos a construir uma experiência sensorial de maior recepção para complexidades. 

Naquele contexto, o que se sucede entre ambas, como pontos geograficamente localizados de interface, lembra-nos sobre as práticas de colaboração para sobrevivência entre grupos diferentemente ameaçados pela narrativa racial: aqueles oriundos da diáspora judaica-sefardita do Brasil colonial em nexo com a Inquisição Portuguesa e aqueles da diáspora afro-brasileira no lastro colonial da escravatura. Penso que a lição de ontem permanece instigante hoje, quando consideramos que uma primeira narrativa sobre identidades divergentes não exclui vários caminhos de aproximação.

Entrevista Nota 10 — Você é o diretor do documentário “Saravá Shalom”, produção que mergulha no diálogo entre as tradições místicas judaicas e afro-brasileiras. O que o motivou a se aprofundar na interseção entre culturas, especialmente com foco nesses rituais? Qual foi o maior desafio ao tentar capturar as conexões entre as duas religiosidades?

Alex Minkin — A professora americana Diana Brown descobriu uma comunidade única durante sua pesquisa no Rio de Janeiro na década de 1970. O centro de Umbanda que ela frequentava era dedicado ao estudo e à interpretação da Cabala. Os congregantes (todos judeus) utilizavam as práticas de incorporação da Umbanda para aprofundar seus estudos judaicos. A professora Brown escreveu apenas um parágrafo sobre essa descoberta, mas ela inspirou meus estudos de campo nos últimos 10 anos. 

Recentemente, fiquei feliz em ver Diana em minha apresentação na Universidade de Columbia, quando ela chamou Saravá Shalom de o melhor estudo sobre Umbanda em anos e o único sobre o assunto (exceto pelo excelente livro sobre judeus paulistas no Kardecismo, chamado “Espiritismo Judaico”, de Andrea Kogan).

As principais cenas do Saravá Shalom acontecem no mais antigo terreiro de Candomblé em Fortaleza, onde as comunidades judaica e afro se reúnem. Os judeus no Candomblé e Umbanda, assim como os afro-brasileiros na religião judaica, são os mensageiros desconhecidos da coexistência. Os desconhecidos não os são mais, pois Saravá Shalom finalmente os traz à luz após décadas de silêncio, uma vez que tal diálogo entre as religiões estigmatizadas era desprezado.

Como mostra Saravá Shalom, as religiões afro e judaica no Brasil têm muito a compartilhar entre si e são mutuamente inspiradoras. Nas palavras da cantora e ativista brasileira Assucena Assucena, “poucas pessoas sabem ou pouco percebem que o judaísmo se parece muito com as religiões afro-brasileiras, até mais do que com o cristianismo”.

Entrevista Nota 10 — Como você enxerga a importância do audiovisual para confrontar as narrativas históricas de opressão e exclusão dessas culturas marginalizadas? Como o documentário revisita e reconta a história do Brasil a partir das perspectivas dos povos afro-brasileiros e judeus?

Alex Minkin — Está na base da vida uma luta por continuidade e sobrevivência que se estende para os vivos humanos, não por acaso, um anseio de ampliar as condições para a vida em sua melhor dignidade. Uma das operações, entretanto, que frequentemente vemos associada às máquinas históricas de violência. trata dos esforços de apagamento da memória. Meu trabalho poético em Saravá Shalom apresenta-se como um ofício sensível onde imagens são experimentadas — talvez esse seja um dos legados sinestésicos do audiovisual, produzir e compartilhar novos elementos que passam a habitar coletivamente nas subjetividades.

No contexto temático de Saravá Shalom, essa perspectiva do cinema, da imagem e da memória convoca uma dimensão adicional de relevância, na medida em que, para diferentes grupos de ambas as diásporas, as memórias foram objetivamente interrompidas e destruídas. Incluo, aqui, as memórias incendiadas da minha própria diáspora familiar, entre Ucrânia, Rússia e Estados Unidos.

Quando o trauma faz calar a narrativa oral, desaparece com os documentos, quando não havia fotografias, qual outra tecnologia histórica dispomos senão a força criativa da arte, que nos permite repovoar nossa sombra com mediadores imagéticos? Cada um, individualmente, a partir do vocabulário disponível em suas comunidades, é convidado pela história a construir sua narrativa pessoal, familiar e ancestral.

Em Saravá Shalom, estivemos menos interessados em sugerir qualquer certeza [e mais] se pudermos ou tenhamos sido capazes de expandir um acervo imagético de eventos pouco estudados no tecido cultural brasileiro.

Entrevista Nota 10 — Você esteve na Universidade de Fortaleza para a pré-estreia do seu documentário, “Saravá Shalom”, que está em turnê de lançamento mundial. Qual a importância de trazer esse debate para o ambiente acadêmico? De que maneira os estudantes de Cinema e Audiovisual podem agregar essa experiência ao fazer profissional, especialmente na produção de documentários?

Alex Minkin — Saravá Shalom acabou sendo muito umbandista, uma carta de amor à umbanda, ao kardecismo, ao candomblé e muito judaico, mas não de uma forma tradicional. O que ele não é - não é um filme acadêmico. Eu propositalmente excluí todas as minhas entrevistas com professores deste filme. Nas palavras de Jean Pouillon, “só o não crente acredita que o que o crente faz é acreditar”. Eu queria que o filme falasse de dentro, do ponto de vista dos participantes, sem julgamentos ou lições dos acadêmicos.

Levar o filme para o meio acadêmico, por outro lado, dá a oportunidade de discutir vários aspectos mostrados no filme como: a relação entre a tradição judaica e as religiões afro-brasileiras; a mobilização de símbolos do Judaísmo no Candomblé, na Umbanda e no Kardecismo; as histórias de luta e perseguição que aproximaram — e ainda aproximam — judeus e religiosos de matriz africana no Brasil; etc.

Após a exibição, compartilhei minha experiência em encontrar material essencial para incluir no filme, trabalhando com cineastas locais e perseguindo suas paixões. Minha principal mensagem aos cineastas e acadêmicos brasileiros é: continuem pesquisando e contando ao mundo sobre as tradições locais – é isso que torna o Brasil único.