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Seg, 5 Junho 2023 12:01

Entrevista Nota 10: Antônio Silva Lima Neto e a influência do setor público na saúde urbana

Doutor em Saúde Coletiva, ele discute o tema “cidades saudáveis” e ressalta a importância do planejamento urbano responsável para o bem-estar de todos, além de ligar o desenvolvimento social com a saúde da população


Mais conhecido como Dr. Tanta, o médico epidemiologista é docente do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)
Mais conhecido como Dr. Tanta, o médico epidemiologista é docente do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)

Atual Secretário Executivo de Vigilância em Saúde do Estado do Ceará, o médico epidemiologista e pesquisador Antônio Silva Lima Neto — mais conhecido pelo apelido Tanta — ministrou em maio a disciplina “Saúde Urbana” no Mestrado Profissional em Ciências da Cidade (MPCC) da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz.

Docente da graduação em Medicina da Unifor, o defensor do SUS possui uma forte atuação no combate à pandemia de Covid-19, tendo sido integrante do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus, do Consórcio Nordeste de Governadores, referência na área de arboviroses.

Graduado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Tanta é especialista em Medicina Preventiva e Social pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, no Rio de Janeiro. Tem mestrado em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, da Universidade de Londres, e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Pós-doutor pela Harvard T.H. Chan School of Public Health, ele soma experiências profissionais e acadêmicas nas áreas de Vigilância Epidemiológica e Doenças Infecciosas. Concentra interesses de pesquisa nos campos de Epidemiologia, Controle e Prevenção de Doenças Transmissíveis.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, o professor Tanta fala sobre a discussão de cidades saudáveis na disciplina do MPCC e ressalta a importância do planejamento urbano responsável para o bem-estar das pessoas, além de ligar a influência do desenvolvimento social com a saúde da população.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Recentemente, você ministrou uma disciplina no Mestrado Profissional em Ciências da Cidade (MPCC) sobre “Saúde Urbana”, área englobada pela saúde pública que avalia o impacto que as intervenções do setor público nas cidades têm na saúde das populações, incluindo aquelas que não necessariamente têm origem no ramo da saúde. Quais seriam os principais problemas urbanos que afetam a saúde das pessoas?

Dr. Tanta – Essa ideia da disciplina de Saúde Urbana surgiu em um debate acerca do MPCC, com uma pergunta inicial sobre “o que é uma cidade saudável?”. Como você pode qualificar uma cidade como saudável no nosso contexto de um país em desenvolvimento, de uma metrópole com muitas desigualdades, ainda mais saindo de uma pandemia? Fizemos essa discussão inicial para tentar entender o que poderíamos abordar, já que é um conceito internacional esse o da saúde da cidade e da medicina urbana. A necessidade do crescimento das cidades induziu que as pessoas encontrassem mecanismos para se proteger, sobretudo, das epidemias.

Quando discutimos isso para o Mestrado, tivemos em mente uma gama de problemas urbanos em uma cidade como Fortaleza e que têm uma interface com a saúde. A exemplo disso temos as doenças transmissíveis, que são incidentes e permanentemente um problema da cidade, como as arboviroses. Mas, ao mesmo tempo, têm uma interface com saneamento, com densidade populacional, com qualidade de vida, com resíduos sólidos, com lixo, com traçados urbanos, com assentamentos precários. Há uma série de questões que se pode fazer nesse debate.

Simultaneamente, se continuarmos no âmbito das doenças transmissíveis, o que aconteceu com a Covid nas grandes megalópoles do mundo — especialmente aqui do Brasil, onde a mortalidade foi infinitamente maior em assentamentos precários e nos quais as pessoas não conseguiram se proteger, sobretudo ali na primeira onda —,  por exemplo, havia um desconhecimento sobre como a pandemia iria caminhar. E essas doenças transmissíveis também têm diferenciais que a cidade impõe, mesmo se você considerar as doenças clássicas não-transmissíveis. 

Você pode até dizer que em uma região rica de Fortaleza, a maior causa de morte das pessoas que moram ali pode ser, por exemplo, Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou infarto. Essa é a mesma causa de morte de um bairro muito pobre e periférico. Mas qual a diferença? Nos bairros periféricos, com maiores vulnerabilidades sociais, o indivíduo morre de AVC com 60 anos, enquanto no Meireles, ele morre com 85 anos. Então você tem, na mesma cidade, uma diferença de expectativa de vida de 20 anos entre um bairro e outro. E aí pode pegar várias problemáticas, como a gravidez na adolescência: em um bairro rico de Fortaleza, ela responde por 5% de todas as gestações; no bairro pobre, fica em 25%.

Então essa percepção de que há múltiplas cidades dentro de uma megalópole como Fortaleza exige planejamentos diferentes porque essas múltiplas “cidades invisíveis” precisam ser encontradas — seja utilizando a minha ciência, que é a epidemiologia e a distribuição das doenças, seja utilizando os padrões urbanos, econômicos ou o que seja.

Nessa disciplina de Saúde Urbana, talvez o objetivo mais importante seja o de acender essa luz. Acho que temos conseguido fazer isso no debate para planejadores, engenheiros, médicos. Quando você tenta aperfeiçoar, planejar melhor urbanamente uma cidade, você tem que levar em conta que essa cidade aparentemente “esconde” muitas outras cidades que precisam ser abordadas, por vezes, de maneira diferente.

É como se o planejamento urbano tivesse diversos braços e se diferenciasse com essa aquisição de conhecimento, levando para dentro dele o tema de saúde pública e coletiva. Acho que a pandemia mostrou que não vamos mais poder fugir desse assunto quando pensarmos nas grandes cidades, no bem-estar, na qualidade de vida e em cidades saudáveis.

Entrevista Nota 10 – Quais as principais estratégias e ferramentas que podem ser utilizadas para identificar e avaliar os impactos de políticas urbanas sobre a saúde das populações? E como esses mecanismos possibilitam intervenções urbanas justas que contribuam para uma melhor saúde urbana?

Dr. Tanta – Excelente essa questão porque aí entramos em uma temática de indicadores, que a gente tenta levantar com os estudantes. Temos indicadores que chamamos de indicadores de base (baseline, em inglês). Se eu vou fazer uma intervenção urbana, entre meus ganhos tenho que esperar os ganhos de saúde. Não é possível que eu faça um planejamento urbano que não pressuponha que as pessoas vão ter qualidade de vida. Para isso, existem indicadores de saúde pública que são os clássicos e mais óbvios, que vão desde mortalidade infantil até, por exemplo, diarréias prolongadas.

Esse grupo de indicadores podem ser trazidos para o dia a dia das ciências das cidades e do planejador urbano. Se eu quero intervir em Fortaleza, tenho que pressupor que vou melhorar a saúde das pessoas, em alguma medida em que a minha intervenção, de fato, se relaciona com aquele indicador. Se vou trabalhar, por exemplo, uma intervenção de parques e áreas verdes, isso é um grande debate de cidades saudáveis hoje no mundo. Uma cidade saudável não dá para ser tão desigual. Então se vou discutir uma cidade saudável na América Latina, tenho que pensar em compensar desigualdades. Isso é um ponto.

Por outro lado, tem algumas intervenções que são comuns às duas iniciativas. Por exemplo oferecer à população espaços verdes com mais frequência para que ela possa desfrutar, tanto para atividade física quanto para lazer em geral. Isso tem também um impacto na saúde que pode ser tanto qualitativo, com os índices de felicidade, quanto pode ser quantitativo, como na redução de prevalência da hipertensão arterial sistêmica em populações mais jovens após a implantação do programa de bicicletas coletivas em Fortaleza.

Quando pensamos nessa questão, devemos trazer os indicadores de saúde para um hall de indicadores que deverão mudar para melhor e oferecer ganhos a partir do momento em que se muda um traçado urbano. Você oferece uma praça, uma assistência social, traz uma escola para mais perto da população. Porque é mais ou menos evidente que não se consegue muito, de maneira mais sistemática e sustentável, reduzir os indicadores de violência sem que o Estado se aproxime desse grandes contingentes populacionais. É mais ou menos essa a ideia de trazer a discussão do tema “saúde urbana” para o MPCC da Unifor.

Entrevista Nota 10 – A Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs o conceito de “Cidade Saudável” para nortear as ações que cada município deve executar com vistas a uma melhor qualidade de vida da sua população, mas no que consiste exatamente uma “Cidade Saudável”? Como os entes públicos e os profissionais de saúde podem trabalhar juntos para promover a saúde urbana?

Dr. Tanta – Eu trabalhei pela primeira vez com essa ideia de cidade saudável em 1998. Era uma iniciativa das Américas com diversas instituições privadas que financiavam você trazer a ideia de cidade saudável para América Latina. Trabalhei junto com a Escola de Saúde Pública para tentar levar esse conceito para dois municípios do Ceará.

A cidade saudável não se refere a algo estético, ela é uma intenção. O que é uma cidade saudável? É uma cidade cuja gestão e população estão tentando promover iniciativas que têm como objetivo, periférico ou principal, oferecer ganhos de saúde para aquela sociedade. Se sou uma cidade que tem um status de cidade saudável, posso estar em busca de impulsionar, por exemplo, atividade física de pacientes com mais de 60 anos.

Como é que eu faço isso? Como devem ser esses parques, as atividades que eu posso oferecer? Ou então que seja o autocuidado, que é um tema central hoje no mundo inteiro, porque o estado não pode estar constantemente próximo dos indivíduos. Como é, então, que trabalho o autocuidado e faço com que você se interesse por se cuidar de uma maneira, sobretudo, muito baseada nas evidências científicas? Tem uma série de iniciativas para isso, desde o acesso à cultura, ao lazer, à saúde. A estratégia de cidades saudáveis é uma estratégia dinâmica, nunca acaba.

Quando você pega, por exemplo, a iniciativa de cidades saudáveis da Europa, você pensa “por que essa cidade é uma cidade saudável?”. É uma intenção. O compromisso da cidade se faz com o gestor. Este compromisso está dizendo a seguinte coisa dentro daquela rede: “Vou investir para que a minha população constantemente possa ser mais saudável em determinados campos que são mais fáceis para eu ter êxito”.

Creio que ficou claro no debate que fizemos com os estudantes que as experiências de cidades saudáveis estão em vários campos — algumas são bem sucedidas, outras nem tanto. Mas essa iniciativa, essa tentativa é que deve sempre permanecer e orientar o planejamento.

Entrevista Nota 10 – As desigualdades sociais, refletidas na falta de oportunidades e na dificuldade de acesso a serviços básicos essenciais, também afetam a saúde das pessoas mais vulneráveis (maior parcela da população brasileira), mas, por consequência, afetam direta ou indiretamente a qualidade de vida de toda a sociedade de um modo geral. Como você avalia as políticas públicas que buscam diminuir essas desigualdades? 

Dr. Tanta – Acredito que quando pensamos em saúde urbana no contexto das grandes cidades brasileiras, falando um pouco mais aqui de Fortaleza ou das grandes cidades do Nordeste, a compensação de desigualdade é o grande desafio. É muito difícil planejar e imaginar uma cidade minimamente saudável sabendo que uma fração importantíssima da população [está em situação de desigualdade].

No último levantamento de planejamento de Fortaleza, nós tínhamos 840 assentamentos precários na cidade onde viviam mais de um milhão de pessoas. Essa área correspondia a 13% da área da capital cearense, com 40% da população morando lá. Então é muito difícil imaginar um planejamento urbano justo que não fale de inclusão. Os desafios, de fato, são muitos, como o de o aparato do estado chegar mais próximo [da população]. Aí eu falo de saúde e educação, mas também falo de lazer e de proteção social. Isso é uma questão central hoje.

[...] O governo do Ceará e as prefeituras de Fortaleza vêm tentando mudar isso, mas ainda há uma população que vive com extrema dificuldade. Acho que é uma sinalização para o investimento na proteção social — que é o “colchão” que tem que ser realmente mantido para que as pessoas possam viver, e que possamos encontrar formas de incluí-las no mercado de trabalho de maneira mais digna e sustentável. Ao imaginar as novas cidades, como Fortaleza 2040 e Ceará 2050, [espero que] possamos encontrar modelos de desenvolvimento que tragam essas pessoas para o centro do debate. É muito difícil planejar sem incluir. Hoje, no nosso contexto, planejar talvez seja incluir.

Entrevista Nota 10 – Há poucos dias, você foi um dos facilitadores de uma oficina promovida pela Escola de Saúde Pública com foco no Manejo Clínico e Diagnóstico Laboratorial de Arboviroses, voltada para profissionais da rede assistencial e laboratorial do Ceará. Qual a importância desses treinamentos e capacitações para os profissionais do SUS e da Atenção Primária à Saúde atuarem no combate às arboviroses e como isso pode ajudar na prevenção e educação pública sobre o tema?

Dr. Tanta – Acho que estamos vivendo um momento chave no campo das arboviroses e que aproveito para iluminar mais sobre nosso momento no Brasil em relação à transmissão e ao que estamos enfrentando em relação às três arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes aegypti (dengue, zika e chikungunya). Hoje nós estamos vivendo provavelmente a maior epidemia de dengue do Brasil. Pouca gente sabe disso porque essa epidemia não está no Nordeste, mas no Centro-Sul do país, o mosquito expandiu seu habitat.

Você tem epidemias que chegam perto da decretação do estado de calamidade pública em algumas cidades de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul, que se quer tinham dengue. Você se pergunta, mas por que isso está acontecendo? Aí é a questão dos desafios globais. Entra a expansão de habitat do mosquito: não existia Aedes Aegypti no RS. Em 2019 houve uma enorme epidemia lá. Agora, mais recentemente, foram anos que houve epidemias sucessivas.

O estado do Ceará, por exemplo, convive com a dengue desde 1996. As grandes epidemias normalmente são entrada e saída de sorotipos, e os que mais circularam aqui foram dengue 1 e dengue 2. Então pelo fato de já termos tido esse contato, essa “imunidade natural”, não estamos tendo epidemias enormes. Mas podemos voltar a ter no momento em que o número de suscetíveis aumenta, ou seja, nascem pessoas que nunca tiveram contato. Vai criando então esse bolsão de suscetíveis e você novamente tem [as epidemias].

Mas o que está acontecendo hoje no Sul e Sudeste? Está tendo um número muito grande de óbitos por dengue, que estão concentrados em uma faixa que raramente acontece aqui no Nordeste nos últimos anos, que é na faixa de idosos. Então a dengue grave, que tem causado mortes em Santa Catarina, recentemente registrou 90 óbitos no ano. O Ceará nunca registrou 90 e tantos óbitos, para você ter uma ideia, e o estado tem uma vigilância de dengue importante. Mas por que isso está acontecendo? Os nossos idosos não estão sob risco hoje porque eles já tiveram dengue. E, eventualmente, podem até ter tido complicações. Hoje o Centro-Sul está vivendo uma situação de altíssima transmissão. A chikungunya também chega a essas áreas, pois o mosquito está sendo capaz de altíssima adaptação.

Será que isso vai se estender para o resto do mundo, acima do Equador também, com o aumento das temperaturas? E entramos na questão do controle vetorial versus algo que está hoje na pauta do dia, que é a vacina. Temos que discutir vacinas para as arboviroses sem esquecer o controle vetorial. Esse equilíbrio tem que estar muito claro para todos nós que trabalhamos com isso.

Muito dificilmente, mesmo com as vacinas, você vai poder negligenciar o controle de mosquito, como eliminar o criador dentro da sua casa, por exemplo. A nova vacina que está aprovada pela Anvisa é de um laboratório japonês chamado Takeda. É uma vacina que se mostrou bem sucedida, segura e eficaz para proteger contra hospitalização e complicações de morte, sobretudo por dengue 1 e dengue 2 — que são as que estão circulando agora no Centro-Sul.

Essa vacina diz para nós que o combate à doença tem três grandes frentes, sendo a primeira a clínica, que é como evitar óbito. Os óbitos por dengue e chikungunya quase sempre são evitáveis. Por isso o tema da oficina “Manejo Clínico e Diagnóstico Laboratorial de Arboviroses”.