Entrevista Nota 10: Marília Barreira e a discussão sobre saúde mental, juventude e violência

seg, 24 abril 2023 14:49

Entrevista Nota 10: Marília Barreira e a discussão sobre saúde mental, juventude e violência

Doutora e mestra em Psicologia, ela fala da importância da saúde mental, especialmente em adolescentes, para a manutenção do bem-estar coletivo, além de analisar a onda de violência nas escolas dos últimos meses


Membro do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES), Marília é docente do curso de Psicologia da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)
Membro do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES), Marília é docente do curso de Psicologia da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é considerado o país mais ansioso do mundo e o quinto mais depressivo. Parte desse sofrimento psicológico pode ser desencadeada pelo momento de incertezas, instabilidades e, principalmente, de violência que a sociedade — não só brasileira — vem passando.

“Essa angústia faz muito parte da vida em uma sociedade hiper violenta. Então, a nível de saúde mental, o que podemos fazer, na verdade, é trabalhar por uma cultura de paz. Não dá para falar em uma erradicação da violência, mas em uma diminuição dela”, explica a psicóloga e psicopedagoga clínica Marília Barreira.

Membro do Laboratório de Estudos sobre os Processos de Exclusão Social (LEPES) — vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade de Fortaleza, mantida pela Fundação Edson Queiroz —, ela afirma que mudar a sociedade nesse contexto é um “trabalho de formiga”, que vai passar ainda por muitas gerações.

Mestra e doutora em Psicologia pela Unifor, Marília é egressa e docente da graduação em Psicologia na Universidade. Ela é pós-graduada em Psicopedagogia e integrante do Grupo de Trabalho Preconceito e Relações Intergrupais, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), além de contar com uma formação em Gestalt-Terapia com Crianças e Adolescentes.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, a professora comenta a importância da saúde mental individual, especialmente em adolescentes, para a manutenção do bem-estar coletivo, além de analisar a questão da onda de violência nas escolas que tem acontecido nos últimos meses.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – A busca pelo tópico “saúde mental” vem crescendo nos últimos anos, principalmente após a pandemia de covid-19, com um interesse ativo das pessoas em consumir conteúdos relacionados sobre o assunto. Em sua visão, esse aumento na procura pelo tópico é sintoma de alguma mudança na sociedade?

Marília Barreira – Com certeza. Hoje as pessoas buscam se educar mais sobre o tema da saúde mental, mas infelizmente isso tem a ver com o fato de que as pessoas estão mais adoecidas, não necessariamente estão buscando conhecer mais para se prevenir. Entendendo que a população está mais doente, muitas pessoas têm buscado não só em termos de saúde mental, mas em termos de diagnósticos mais comuns, mais frequentes, como forma de tentar entender um pouco mais sobre o assunto.

Entrevista Nota 10 – O cuidado com a mente costuma ser uma jornada individual, um processo que, por vezes, ainda conta com a ajuda de um profissional capacitado. Mesmo sendo uma meta particular, de que forma a atenção à saúde mental influencia no bem-estar e bom funcionamento coletivo?

Marília Barreira – Dependendo de em que nível esse profissional atua (educação, organização, equipamento de saúde mental ou mesmo na clínica), esse apoio pode atuar de formas diferentes. Uma questão importante de ficar clara é que a atenção à saúde mental — se bem feita a partir de um posicionamento ético, com técnicas bem aplicadas — sempre vai ajudar no processo de bem-estar. E se essa pessoa estiver implicada, claro, porque o trabalho não é só do profissional de saúde mental, mas da pessoa que busca esse serviço também. Sempre que houver um trabalho com profissional de saúde mental, ele vai buscar um aumento nesse bem-estar.

Havendo um aumento nesse bem-estar, é bem comum que as pessoas consigam se relacionar melhor. Por exemplo, uma mãe que está muito sem paciência com o filho e aí ela busca terapia. A partir do momento que ela consegue perceber aquilo que desencadeia a impaciência dela e que ela busca trabalhar essa paciência, o relacionamento dela com o filho vai melhorar, com toda certeza, porque a mãe está buscando esse bem-estar. Nesse sentido, quando há uma implicação da pessoa que busca suporte nesse processo, sempre há uma melhora que parte do individual, mas que deságua no coletivo.

Entrevista Nota 10 – De acordo com o relatório Situação Mundial da Infância 2021, estima-se que quase um em cada seis meninas e meninos entre dez e 19 anos de idade no Brasil vivem com algum transtorno mental. Essa parcela da população também é considerada a mais exposta ao risco de automutilações, depressão e suicídio. Existe uma ligação entre a vulnerabilidade psicológica desse grupo e a prática de ou exposição a atividades discriminatórias, como o bullying? Essa situação também é influenciada pelo ambiente familiar desses jovens?

Marília Barreira – Existe hoje um grande adoecimento da infância e da adolescência. Vemos os níveis de patologização crescendo muito, e isso a gente não fala só de diagnósticos equivocados ou errados, mas também de uma conjuntura social que leva muito a esse adoecimento. Por um lado, existe uma hiper cobrança, muitas vezes da escola e dos pais, e uma pouca facilidade em compreender esse processo da adolescência, entre dez e 19 anos. E quando falamos de um de um transtorno mental, pode ser um processo de ansiedade, depressivo, podem ser muitas coisas.

Além disso, temos o que as pessoas chamam popularmente de “gatilhos” envolvendo essa questão. Tem filmes, séries, livros, histórias contadas em redes sociais que abordam essa temática e que, muitas vezes, fazem com que o adolescente tenha acesso a essas informações muito partidas, recortadas. Ele não vê o outro lado da moeda, só vê aquilo que ele consegue ver. Se tem um ídolo que se automutila ou que usa droga, alguns adolescentes, inclusive, podem achar isso bacana, outros vão entender que isso é normal, comum.

Na adolescência existe uma questão que é o pertencimento ao grupo, e não é incomum vermos situações em que um adolescente se automutilou porque dentro daquele grupo todos se mutilavam. Então, para pertencer àquele grupo, ele resolveu se automutilar também. Se há uma vulnerabilidade a nível de saúde mental, pode, sim, haver uma maior vulnerabilidade. Inclusive em um processo educacional, seja na família ou na escola, que não compreenda esses fatores e que, justamente por não compreender, não trabalhe uma prevenção. Muitas vezes não falamos sobre discriminação, preconceito e bullying com os adolescentes, e isso faz com que eles vejam só um lado da história.

Se eu tenho em paralelo a isso uma família muito violenta — uma cultura em casa, por exemplo, pró-armamento ou de pessoas muito preconceituosas, que riem quando se fala sobre uma situação de bullying —, aí, sim, essa questão pode acabar piorando. Então esses jovens podem acabar se tornando mais propícios a serem agressores.

Entrevista Nota 10 – A falta de suporte em momentos difíceis, como a adolescência, pode acabar afastando jovens do convívio social saudável. Isso pode provocar algum cenário de exclusão, seja imposto pela comunidade ou autoinfligido? No que isso pode acarretar para o desenvolvimento desses indivíduos enquanto pessoas e cidadãos? 

Marília Barreira – Sim. Se você não tem suporte afetivo e social, muitas coisas podem passar pela sua cabeça, e quando você é um adolescente, uma dessas coisas é a de que você não é quisto. Quem não é quisto, quem não se sente querido, pode se colocar dentro de uma situação muito violenta para si mesmo ou para os outros. Isso pode acarretar alguns perigos, como as questões ligadas à diminuição da autoestima, à questão dos processos de depressão — até um pouco mais do que os processos de ansiedade —, e aí essas pessoas podem, de alguma forma, também serem pessoas que acabam se relacionando de maneira violenta por não conhecerem uma outra forma de relacionamento.

Entrevista Nota 10 – Muitos jovens, especialmente os que não encontram suporte emocional em amigos ou familiares, costumam buscar refúgio e acolhimento no mundo virtual. No entanto, diversos movimentos extremistas têm utilizado esse ambiente para alcançar um público cada vez mais novo com discursos de ódio e preconceito. É possível prevenir que crianças e adolescentes sejam expostos a esse tipo de conteúdo para além da vigilância tecnológica? Se ainda assim consumirem esse material, o que os responsáveis podem fazer para minimizar ou reverter as consequências dessa exposição? 

Marília Barreira – É possível fazer com que os adolescentes conheçam os perigos das redes. Talvez não seja possível prevenir que eles se deparem com um grupo extremista, extremamente violento nos discursos, mas é possível fazer com que esses adolescentes olhem para esse grupo e entendam o perigo dele. E isso dá a partir do diálogo sobre tudo que vem acontecendo, sobre os perigos da internet, os perigos dos grupos.

Assim como falei anteriormente, o adolescente busca um lugar de pertencimento em grupos de iguais. E, muitas vezes, se ele já tem pensamentos mais extremistas e encontra esses grupos, é tudo que ele precisa. Mesmo que consuma esse material, na medida em que os responsáveis acompanham o que o adolescente faz na internet, eles conseguem alertar esse jovem antes que ele seja totalmente consumido e, de alguma forma, dialogar. Se preciso for, buscar um profissional de saúde mental, tentar entender o que acontece, tentar controlar de alguma forma, a depender da idade, um pouco desse discurso e acesso.

Mas isso principalmente se dá a partir do conhecimento, da relação entre pais e filhos. E o que notamos hoje é que pais e filhos estão muito separados, mesmo morando dentro da mesma casa. Isso acaba sendo um grande problema porque muitas vezes os pais não têm a mínima ideia do que os filhos acessam, não têm a mínima ideia se os filhos consumiriam ou não esse tipo de conteúdo. Sempre acham que não consumiriam, quando, na verdade, consumiriam, sim.

Está havendo uma discussão interessante na novela Travessia acerca de uma inteligência artificial (IA). Tem um pedófilo por trás dessa IA que faz um “avatar” de uma blogueira, seduz uma menina e faz com que ela bata fotos em roupas específicas, com pouca roupa. É interessante porque podemos alargar um pouco essa discussão: será que mães que têm acesso a essa cena — que foi muito propagada no Twitter — conseguem conversar com seus filhos sobre esse tipo de perigo também na internet? Será que essas mães entendem que suas filhas podem cair nesse papo ou não? De alguma forma, essas duas realidades estão bem atreladas. É possível, sim, reverter ou minimizar essas consequências da exposição, mas para isso é preciso se aproximar do filho. E é a dificuldade que a gente vê que muitos pais têm hoje em dia.

Entrevista Nota 10 – Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, aconteceram 22 ataques a escolas entre 2002 e março de 2023, sendo 10 desses só de 2022 para cá. Vários desses atos foram cometidos por adolescentes e jovens adultos, deixando dezenas de mortos e feridos. Como podemos analisar este cenário de violência no ambiente escolar que tem crescido tão vertiginosamente nos últimos anos? O que podemos fazer, a nível de saúde mental, para tentar solucionar este problema?

Marília Barreira – Vivemos em uma sociedade hiper violenta, com jogos em realidade virtual hiper-realista. O que temos visto nesses ataques das escolas pode, sim, ser considerado como uma reprodução do ambiente em que vivemos. A gente vive em uma sociedade que é violenta não só no tiro, no bater, no apanhar. É uma sociedade que é violenta nos discursos, nas práticas sociais.

Junto a essas violências vimos atos absurdos essa semana de racismo, de ataques físicos a entregadores de delivery. Não são só os ataques à escola, isso faz parte de um contexto muito maior. O contexto de uma cultura, por exemplo, em que se entende que o armamento é a solução quando, na verdade, o discurso armamentista também é um discurso produtor e reprodutor de violência. Precisamos analisar a partir desse lugar.

Vivemos em um lugar que temos pago violência com violência. Todos nós acabamos no estado de angústia e sofrimento em virtude dessa situação em que vivemos, de uma violência que é constante. Estamos muito aterrorizados. Essa angústia faz muito parte da vida em uma sociedade hiper violenta. Então, a nível de saúde mental, o que podemos fazer, na verdade, é trabalhar por uma cultura de paz. Não dá para falar em uma erradicação da violência, mas em uma diminuição dela.

É um trabalho de formiga e que vai passar por muitas gerações ainda. Mas se tentamos buscar uma sociedade com mais respeito, mais tolerância, baseada na paz e não na violência, aí encontramos um lugar inclusive menos angustiante, que conseguimos respirar e ver outras possibilidades de vida. Porque essa angústia que vivemos em virtude da violência não tem só a ver com essa ameaça de violência nas escolas, mas com a forma como vivemos mesmo.