seg, 11 abril 2022 11:16
Padaria Espiritual: conheça o movimento que marcou a cultura cearense
A agremiação artística e literária reuniu músicos, poetas, pintores e prosadores que pregavam a renovação das artes

O final do século dezenove trouxe consigo muitas mudanças, especialmente no campo das artes, da literatura e da filosofia. Nos últimos anos do décimo nono centenário, Van Gogh pintou o famoso quadro "A noite estrelada", o Romantismo e o Realismo dominavam o campo literário, o cinematógrafo foi inventado, e, no Brasil, o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a república.
Com o mundo em turbilhão, muitos jovens curiosos ao redor do país se reuniam para compartilhar suas inquietações acerca dos acontecimentos e debater suas possíveis consequências, e no Ceará não foi diferente. Em 1892, em um café localizado na célebre Praça do Ferreira, no coração da cidade de Fortaleza, nascia uma agremiação cultural que viria a se tornar uma das mais singulares do país.
Chamada de "Padaria Espiritual", a associação era formada por amantes da literatura nacional e mundial, entre eles escritores, desenhistas, pintores e músicos, que ajudaram a compor parte significativa da atividade artística e da imprensa cearense. O intuito de seus idealizadores, jovens ousados e bem-humorados, era despertar, na sociedade, o gosto pelas artes e pelas letras.
"Esses jovens escritores tinham o objetivo de tirar Fortaleza do marasmo que a capital vivia naquele momento. Então, eles queriam movimentar a cidade com a inovação, principalmente a literária", pontua Batista de Lima, professor da Universidade de Fortaleza.
De início, o grêmio artístico, que teve o Café Java como seu lugar de nascimento, contava com 20 componentes, número que mudou ao longo de sua existência. Seus membros, além de discutir a profundidade e ressaltar a importância das artes, faziam críticas aos burgueses e seu modo de vida, ao mesmo passo que também criticavam os intelectuais cearenses por propagarem a ideologia do progresso em busca de converter a cidade em um grande centro industrial.
Com o tempo, o que eram apenas encontros no quiosque no nordeste da praça, nos quais os rapazes bebiam, fumavam e flertavam, se transformou em algo mais sério e ganhou uma estrutura apropriada. Para finalmente oficializar a existência da Padaria Espiritual, o romancista e poeta Antônio Sales, em toda a sua jovialidade e perspicácia da época, criou o Programa de Instalação, com 48 itens, e apresentou aos demais no dia 30 de maio de 1892.
Ata da Padaria Espiritual está na exposição "100 Anos de Arte Moderna em Acervos do Ceará" (Foto: Ares Soares)
Em seu primeiro artigo, o estatuto caracterizava a agremiação como uma "sociedade de rapazes de Letras e Artes", e estabelecia o objetivo de "fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral". O segundo tópico descrevia os componentes da Padaria, designando nomes como em uma panificadora de verdade.
O presidente seria chamado de "Padeiro-mor", os dois secretários seriam os "forneiros", o tesoureiro seria conhecido como "gaveta", entre outros. Alguns sócios eram chamados de "amassadores'', as seções eram conhecidas como "fornadas" e a sede da agremiação era denominada "forno", que posteriormente seria localizado na Rua Formosa, atual Barão do Rio Branco.
De acordo com Aila Sampaio, professora do curso de Jornalismo da Unifor e Doutora em Literatura Comparada (Literatura e Cinema), a Padaria ganhou até mesmo hino e bandeira próprios. "O hino tinha letra do padeiro Antônio Sales e música do tenor A. Rayol, que estava de passagem por Fortaleza. Com a finalização do grupo e a morte dos componentes, a bandeira foi encaminhada ao Arquivo Público do Ceará", revela a docente.
Sampaio explica que, em seus primeiros anos de existência, as reuniões da agremiação eram regadas a muitas risadas e piadas, envolvidas pelo espírito jovial e boêmio de seus componentes. Porém, do meio para o fim, o aspecto humorístico e divertido sofreu uma queda, e o brilhantismo e a seriedade prevaleceram. "Foi uma fase mais séria, sem a verve da primeira, mas focada na publicação de livros e nos debates sobre a literatura e as artes em geral", pontua a professora.
Pão nosso de cada dia
Como forma de eternizar seus pensamentos e chamar a atenção da sociedade para as artes e as letras, os padeiros decidiram produzir algo original, que valorizasse a cultura cearense e fosse porta voz da agremiação. Assim, do forno da originalidade surgiu o jornal da Padaria, intitulado de "O Pão", com Antônio Sales sendo um dos principais responsáveis por sua publicação.
Por meio desse impresso, os padeiros buscavam alimentar o povo com literatura e arte, e, na Fortaleza da época, O Pão certamente ganhou o destaque tão visado por seus idealizadores. O jornal possuía mais de dez seções, distribuídas em oito páginas, e seus primeiros exemplares, publicados aos domingos, foram um sucesso na sociedade alencarina do fim do século dezenove. Ao total, O Pão publicou mais de 200 poesias e 60 narrativas em 36 edições, que pararam de circular quando a agremiação chegou ao fim.
O jornal do grêmio literário colocou um holofote na Padaria, e fez com que outros países, como Portugal, elogiassem a agremiação. Batista explica que o impresso era mandado para algumas cidades do Brasil, e que cada acadêmico da fase inicial da agremiação tinha a obrigação de mandar determinado número de exemplares para intelectuais das capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.
Precursores
Muitos membros da Padaria Espiritual foram precursores das academias de letras no país, e hoje são protagonistas de estudos e pesquisas acerca do tema e de suas contribuições para a arte, a literatura e o jornalismo cearense. Aila Sampaio explica que seus escritos mostravam preocupação com a preservação da diversidade popular local, e que, com humor, elegeram o modo de vida cearense como importante para o caráter nacional.
"É notória a preocupação de vários padeiros com a organização de um cancioneiro popular e a valorização do ambiente e da cultura cearense. Os membros se preocupavam não somente com questões de ordem literária, mas também com os assuntos relacionados aos comportamentos e valores da época. A ideia era fornecer alimento ao espírito do povo, contrapondo-se à atitude burguesa de atender somente às exigências materiais", Aíla Sampaio, professora do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza.
Para Lima, a Padaria Espiritual ainda é fonte de inspiração na literatura e na imprensa cearense. O professor explica que depois do fim da agremiação, surgiram movimentos irreverentes, como a revista Cipó de Fogo, impressa em edições do jornal O Povo, e os movimentos Siriará e Ceia Literária, o último apontado por Batista como muito parecida com a Padaria. "São movimentos que utilizaram regimentos parecidos com o regimento do grêmio literário. Então, essa influência permaneceu por muito tempo em solo cearense", reflete o educador.
Ainda no âmbito da herança deixada pela Padaria Espiritual, Aila reforça que o periódico O Pão era um meio de comunicação entre a sociedade e os intelectuais da época, no qual compartilhavam opiniões e provocavam discussões artístico-culturais, além de dar ao público as produções literárias e artísticas da época, se tornando um grande legado para o jornalismo.
A padaria espiritual e a Semana de Arte Moderna
A Padaria Espiritual teve início 30 anos antes da Semana de Arte Moderna de 1922, e ainda que, em sua totalidade, não sejam tão semelhantes, algumas características podem ser apontadas entre as duas manifestações artístico-culturais "Esteticamente, os escritos dos padeiros não apresentavam nenhuma inovação, não antecipavam o ideário modernista. O espírito jocoso e a defesa do nacionalismo, presentes no Programa de Instalação que, inclusive repercutiu no sudeste do país, sim, aproximam A Padaria do ideário da Semana de 22", afirma Sampaio.
Mostra “100 anos da Semana de Arte Moderna em acervos do Ceará”, em cartaz no Espaço Cultural Unifor, destaca o legado da Padaria Espiritual (Foto: Ares Soares)
Para exemplificar, a professora cita os artigos 14 e 21. O primeiro afirmava ser proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes. Já de acordo com o segundo, seria julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falasse de animais ou plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileira, como – cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho, entre outros.
O professor Batista de Lima está de acordo com a docente. Para ele, a relação e a influência da agremiação literária na Semana de Arte Moderna fica por conta da defesa do patrimônio linguístico nacional e a defesa da flora brasileira. "Então, tudo isso foi importante, porque influenciou na Semana de Arte Moderna. Tem gente que diz que não, mas eu, por exemplo, acho que a Padaria Espiritual teve uma influência no Modernismo nesses dois aspectos: defesa do nosso patrimônio e da nossa cultura", finaliza.
Para quem deseja conhecer mais sobre a associação cearense de “rapazes de Letras e Artes'', a Fundação Edson Queiroz inaugurou, no dia 22 de março, uma mega exposição aberta ao público sobre os “100 anos da Semana de Arte Moderna em acervos do Ceará”. Ela contém um espaço dedicado somente a obras de artistas que, antes mesmo da ascensão do movimento modernista, já esboçavam o desejo de renovação por meio da sua arte, como a Padaria Espiritual.