Entrevista Nota 10: David Martins e a visão interdisciplinar na atenção ao comportamento alimentar

seg, 24 março 2025 11:36

Entrevista Nota 10: David Martins e a visão interdisciplinar na atenção ao comportamento alimentar

Psiquiatra fala sobre comportamento alimentar e a atuação profissional nessa área, além de pontuar os diferenciais da nova Especialização em Comportamento Alimentar da Pós-Unifor


Pós-graduado em Transtornos Alimentares e Obesidade, David é coordenador do Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (Pronutra) da Unifor desde 2011 (Foto: Arquivo pessoal)
Pós-graduado em Transtornos Alimentares e Obesidade, David é coordenador do Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (Pronutra) da Unifor desde 2011 (Foto: Arquivo pessoal)

De acordo com a organização World Eating Disorder, mais de 70 milhões de pessoas no mundo são afetadas por algum transtorno alimentar — como anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno da compulsão alimentar. No Brasil, a estimativa é de que 15 milhões sofram com esses distúrbios, o que seria uma em cada vinte pessoas no país.

O tratamento para esse tipo de diagnóstico envolve a atuação de uma ampla gama de especialistas em saúde, que costumam se debruçar sobre o comportamento alimentar do paciente de maneira interdisciplinar.

“Nessa interdisciplinaridade, os profissionais conversarem e entenderem os diversos pontos de vista desse paciente é fundamental para acompanharmos de forma adequada e entendermos esses indivíduos”, explica o psiquiatra David Martins de Araújo Costa, coordenador do Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (Pronutra) da Universidade de Fortaleza.

Pensando em expandir a formação profissional de excelência na área, a Pós-Unifor lançou a Especialização em Comportamento Alimentar, na qual David também é docente. A formação tem como objetivo promover uma visão ampla acerca da Ciência do Comportamento alimentar e as formas de atuação profissional.

“[O curso] vem justamente ampliar essa visão do comportamento alimentar, integrando as diversas formas e disciplinas que conversam entre si nessa área de acompanhamento dos pacientes, principalmente a nutrição, a psicologia, a psiquiatria, a endocrinologia e, muitas vezes, até a pediatria”, ressalta o professor.

Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), David é especialista em Transtornos Alimentares e Obesidade pela Unifor e pós-graduado em Terapia Cognitivo comportamental pelo Centro Universitário Christus (Unichristus). Atua como preceptor da residência médica em Psiquiatria da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE) e do internato em Psiquiatria da Unichristus.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, ele fala sobre comportamento alimentar e a atuação profissional nessa área, além de pontuar os diferenciais da nova Especialização em Comportamento Alimentar da Pós-Unifor.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — A comida desempenha funções importantes para além do fator nutricional, trazendo impactos significativos em diversos campos da existência humana. De que maneira o comportamento alimentar afeta o cotidiano e a saúde das pessoas? É possível mudar a relação que temos com os alimentos?

Davi Martins — A alimentação é um comportamento que está em todos os aspectos da nossa vida. Eu sempre comento que a gente já amanhece e pensa se vai se alimentar ou não, e se a gente vai sair à noite, muitas vezes está relacionado à comida. Então, é muito importante que nós vejamos o comportamento alimentar diante de todas essas perspectivas e não apenas, por exemplo, só do emagrecimento ou só que a alimentação é algo que dá prazer.

Você tem que inserir e entender o comportamento alimentar em todas essas esferas para que você possa oferecer um melhor acompanhamento, um melhor entendimento. E sim, é possível mudar o comportamento alimentar primeiro se observando, observando o que é que pode estar desagradando, o que é que nós podemos fazer para melhorar essa relação com a comida.

Muitas vezes olhamos para a relação com o corpo também, porque uma alimentação disfuncional muitas vezes é consequência de uma relação ruim com o corpo, com a imagem corporal, com a autoestima — por vezes até nos relacionamentos interpessoais, com uma pessoa que possa estar comentando negativamente sobre o corpo [do outro].

Entrevista Nota 10 — O comportamento alimentar costuma ser associado a um campo de trabalho da nutrição, mas a interdisciplinaridade é uma abordagem crucial para tratar o assunto de modo holístico. Como a medicina, especialmente a psiquiatria, atua junto a outras áreas auxiliar pacientes com transtornos alimentares?

Davi Martins — Os transtornos alimentares são uma fatia do que observamos dentro dos comportamentos alimentares, que é algo bem mais amplo. A Especialização em Comportamento Alimentar da Unifor vem justamente ampliar essa visão do comportamento alimentar, integrando as diversas formas e disciplinas que conversam entre si nessa área de acompanhamento dos pacientes, principalmente a nutrição, a psicologia, a psiquiatria, a endocrinologia e, muitas vezes, até a pediatria.

Como o comportamento alimentar é algo amplo, por exemplo, o psiquiatra age mais na questão dos transtornos alimentares, quando esse grau de sofrimento do comportamento alimentar chega a uma patologia, como anorexia nervosa, bulimia nervosa, compulsão alimentar, transtorno alimentar restritivo-evitativo. Esses são transtornos psiquiátricos alimentares que, necessariamente, precisam ser acompanhados junto de nutricionistas e de psicólogos, justamente para poder entender toda essa diversidade que é o comportamento alimentar.

Mas fora os transtornos alimentares, o que vemos mais na prática, no nosso cotidiano, é o que chamamos de comer transtornado. Muitas vezes, não é uma patologia específica, mas é uma relação muito disfuncional que as pessoas têm com a alimentação, com o corpo, que acaba gerando comportamentos alimentares disfuncionais, com sofrimento.

Então, é o que eu sempre digo: a comida é algo que integra muito as pessoas, muito social. Por vezes, no final de semana, nos juntamos para fazer um churrasco, para conhecer um restaurante novo, saímos da aula no fim do dia e vamos comer uma pizza; e para a maioria das pessoas, isso é natural, é saudável. Mas para as pessoas que têm algum problema no comportamento alimentar, isso gera um sofrimento muito grande. A pessoa se questiona se ela deve ir, se não deve, se vai engordar, se vai conseguir se alimentar na frente das pessoas, então algo que é tão cotidiano muitas vezes gera o sofrimento

E a gente vem observando mais disso ao longo dos anos por vários fatores: seja pela questão das comparações por meio das redes sociais, por exemplo; seja por um aumento na identificação e da própria prevalência de espectros autistas que favorecem comportamentos alimentares restritivos evitativos em razão de questões sensoriais da alimentação; seja pela busca da magreza; seja por essa vida saudável que as pessoas buscam, mas que em exagero pode gerar um sofrimento também.

Então, nessa interdisciplinaridade, os profissionais conversarem e entenderem os diversos pontos de vista desse paciente é fundamental para acompanharmos de forma adequada e entendermos esses indivíduos.

Entrevista Nota 10 — Com a crescente busca por um estilo de vida mais equilibrado e saudável, questões relacionadas à alimentação entram em destaque. Quais são as oportunidades e desafios que profissionais de diversas áreas encontram no mercado de comportamento alimentar? A pesquisa científica é um ramo importante ou promissor nesse cenário?

Davi Martins — Além desse mercado em que o comportamento alimentar está inserido, que é realmente crescente e tanto para o lado positivo como para o lado negativo, temos a questão profissional. Vemos uma crescente exposição de profissionais nas redes sociais que não têm uma formação adequada, que têm conhecimentos, por vezes, não científicos sobre o comportamento alimentar, falando sobre e influenciando pessoas de forma negativa, muitas vezes até predispondo transtornos e comportamentos alimentares disfuncionais com as falas equivocadas.

E, ao mesmo tempo, você tem um público sedento por essas informações. Então, no momento, o que mais precisamos é a qualificação dos profissionais, seja da nutrição, da psicologia, da enfermagem, da psiquiatria, da endocrinologia, para ter conhecimentos científicos corretos, baseados em evidências, para entender e lidar com os comportamentos alimentares.

O desenvolvimento científico nessa área é crescente e pungente. No próprio Brasil, nós temos centros muito importantes como o Ambulim, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Aqui em Fortaleza, nós temos o Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (Pronutra), com seus campos de pesquisa e conexões mundiais nas quais conversamos com profissionais do mundo todo para discutir e entender o que está acontecendo no meio científico dos comportamentos alimentares.

Eu acredito que o profissional que fizer essa Especialização [em Comportamento Alimentar da Unifor], além do networking de pessoas interessadas nesse assunto, ele também vai se posicionar de uma forma ética e científica com um conhecimento balizado para atender os pacientes e falar com propriedade.

Entrevista Nota 10 — Por ser um tema amplo e complexo, a área de comportamento alimentar exige um olhar mais focado e preparado para lidar com diversas especificidades. Qual a importância de ter uma especialização profissional para trabalhar com esse assunto? 

Davi Martins — Como eu falei na resposta anterior, o comportamento alimentar é muito amplo, específico, mas ele é multiprofissional. Então, a Especialização em Comportamento Alimentar da Unifor tem justamente essa vantagem de você ter vários profissionais de várias áreas conversando, pensando e estudando sobre esse assunto.

A interdisciplinaridade, que é um termo muito usado hoje em dia, não é só o fato do paciente ser atendido por diversos profissionais, ela provoca uma mudança de visão dos profissionais que estão atuando naquele tema. Então, eu, como psiquiatra, atuando e conversando interdisciplinarmente com o nutricionista, acabo entendendo e tendo a visão do nutricionista sobre aquele ponto. Eu aprendo com o psicólogo, com o terapeuta que está atendendo aquele paciente e passo a ter aquela visão no meu conhecimento e no meu atendimento.

Ou seja, a minha visão sobre o comportamento alimentar, sobre aquele paciente, se amplia além do conhecimento da psiquiatria. Eu agrego outros elementos na forma como vejo e entendo os transtornos alimentares, e essa troca é riquíssima. Quem participa disso tem um crescimento profissional muito importante.

Entrevista Nota 10 — Neste semestre, a Unifor lançou a Especialização em Comportamento Alimentar. Quais são os diferenciais do novo curso? Como essa formação se destaca em relação às demais que existem na área?

Davi Martins — O lançamento da Especialização em Comportamento Alimentar pela Unifor é muito importante. Mas é também importante todos saberem que essa especialização é uma consequência de um outro curso que já existia, que era a Especialização em Transtornos Alimentares e Obesidade, e que ocorreu durante alguns anos. Ela trouxe profissionais renomados de todos os principais centros de transtornos alimentares do Brasil, como de São Paulo e do Rio Grande do Sul.

O que essa nova especialização propõe agora é trazer uma visão ainda mais ampla, não só dos transtornos alimentares e da obesidade, mas como o próprio nome diz, do comportamento alimentar. Ela é uma especialização que já nasce com um know-how muito grande, ela já nasce num aperfeiçoamento de um programa de sucesso que vinha acontecendo. Foi repensado todo o cronograma, todas as visões importantes, o que é que poderia melhorar nessa Especialização de Transtornos Alimentares e Obesidade que ocorreu.

Eu fui aluno da primeira turma dessa primeira especialização, sou psiquiatra do Pronutra, programa realizado no Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Unifor, há mais de 14 anos. E é impressionante a qualidade dos profissionais que vêm dar aula no novo curso de especialização.

O diferencial da Especialização em Comportamento Alimentar, além de ser parte de uma outra especialização da própria Unifor — que reconhecidamente é uma universidade importante, tradicional e inovadora, com uma capacidade técnica e logística muito grande —, é que ela é um aperfeiçoamento de algo que já ocorria antes. Então, o aluno que participar dessa especialização já entra com essa certeza de estar numa universidade das mais importantes do Brasil, com todo esse background.

Entrevista Nota 10 — Antes das especializações, a Unifor já voltava os olhos para o tema por meio do Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade (Pronutra), do qual você faz parte. Qual a importância de iniciativas como essa tanto para a população quanto para o desenvolvimento de estudos e tratamentos nesse campo? E qual o papel do Pronutra na formação de novos profissionais? 

Davi Martins — O Pronutra já existe há cerca de 20 anos. Ele foi um dos primeiros ambulatórios especializados em transtornos alimentares do Brasil, ainda hoje são poucos, e nós somos um dos mais antigos. A Unifor sempre foi pioneira nessa visão e é reconhecida por isso.

Essas iniciativas são extremamente importantes, porque você imagina que, há 20 anos, abrir um serviço de transtornos alimentares no Nordeste do Brasil teve inclusive uma repercussão nacional. Muitas pessoas pensavam “como é que vai tratar transtornos alimentares no Nordeste?”, como se os transtornos alimentares não fossem um quadro que ocorre em todas as faixas etárias, em todas as faixas econômicas. É uma doença psiquiátrica que acontece.

Ao longo dos 20 anos de acompanhamento, o Pronutra e o curso de Nutrição da Unifor vêm se desenvolvendo e se destacando nessa área. E isso vai além do atendimento clínico interdisciplinar com psiquiatria, nutrição e psicologia: tem também as pesquisas científicas que são realizadas nesse ambiente acadêmico, as discussões clínicas, as apresentações de trabalhos e a geração de conhecimento científico para os comportamentos e transtornos alimentares.

Então, é de suma importância para a população e para o meio científico que já há muito tempo a instituição venha estudando e venha trabalhando com isso, sendo uma das pioneiras no assunto.