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Seg, 16 Maio 2022 11:54

Entrevista Nota 10: Maria Verônica Freire e os malefícios do uso de cigarro eletrônico

Pneumologista e broncoscopista, Maria Verônica Freire é professora do curso de Medicina da Unifor e médica da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará


Ao Entrevista Nota 10, Maria Verônica fala sobre a “Evali” e outras doenças respiratórias que se escondem por trás dos e-cigarros e vapes (Foto: Acervo Pessoal)
Ao Entrevista Nota 10, Maria Verônica fala sobre a “Evali” e outras doenças respiratórias que se escondem por trás dos e-cigarros e vapes (Foto: Acervo Pessoal)

Durante este mês de maio, o Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, realizará uma série de ações de conscientização sobre os malefícios do uso de cigarros eletrônicos. Apesar de proibidos em território nacional, estes dispositivos têm se popularizado cada vez mais, em especial entre jovens de 18 a 24 anos, uma realidade que preocupa as entidades governamentais no campo da saúde.

Para ressaltar a gravidade do assunto e as doenças respiratórias que se escondem por trás dos e-cigarros e vapes – em especial a “Evali”, doença que chamou atenção da Organização Mundial da Saúde em 2019 –, o Entrevista Nota 10 conversou com Maria Verônica Freire, docente do curso de Medicina da Unifor e médica da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. Especialista em broncoscopia, ela é pesquisadora do tema e ministrará debate no próximo dia 25, às 18h, no Auditório A3. 

Abaixo, leia a entrevista na íntegra.

Entrevista Nota 10 - Quando exatamente o uso de cigarros eletrônicos começou a chamar atenção do setor de saúde?

Maria Verônica Freire - Acredito que o grande impacto no setor saúde veio com a divulgação, em julho de 2019, de uma doença grave respiratória que atingiu quase 2.770 jovens americanos, causando 60 óbitos. Notou-se uma provável relação dessa doença com substâncias presentes no cigarro eletrônico. 

Claro que a preocupação pelo uso crescente e indiscriminado destes dispositivos entre jovens vem aumentando dia após dia, [sendo essa tendência] observada principalmente por nós pneumologistas, que recebemos esses jovens com sintomas respiratórios e que quase nunca os atribuem ao uso do cigarro eletrônico. Sabemos das consequências a longo prazo e dos prováveis futuros cenários impactantes para saúde individual e pública.

Entrevista Nota 10 - Percebemos que, na atualidade, o uso destes cigarros se mostra bastante popular em jovens adultos, sobretudo de 18 a 24 anos. Qual seria uma possível explicação para esse fenômeno?

Maria Verônica Freire - A queda do consumo de cigarro comum no mundo despertou o interesse da indústria do  tabaco em investir no cigarro eletrônico por meio de campanhas publicitárias arrojadas. Essas campanhas evidenciam a alta tecnologia dos dispositivos; os designs modernos, fáceis de conduzir; a fácil manipulação para adição de qualquer componente químico; aromas agradáveis; a maior aceitação social dos dispositivos por não produzir fumaça, e sim vapores; dentre outros aspectos, incluindo a divulgação de que são livres de substâncias nocivas à saúde. Entretanto, os dispositivos de quarta geração podem ofertar altas concentrações de nicotina. 

Sabe-se que o início precoce ao uso da nicotina está associado ao aumento do consumo diário, maior dependência e maior dificuldade na cessação, e é essa população mais suscetível o público-alvo da indústria do tabaco. A propaganda e a comercialização on-line, incluindo páginas para trocas de experiências entre os usuários (os mais “experientes” incentivando os “iniciantes” ou mais jovens curiosos) permitiram a fácil introdução do cigarro eletrônico nessa faixa etária da população. 

Entrevista Nota 10 - Quais os efeitos que estes cigarros podem se manifestar no usuário? 

Maria Verônica Freire - Os efeitos estão na dependência do conteúdo e concentrações presentes no e-líquido, que contêm inúmeras substâncias, como saborizantes, glicerina, propilenoglicol, acetato de vitamina E e metais pesados. Alguns têm em sua composição, ainda, nicotina em concentrações variadas, ou até mesmo o THC, derivado do cannabis. 

De um modo geral, os sintomas respiratórios são tosse persistente, ardor na garganta, dor no peito e falta de ar, podendo ocasionar também dor de cabeça, síncopes, mal-estar geral ou mesmo o desenvolvimento de doenças graves, como enfisema e câncer de pulmão. [O cigarro eletrônico] é responsável por exacerbar crises de asma nos portadores dessa comorbidade. 

Não podemos esquecer dos sintomas manifestados pela Evali (“E-cigarrette or Vaping Product Use-Associated Lung Injury”, no original em inglês; ou “lesão pulmonar associada ao uso de cigarros eletrônicos ou produtos vaporizadores”, em tradução livre), com provável relação causal da inclusão do THC ou acetato de vitamina E no componente líquido do cigarro eletrônico. 

Entrevista Nota 10 - Poderia nos contar um pouco sobre a mencionada “Evali”, doença consequente do uso desses dispositivos?

Maria Verônica Freire - A Evali, como destacado na resposta anterior, é uma doença grave que causa danos no parênquima pulmonar e que pode levar o indivíduo à morte por insuficiência respiratória grave. Os casos publicados na literatura científica, ocorridos nos Estado Unidos, chegaram ao número de quase 2.700, com necessidade de internação hospitalar, uso de ventilação mecânica e mortalidade em torno de 2%. 

No Brasil, a ANVISA notificou sete casos de Evali até o ano 2020. Após uso deste  dispositivo, o paciente pode evoluir de sintomas leves, como tosse seca e falta de ar, para queda da oxigenação pulmonar e infiltrados pulmonares difusos, que conduzem à necessidade de aparelhos para auxiliar na respiração.  

Entrevista Nota 10 - Existe algum posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os cigarros eletrônicos? Existe alguma regulamentação referente ao uso deles no Brasil?

Maria Verônica Freire - A OMS tem acompanhado com grande preocupação os rumos da indústria do tabaco no mundo todo. As grandes empresas envolvidas nesse lucrativo negócio estimam que, em 2047, as vendas do e-cigarro serão superiores às de cigarros tradicionais, repetindo a  história da pandemia do tabaco no mundo todo. 

Na tentativa de impedir esse movimento, a OMS defende que os órgãos governamentais devem restringir propagandas, promoção e patrocínios de cigarros eletrônicos de forma a inibir o destino desses dispositivos eletrônicos para jovens não fumantes e pessoas que não fazem uso de nicotina, ou mesmo para evitar a dualidade do uso do cigarro convencional e cigarro eletrônico. 

A OMS defende também que esses dispositivos devem ser proibidos em recintos coletivos fechados e locais de trabalho. Ela alerta que os aerossóis produzidos pelo vapor são extremamente nocivos à saúde do usuário e do fumante passivo; assim, não autoriza o uso do cigarro eletrônico como medida terapêutica para parar de fumar, pois não existem evidências científicas suficientes que asseguram esse fim sob a perspectiva de redução de danos.

O Brasil tem abrangentes e importantes políticas públicas voltadas para o controle do tabagismo. Em 2009, a ANVISA, por meio Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) Nº 46,  proibiu o comércio, a importação e a propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar  (DEF), assim como não autoriza seu uso como alternativa ao tratamento da cessação do  tabagismo, tendo em vista a falta de evidência científica que justifique seu uso.

Entrevista Nota 10 - Como os cursos de saúde da Universidade de Fortaleza atuam em termos de pesquisa e conscientização sobre esse assunto?

Maria Verônica Freire - Lembro que quando foram divulgados os estudos e análises do ocorrido nos Estados  Unidos, a Liga de Pneumologia sentiu-se estimulada a compreender a realidade [do uso de e-cigarros] no campus da Unifor. Realizamos ações no Centro de Convivência e entrevistamos os alunos que estavam utilizando o cigarro eletrônico no ambiente universitário.

Foi uma experiência instigante, pois levamos os estudos, mostramos fotos das tomografias daqueles jovens acometidos pela Evali, esclarecemos dúvidas, procuramos entender a motivação, os efeitos indesejáveis, etc. O resultado culminou em uma apresentação no Congresso Brasileiro de Pneumologia, mostrando uma prevalência de quase 17% dos alunos usuários de cigarro eletrônico na Unifor.

Hoje, o curso de Fisioterapia, por meio do Grupo de Pesquisa e Estudos em Reabilitação Cardiopulmonar, está fazendo um levantamento da prevalência do uso do cigarro eletrônico nas instituições de Ensino Superior do Ceará. Em 2019, observaram uma prevalência de tabagismo em 12% dos alunos do saúde, 20% dos estudantes de tecnologia e ciências jurídicas, e quase 40% entre os alunos de comunicação e gestão.