Entrevista Nota 10: Malu Jimenez e a gordofobia como problema social e de saúde pública

seg, 30 junho 2025 11:38

Entrevista Nota 10: Malu Jimenez e a gordofobia como problema social e de saúde pública

Referência no debate sobre gordofobia no Brasil, a acadêmica e artivista fala sobre as diferentes facetas do assunto na cultura contemporânea e as consequências do preconceito corporal na sociedade


Mestre e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea, Malu é filósofa e Líder do Grupo de Estudos Transdisciplinares das Corporalidades Gordas no Brasil - Pesquisa Gorda (Foto: Café Filosófico)
Mestre e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea, Malu é filósofa e Líder do Grupo de Estudos Transdisciplinares das Corporalidades Gordas no Brasil - Pesquisa Gorda (Foto: Café Filosófico)

Você já pode ter ouvido — ou até mesmo chegou a fazer — algum comentário ou brincadeira sobre o peso de alguém, seja com a justificativa de preocupação com a saúde ou com o intuito de “fazer graça” sobre a aparência da pessoa. Apesar de parecer inofensivo, esse tipo de comportamento se traduz em um tipo de preconceito: a gordofobia.

Segundo o Mapa da Obesidade, existem cerca de 2,3 bilhões de adultos no mundo com sobrepeso, sendo 700 milhões com obesidade. Apesar dessas questões serem consideradas problemas de saúde pública, a discriminação e exclusão de corpos gordos na sociedade causam não só adoecimento psíquico, como também podem retirar o acesso a direitos básicos como o direito de ir e vir e o acesso a tratamentos de saúde.

Para a filósofa, artivista e acadêmica Malu Jimenez — que se identifica como uma pessoa gorda não-binária e é referência no debate sobre gordofobia no Brasil —, a patologização dos corpos gordos é uma prática que mata essas pessoas, principalmente na busca por atendimento médico. 

“Por exemplo, chega uma pessoa gorda num consultório com dores abdominais e o médico diz que ela tem que emagrecer. Só que aquelas dores, quando investigadas, podem ser doenças fatais. Existem muitas pessoas gordas morrendo hoje por falta de acesso à investigação médica. Isso é um direito constitucional”, pondera.

Mestre e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Malu tem pós-doutorado em Psicossociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também é líder do Grupo de Estudos Transdisciplinares das Corporalidades Gordas no Brasil (Pesquisa Gorda).

Atua como professora pesquisadora na pós-graduação em Diversidade e Inclusão em Gestão e Comunicação, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), e na Universidade Estadual de Londrina (UEL), dentro da linha de Pesquisa Decolonialidades e Comunicação. 

Em março, Malu esteve na Universidade de Fortaleza — instituição da Fundação Edson Queiroz — para ministrar uma palestra sobre formação crítica contra a gordofobia na saúde. Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela fala sobre as diferentes facetas da gordofobia na cultura contemporânea e as consequências do preconceito corporal na sociedade.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — É comum presenciar comentários ditos “engraçados” sobre o peso e o corpo das pessoas, especialmente no humor profissional, sem haver a mesma reação negativa que existe com outros tipos de preconceitos. O que faz nossa cultura ver pessoas gordas como alvo de uma gordofobia recreativa sem vexame? Como podemos distinguir entre piadas inofensivas e discursos que reforçam estigmas contra corpos gordos? 

Malu Jimenez — Precisamos entender que a gordofobia é um estigma estrutural. E o que significa isso? Significa que ela está na forma como as pessoas pensam, na forma como as pessoas se organizam, na forma como as pessoas constroem conhecimentos, saberes. Então, é um preconceito, um estigma que está naturalizado na forma da gente ser. Nem percebemos que estamos sendo preconceituosos, que estamos sendo violentos, por isso que cometemos a gordofobia recreativa, e as pessoas nem percebem que isso é violento com pessoas gordas, com corpos gordos.

Eu acho que podemos distinguir piadas inofensivas de discurso que reforçam estigmas contra os corpos gordos toda vez que repensarmos se aquela fala ou comentário pode agredir alguém. A minha liberdade de expressão acaba a partir do momento que eu posso ofender alguém, magoar alguém, violentar alguém, colocar alguém em lugar vexatório. Esse é o limite que precisamos repensar e falar sobre.

Falar sobre o corpo gordo ainda é um tabu. Falar sobre gordofobia ainda é um tabu. Você não ouve falar de gordofobia como você ouve falar sobre racismo, sobre transfobia. Então, quanto mais falarmos sobre o tema, mais as pessoas vão saber que existe e aí, então, elas vão ter informação e quem sabe ressignificar esse estigma que está dentro de todo mundo.

Entrevista Nota 10 — O movimento body positive (positividade corporal, em português) contou com um auge no discurso de aceitação e amor próprio na década de 2010, mas tem tido menor repercussão com a volta à mídia dos ideais extremos de beleza vividos nos anos 2000. O que é o body positive e qual a sua relação com o ativismo gordo? Essa volta da magreza como meta está relacionada a alguma mudança sociopolítica atual?

Malu Jimenez — É importante saber que o movimento body positive não é a mesma coisa que ativismo gordo. A origem, os objetivos, as pautas, a luta, as pessoas envolvidas são outras, completamente diferentes. O body positive está muito mais voltado à pressão estética enquanto o ativismo gordo está ligado à gordofobia. Qual a diferença disso?

A pressão estética vai atingir todas as pessoas porque dentro do capitalismo existe a construção de um protótipo de corpo inalcançável. Então, a maioria ou quase todas ou todas as pessoas estão descontentes e incomodadas com o próprio corpo. Todo mundo gostaria de mudar alguma coisa, todo mundo gostaria de fazer alguma coisa para "melhorar" o seu próprio corpo porque esse descontentamento gera consumo. E isso faz parte de um mercado do emagrecimento e do mercado da beleza, que é um dos mercados que mais fatura anualmente no mundo.

Todo mundo sofre pressão estética: mulher, homem, alto, magro, gordo. Todo mundo vai sofrer, principalmente as mulheres, porque vivemos numa sociedade patriarcal, mas a gordofobia quem sofre são as pessoas gordas. E a gordofobia está ligada aos direitos humanos no sentido de tirar o acesso a direitos básicos como ir e vir num transporte público, por exemplo. Passar mal, chegar num hospital e não ter um aparelho de medir pressão para o seu braço, uma maca que comporte seu peso, um aparelho de ressonância. Estamos falando de coisas distintas. Estamos falando de direitos básicos, de direitos humanos.

Agora, a volta da magreza como meta, com certeza, está relacionada com o neoliberalismo e o capitalismo, porque é isso que vende. Existe uma romantização da magreza, existe uma construção de discurso midiático que para você ser feliz, para você ser bem sucedida, para você ser saudável, você tem que estar magro.

Tem um livro bem interessante do filósofo Lipovetsky que chama A Sociedade da Leveza, e ele fala sobre como a sociedade neoliberal liberal capitalista tem ido para a diminuição dos tamanhos, até porque um corpo menor é um corpo produtivo, um corpo leve é um corpo que cabe nas coisas. Então, se pensarmos nos aviões, que os tamanhos das poltronas estão cada vez menores, nos apartamentos nas grandes cidades, quanto menor o corpo mais ele vai caber dentro dessa produtividade e lucratividade que o capitalismo constrói.

Entrevista Nota 10 — O Brasil e o mundo têm passado pela febre do uso de medicamentos para diabetes — Ozempic, Mounjaro e Wegovy, por exemplo — como um método de emagrecimento rápido e fácil. Como você vê a relação entre a “medicalização da magreza” e a pressão estética nas redes sociais? Isso representa um retrocesso nos avanços conquistados pelos movimentos de promoção da diversidade?

Malu Jimenez — Essa "medicalização da magreza" tem exatamente relação com o que eu acabei de falar. O que se vende, o que se mostra, o que se afirma na saúde, na educação, na mídia, é que corpos magros são corpos felizes, são corpos saudáveis, são corpos bonitos, são corpos que se deram bem na vida. Todo mundo quer ser magro. Existe uma pressão gordofóbica e uma pressão estética nas mídias, nas redes sociais, nas famílias, na própria saúde, para que as pessoas estejam magras.

Então, temos que entender que o nosso cenário é um sistema neoliberal capitalista, onde o lucro vai ser central. Inclusive, a saúde está relacionada ao que consideramos como belo e bonito. O que a consideramos belo e bonito é aquilo que vai vender.

Acredito que toda vez que o fascismo, o neoliberalismo, o capitalismo ou mesmo essa "medicalização da magreza" - que está muito atrelada a tudo isso que eu falei - vêm com muita força nas mídias, nas redes sociais, nos discursos, quer dizer que o outro lado estava avançando mais do que deveria. Acho que o mercado do emagrecimento se sentiu atacado, invadido e, portanto, ele vem com mais força falando sobre a magreza, colocando a magreza como meta dentro da nossa sociedade.

Eu não acredito que seja um retrocesso, mas eu acredito que seja um avanço desse discurso para que ele não perca força. Existe um império milionário da beleza e da magreza por trás de tudo isso. Agora, toda vez que existe uma pressão muito forte, também existe a resistência. Então, vamos ver o que vai acontecer dessa avalanche do emagrecimento, da medicalização dos corpos.

Entrevista Nota 10 — Existe uma ideia cristalizada na sociedade de que gordura é sinônimo de doença, o que acaba causando uma série de situações preconceituosas e pouco científicas cometidas por diversos profissionais da saúde. Em suas pesquisas, como você analisa a relação entre a patologização dos corpos gordos e a exclusão social?

Malu Jimenez — A patologização do corpo gordo é essa ideia equivocada de que a gordura é sinônimo de doença. Se formos pensar nas consequências disso no chão da saúde, lá no atendimento do SUS, é [algo] muito grave, porque o diagnóstico vem antes da escuta e da investigação médica. O que é que tem acontecido mais do que se é publicitado ou que sabemos? Pessoas gordas chegam nos hospitais e nos consultórios e, por estarem gordas, o diagnóstico chega antes, os médicos mandam essas pessoas emagrecerem e não escutam as suas queixas.

Por exemplo, chega uma pessoa gorda num consultório com dores abdominais e o médico diz que ela tem que emagrecer. Só que aquelas dores, quando investigadas, podem ser doenças fatais. Existem muitas pessoas gordas morrendo hoje por falta de acesso à investigação médica. Isso é um direito constitucional. Então, patologizar o corpo gordo é, de alguma forma, matar pessoas gordas quando chegam no atendimento, ali no consultório ou nos hospitais, com algumas queixas, e os médicos já diagnosticam, pelo tamanho do corpo da pessoa, que ela é doente e ela precisa emagrecer para curar aquela doença.

Precisamos repensar na formação dos profissionais de saúde que colocam, que aprendem, inclusive, a colocar o diagnóstico antes da investigação da pesquisa médica e acabam, então, indo contra a Constituição, que garante acesso à saúde e investigação médica de todas as pessoas.

Entrevista Nota 10 — Como é possível combater a gordofobia e demais preconceitos relacionados à aparência física das pessoas? O que é preciso para haver uma mudança de perspectiva sobre o corpo do outro e minimizar a exclusão social nesse contexto?

Malu Jimenez — Eu acredito que, para combatermos a gordofobia e os demais preconceitos relacionados à aparência física, é muito importante que comecemos a repensar a formação das pessoas sobre esse tema, tanto na área da saúde como desde a infância, por exemplo.

Se desde muito pequena eu aprendo que a palavra gorda é um xingamento, que ser gorda é algo muito ruim, que eu tenho que fazer de tudo para evitar isso, eu já vou crescer construindo preconceito, estigmas e exclusões dessas pessoas na sociedade. Então, precisamos rever dentro do ensino como é que estamos falando sobre esses corpos. Se eu aprendo na universidade que o corpo gordo é um corpo doente, é um corpo preguiçoso, é um corpo que precisa ser medicalizado, interditado, que ele não se ama, que ele não se cuida, eu vou reproduzir isso quando eu terminar [a formação] e virar um profissional.

Ao meu ver, precisamos rever a formação desde a infância, dentro das instituições de ensino, sobre o que é gordofobia, sobre os corpos gordos. Precisamos, na verdade, ultrapassar o combate aos corpos gordos para o reconhecimento que esses corpos existem, resistem e estão vivendo as suas vidas.

Entrevista Nota 10 — Em março, você esteve na Unifor para uma palestra sobre formação crítica antigordofobia na saúde. Na sua visão, qual é o papel do ambiente acadêmico na construção de uma sociedade mais inclusiva e diversa? De que maneira iniciativas como essa podem contribuir para uma mudança cultural e assertiva sobre o tema?

Malu Jimenez — Sim, eu estive na Unifor, foi muito importante esse convite que o professor Augusto Carioca me fez. Eu ainda estive em mais duas bancas. Como eu disse antes, a construção de uma formação antigordofóbica é muito importante. Revermos saberes e conhecimentos que têm violentado outros corpos, no caso os corpos gordos, é importantíssimo para que eu não continue reproduzindo a gordofobia, naturalizando essa violência na minha prática, nos meus estudos.

Levar essa discussão para o ambiente acadêmico é fundamental na formação de uma sociedade mais inclusiva, mais justa, mais diversa, mais humana. E acredito que existem muitas iniciativas que podemos contribuir com esse rompimento mesmo de paradigma, como palestras, rodas de conversa, disciplinas dentro dos cursos que falem sobre o corpo gordo. Isso é urgente, necessário.

Nós não temos, dentro dos currículos ainda, um debate sobre as corporalidades gordas, sendo que nós somos 60% da população hoje no Brasil. Então, é para ontem que repensemos os currículos e coloquemos esse debate dentro das discussões, como eu disse, nas instituições de ensino.