seg, 6 janeiro 2020 15:56
Entrevista Nota 10: Marília Taumaturgo em "do amor ao cuidado"
Coordenadora do curso de Medicina Veterinária reflete sobre a necessidade de formar profissionais plurais e que mantenham contato direto com os animais desde o início da graduação.
Antes mesmo de ter a primeira turma formada, o curso de Medicina Veterinária da Universidade de Fortaleza (Unifor) já se destaca no mercado de trabalho e no ambiente acadêmico. O foco na vivência prática, a diversidade de saberes, os projetos de extensão, o amparo à pesquisa e a criação de uma rede de docentes diferenciados e engajados torna o curso de graduação um dos melhores do Ceará. Marília Taumaturgo, coordenadora do curso desde sua criação, se orgulha das vitórias já alcançadas desde o início da criação, em agosto de 2016.
A cada dia são realizados mais investimentos na estrutura física e criadas mais formas de reforçar o contato dos alunos com os animais. Diferente de outros cursos - onde os futuros profissionais de veterinária têm contato com animais apenas na reta final da graduação - a Universidade de Fortaleza investe nessa aproximação desde o início.
Marília reforça que o aluno tem a oportunidade de vivenciar a profissão e aproveitar a formação em sua plenitude. Com um novo espaço físico construído - o Centro de Treinamento Veterinário - e a possibilidade de aumentar os projetos de extensão, a docente vislumbra um horizonte de engajamento no mercado de trabalho e de estudos para os futuros profissionais.
Professora Marília, como aconteceu sua trajetória na Medicina Veterinária?
Marília Taumaturgo - Eu sou formada em Medicina Veterinária, em 1990, pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Na época, era a única instituição que oferecia o curso. Fiz pós-graduação e estou na docência desde 1995 e sempre atuei na área de clínica de pequenos animais e patologia. Lecionei também em outras instituições, dentre elas a UECE e durante muitos anos tive clínica de pequenos animais. Nos últimos dez anos a docência foi ficando mais forte e ao entrar na Universidade de Fortaleza, a partir dos cursos ofertados pela instituição, me vi fascinada pelo perfil docente desenhado pela universidade. Há muitos anos havia um projeto de criação do curso de Medicina Veterinária e esse projeto sempre ia ficando arquivado. Talvez porque a gestão da universidade aguardasse o momento ou um modelo pedagógico mais inovador. Em 2015, começamos a pensar junto com a Direção do Centro de Ciências da Saúde (CCS): “por que não buscarmos agora o curso de Medicina Veterinária?”. Apresentamos um novo projeto e fomos melhorando até ser aprovado em 2016, para iniciar no segundo semestre do mesmo ano.
À época da criação do curso, qual perfil de profissional era pensado?
Marília Taumaturgo - Existem as diretrizes curriculares nacionais de cada curso. Então, a universidade como uma instituição séria e pensando em um curso que formasse dentro do que é preconizado pelo Ministério da Educação (MEC), trabalha para a formação de um profissional generalista. Hoje, no Brasil, o egresso dos cursos de Medicina Veterinária deverá ter essa formação. Lógico que quando termina a graduação ele vai escolher, cursar pós-graduação, mestrado, especialização na área que ele tem afinidade, mas, até finalizar o curso, ele precisa perpassar por todas as áreas.
Qual a importância da vivência prática para os estudantes do curso de Medicina Veterinária e como essas experiências têm sido realizadas dentro da Universidade de Fortaleza?
Marília Taumaturgo - Quando iniciamos o desenho da matriz, em parceria com a Assessoria Pedagógica do CCS fizemos uma ampla discussão sobre o modelo ideal a ser utilizado pelo curso. Nesse período a universidade já contava com vários médicos veterinários que lecionavam em outros cursos. Foi uma discussão muito rica, com muito estudo e um suporte maravilhoso da universidade. Identificamos que um grande diferencial seria a introdução de práticas aplicadas desde o primeiro semestre, o que fortaleceria o desenvolvimento discente das competências para o chamado “Dia 1“, ou seja, o seu primeiro dia como profissional. No modelo tradicional aplicada nas instituições de ensino superior do Ceará e na grande maioria do Brasil o aluno vai participar de práticas por volta do sexto ou sétimo semestre. Então, ele passa em média dois anos e meio exclusivamente em sala de aula estudando teoria direta.
O aluno pode se sentir desestimulado dentro do modelo tradicional?
Marília Taumaturgo – Pode sim, pois ele não se vê como um médico veterinário em formação que é como consideramos nossos alunos. No modelo tradicional quando ele começa a ter contato com animal, ele diz “não é isso que eu quero”. mas já se passaram dois anos e meio, ou seja, o aluno levou tempo para identificar que não é o que ele deseja. Assim, na Universidade de Fortaleza o aluno desde o primeiro semestre faz práticas de manejo com animais, inicialmente, de forma simples e com o passar dos semestres as práticas vão se tornando mais complexas. Ele não vai participar de uma cirurgia no primeiro semestre, mas têm coisas que ele pode fazer logo no início. Dessa forma, ele vai se adaptando ao manuseio com os animais porque nós temos muitos alunos de origem urbana e que nunca lidaram com um animal, e assim, aos poucos eles vão se apropriando das espécies que temos na região.
É muito comum que, na infância, as crianças coloquem a profissão de veterinário como uma das escolhas para o futuro. A senhora recebe no curso muitos alunos que têm esse amor pelos animais ao longo da vida e resolveram ser veterinários? Qual o perfil de quem procura o curso?
Marília Taumaturgo - O amor aos animais é fundamental para todos que desejem desenvolver qualquer atividade com os mesmos , sendo o respeito por eles obrigatório a todo ser humano. Hoje, muitos procuram os cursos de graduação em medicina veterinária pensando nos pets e com uma visão por vezes imatura, o que é natural. Às vezes, você gosta tanto que não consegue fazer o que é necessário para ajudar. Além do amor, você tem que querer cuidar. Nós conversamos muito com nossos alunos e desde o início eles têm aulas com caprinos, carnívoros e com animais de laboratórios e assim vão entendendo o que é a Medicina Veterinária em sua amplitude.
Mas quando nós falamos da atuação de um profissional da veterinária, logo pensamos nos tradicionais petshops, mas a área de abrangência vai muito além disso. Em quais outros locais, empresas e mercados podemos identificar a atuação dos veterinários? Existe um bom mercado no Ceará?
Marília Taumaturgo - A Medicina Veterinária tem uma amplitude grande nas suas funções. Do supermercado, abatedouro, assistência a propriedades rurais, criatórios de quaisquer espécies, pesquisa, saúde pública, nutrição e produção animal, clínica e cirurgia de todas as espécies, produção de biofármacos e muitas outras. Existem muitos lugares onde o médico veterinário transita e têm áreas que são exclusivas desse profissional. Muitos começam pensando “só no cão e no gato”. A inspeção de produtos de origem animal é exclusiva do médico veterinário. Então, toda carne, peixe, leite que chega na mesa para o café da manhã ou almoço passou por um profissional médico veterinário. A inspeção de produtos de origem animal é uma área em expansão e extremamente necessária para a saúde humana. Nós falamos muito que o médico veterinário não trabalha pensando só na saúde dos animais, ele trabalha também para a saúde das pessoas. Porque se eu cuido do alimento, eu estou cuidando da saúde humana. No momento que eu estou atendendo um cão ou gato na clínica e esse animal é vacinado contra a raiva, estamos cuidando também daquela família e da comunidade evitando que a doença se estabeleça no local. Logo, dentro da saúde pública, o médico veterinário tem uma participação fundamental. A produção animal é responsável pela alimentação da população. A clínica de pequenos animais ganhou um espaço merecido devido ao reconhecimento da importância emocional da convivência com os animais, parte ao estilo de vida urbana que torna muitas pessoas solitárias e também pelo aumento da expectativa de vida da população brasileira, casais com menor número de filhos e outras razões. Não digo que os animais estão substituindo, mas eles preenchem parcialmente o vazio e a solidão de muitos reduzindo a depressão , estimulando as caminhadas e assim melhorando a qualidade de vida.
Você falou de muitas áreas de atuação - além de cuidar dos animais domésticos e silvestres, o profissional vai trabalhar em área de clínica, em cirurgias, cuidando da sanidade do animal, nutrição e a reprodução. Como foi pensada a estrutura do curso para pensar em funções tão diversas?
Marília Taumaturgo - Em 2017 foi iniciada a construção de um prédio que chamamos de Centro de Treinamento Veterinário, ele foi criado exatamente para permitir as práticas dos alunos de forma precoce. O grupo Edson Queiroz tem as propriedades rurais, porém precisávamos de um local que permitisse acesso diário aos alunos. Tinha que ser um local próximo, com animais saudáveis, onde o estudante tivesse acesso fácil e rápido. Então, foi criada essa estrutura que é bem próximo a Universidade e a partir daí fomos visualizando outras necessidades. Nessa mesma área, foi criado o Complexo Veterinário constituído por um prédio voltado para a Produção e Nutrição Animal, que possui laboratório para avaliação de alimentos, elaboração de ração e cultivo de plantas a ser realizado pelos próprios alunos para estudos. Consta também um bloco de patologia veterinária com ampla sala de necropsia com câmara fria e capacidade de receber espécies de portes diversos para estudos post mortem. Além disso, o complexo conta com um prédio central, que já no térreo aparecem centros cirúrgicos para pequenos e grandes animais e no primeiro piso salas de aulas para pequenos grupos utilizarem metodologias ativas e laboratório de microscopia. Terminado esse prédio, dois novos já estão aprovados, sendo um deles para clínica de pequenos animais e o outro a clínica de grandes animais.
Como é que tem sido a experiência nesse espaço completamente novo?
Marília Taumaturgo – Como o curso foi criado com um modelo diferenciado e muito estudado, para nós se torna simples porque, desde o começo, a gente vem trabalhando assim. Quem nos visita sempre pergunta "como é que vocês fazem?". Nós criamos uma matriz já com essa visão, então vamos trabalhando em etapas, até a estrutura está finalizada. Depois, é só continuar sempre em busca de melhorias, entendendo que o processo é contínuo e dinâmico.
São três os pilares que sustentam uma universidade: ensino, pesquisa, extensão. Como a pesquisa ganha notoriedade em um curso tão novo? Lembrando que a Unifor já possui excelência quando se fala de medicina veterinária. O primeiro clone de cabra transgênica da América Latina, por exemplo, foi fruto de trabalhos realizados aqui.
Marília Taumaturgo - Nós temos, hoje, professores pesquisadores que participaram do projeto das cabras transgênicas. No curso, a pesquisa está iniciando com as monitorias, iniciação científica e projetos de extensão. Temos alguns projetos em andamento, como exemplo o Núcleo de Biologia Experimental (NUBEX) que tem recebido muitos alunos do curso em projetos de pesquisa de nível nacional e internacional.
E como funciona o projeto das ilhas de alimentação? Quantas são, onde elas estão instaladas e como funcionam?
Marília Taumaturgo - A ilha não é uma criação nossa. O mundo inteiro está desenvolvendo essa prática que surgiu a partir da problemática que é o abandono dos animais. Saímos pesquisando em muitos lugares quais as soluções. Até hoje todo dia procuramos novidades que possam ser realizadas para minimizar essa questão e sua repercussão. Aqui em Fortaleza alguns lugares já têm as ilhas. Visitamos algumas, inclusive a Universidade Estadual do Ceará (UECE) na qual fomos muito bem recebidos e compartilhamos de problemas em comum relacionado a essa questão, são dificuldades vivenciadas em todos o país. Nossa equipe entendeu que não adianta fazer a ilha se não houver uma educação de toda a comunidade acadêmica. É um lugar só para os animais se alimentarem, não é um abrigo. Na ilha tem água e comida, porém, se eles tiverem oferta de comida em outros lugares, eles vão fazendo de cada lugar a sua casa então não funcionará. Não estamos falando em questão de saúde somente para os animais, temos que olhar para as pessoas. Os animais são maltratados porque tem gente que gosta e tem gente que não gosta. E os dois precisam ser respeitados. Então, se tivermos lugares confortáveis, com cada um ficando no seu espaço, e indo lá só quem realmente gosta deles, esses estarão mais seguros.
E os próprios alunos da Medicina Veterinária são responsáveis pelo cuidado com os animais? Como tem funcionado esse processo atualmente?
Marília Taumaturgo - Temos uma equipe de alunos que, todo dia pela manhã e tarde, colocam água e comida, mas também existem parceiros e pessoas que gostam dos animais e que frequentam o espaço. A ilha é de todos, a ilha é de quem gosta dos animais. Às vezes, vamos lá e notamos que alguém já colocou uma comida, alguém já trocou a água e é isso que a gente quer. Queremos um lugar agradável, seguro e saudável para os bichos e para as pessoas. É um lugar tranquilo, alguns vão conversar, outros fotografam os animais, enfim, ficamos felizes porque vemos que a cada dia mais pessoas frequentam o espaço e claro, compreendem os fatos.
E quais as dicas a senhora daria para combater os maus-tratos?
Marília Taumaturgo – Entendo o abandono como um ato covarde e cruel. As pessoas precisam ter mais responsabilidade na hora de adotar um animal, levar o animal para casa. Animal não é brinquedo, é preciso muito cuidado ao presentear alguém com um animal, pois as crianças crescem, as relações amorosas podem definhar, idosos se vão e o animal fica com quem? Existe uma linha de pensamento de algumas pessoas que tendem a transferir a responsabilidade para os espaços “escolhidos’ para abandono. O crime é daquele que abandona e sempre será ele o responsável pelos maus tratos aos animais abandonados. A universidade sofre isso como outras áreas livres da cidade, a exemplo o Parque do Cocó. É preciso chegar até as pessoas com campanhas educativas para que elas responsabilizem os verdadeiros culpados. As instituições buscam amenizar o sofrimento ao prepará-los para adoção consciente. Não tem como cuidar de todos.
E como os alunos do curso estão sendo envolvidos com projetos?
Marília Taumaturgo - Temos equipes desenvolvendo trabalhos de conscientização com alunos da escolinha Yolanda Queiroz sobre os cuidados com os animais. As crianças são estimuladas a desenhar, ler e conversar sobre as cinco liberdades dos animais. Ao final do semestre, eles visitaram o Centro de Convivência para conversarem com os usuários adultos sobre os cuidados com os animais e que o abandono é um crime. É um trabalho legal que fazemos, porque a educação começa na infância.
Levando em conta os altos índices de animais abandonados em Fortaleza, a senhora acredita que a criação de um hospital veterinário de caráter público é uma necessidade real? É uma ideia viável? É importante?
Marília Taumaturgo – É de grande importância para a saúde dos animais e saúde pública. As pessoas estão a cada dia com menos acesso às clínicas particulares por questões financeiras, mas sempre foi assim. A diferença é que antes o animal adoecia, morria e pronto. Hoje o animal é membro da família, então há envolvimento emocional com todos, crianças adoecem com a morte dos animais de estimação. Entendo que para manter um hospital gratuito o custo é elevado. Recebemos muitas ligações perguntando sobre o início dos atendimentos pois muitos acreditam ser gratuito, o que não será. A unidade mais próxima do gratuito que nós temos no nosso estado é a Universidade Estadual do Ceará que é pública e não é gratuita, por que há um custo muito alto para manter a unidade em funcionamento. É importante ressaltar que a medicina veterinária cresceu muito, e hoje tem o oftalmologista, o dermatologista, cardiologista ou seja, você tem várias áreas dentro da veterinária e os equipamentos são muito próximos com os equipamentos humanos contribuindo para o alto custo dos serviços.
Mas é necessário ter uma unidade assim aqui no Ceará? É um projeto necessário para que o poder público precise bancar isso?
Marília Taumaturgo - Eu acredito que é importante dar uma assistência aos animais principalmente oriundo de tutores com menor condição financeira. É importante compreender que se não houver essa assistência haverá aumento de animais abandonados nas ruas e o maior risco de zoonoses por falta de controle sanitário dos animais.
Professora, como tem sido a receptividade do mercado com o curso?
Marília Taumaturgo - Temos uma receptividade muito boa no mercado. Estou certa que isso é fruto de um trabalho que foi construído com muito carinho e com muita dedicação de uma equipe de profissionais médicos veterinários e da área pedagógica com um grande suporte da universidade. O nosso curso tem um modelo interessante e totalmente diferente dos demais. Trabalhamos com turmas pequenas, estudo com problematização e oportunidade diária de desenvolver as competências humanísticas durante toda a graduação visando que nosso médico veterinário em formação seja um profissional completo, ou seja, tenha o conhecimento técnico e simultaneamente tenha atitude, liderança, capacidade de trabalhar em equipe e diversas competências necessárias ao profissional do século XXI. Fomos convidados a apresentar nossa matriz em São Paulo em um simpósio para comissões de ensino de Medicina Veterinária de todo o país. Voltamos muito felizes com os comentários e o interesse dos colegas de vários estados em conhecer nossa instituição. Estou certa que estamos formando profissionais com capacidade de destaque profissional em qualquer lugar do país. Aproveitando as oportunidades que o curso da Universidade de Fortaleza oferece esse profissional vai ser destaque no mercado de trabalho.