seg, 7 julho 2025 15:12
Piada tem limite? Entenda o debate entre humor, liberdade de expressão e preconceito
Especialistas analisam a condenação do humorista Léo Lins e explicam como o humor pode ultrapassar os limites legais e violar direitos fundamentais como a dignidade humana

Em junho, o humorista Léo Lins, 42 anos, foi condenado em primeira instância a 8 anos e 3 meses de prisão e ao pagamento de R$303,6 mil por danos morais coletivos depois que o Ministério Público Federal considerou que piadas feitas em seu show “Perturbador” configuravam discurso de ódio contra diversos grupos vulneráveis, entre eles pessoas com deficiência (PcD) e a cantora Preta Gil.
O especial, retirado do YouTube pela Justiça em 2023, marcou um ponto de inflexão na trajetória do comediante, que, desde 2005, havia consolidado uma carreira solo iniciada com o stand‑up “Surreal” (2009). Uma das características mais marcantes do estilo de Léo Lins é o chamado “humor politicamente incorreto”.
A condenação causou burburinho na internet brasileira, dividindo o posicionamento de personalidades famosas e da sociedade civil. De um lado, alguns falaram contra a decisão jurídica e apoiaram a liberdade de expressão do comediante. De outro, uma parcela de pessoas levantou a discussão sobre os limites do humor e a normalização de preconceitos.
Mas, afinal, piada tem limite?
O pesquisador e professor do curso de Direito da Universidade de Fortaleza — instituição da Fundação Edson Queiroz —, Eduardo Régis Girão, frisa que a discussão vai além de um embate entre “politicamente correto” e “censura”, envolvendo princípios constitucionais fundamentais.
“A liberdade de expressão é, sim, uma liberdade preferencial no nosso ordenamento, mas não é absoluta”, pontua Girão. “Ela encontra limites quando fere a dignidade da pessoa humana, outro princípio igualmente basilar da Constituição”, destaca o assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).
Segundo o docente, a Constituição Federal de 1988 garante, nos incisos IV e IX do artigo 5º, a livre manifestação de pensamento e a liberdade artística. “Contudo, a própria Carta impõe responsabilidade pelos excessos: discursos que incitem ódio ou discriminação não encontram abrigo no texto constitucional”, afirma.
O jurista explica que a sentença contra Léo Lins ancorou‑se na Lei do Racismo e no Estatuto da Pessoa com Deficiência, que preveem penas mais severas para conteúdos discriminatórios difundidos em larga escala, como ocorre em plataformas digitais. Na visão do professor, o magistrado levou em conta “a reiteração e a diversidade das vítimas” ao fixar a pena.
O humorista Léo Lins recebeu pena de 8 anos de prisão e multa por declarações de cunho preconceituoso durante um dos seus shows de stand-up (Foto: Revista Cenarium)
Para Eduardo Girão, que é doutor em Direito Constitucional, a distinção entre humor ofensivo e discurso de ódio depende do contexto e do alvo das piadas:
- Protegido: sátira a figuras públicas ou instituições poderosas, sem incitamento à violência.
- Não protegido: ataques reiterados a grupos historicamente marginalizados, que reforcem estereótipos ou estimulem discriminação.
“O Supremo Tribunal Federal (STF) já disse que não existe humor blindado quando ele serve de plataforma para o ódio”, lembra o docente, citando precedentes como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4451, que aborda o humor eleitoral.
Girão destaca que a defesa de Léo Lins deve insistir no animus jocandi, a “intenção de brincar”, como excludente de dolo, enquanto o Ministério Público tende a reforçar o caráter reiterado e o impacto social das ofensas para sustentar a condenação. A decisão ainda cabe recurso ao Tribunal Regional Federal, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, em última instância, ao STF.
Humor que fere
No espetáculo, gravado em 2022 e que ultrapassou três milhões de visualizações, o humorista fez piadas consideradas ofensivas contra diversos grupos, incluindo pessoas negras, homossexuais, pessoas obesas, idosos, judeus, entre outros.
Além do campo jurídico, o caso também levanta discussões profundas no campo social e psicológico. Vinicius Pereira, estudante do 10º semestre do curso de Psicologia da Unifor e coordenador do Coletivo Negrada Educa, analisou o episódio sob a perspectiva do racismo estrutural e do impacto emocional de discursos travestidos de humor.
Para o futuro psicólogo, o humor pode tanto construir quanto destruir. No Brasil, diz, piadas racializadas ainda são tratadas com naturalidade, mesmo quando reproduzem violências históricas.
Muitos dos conteúdos utilizados por Léo Lins, como as falas sobre negros “já nascerem empregados na escravidão” ou sobre nordestinos “serem apenas 72% humanos”, não são críticas sociais, mas sim formas de desumanização transformadas em entretenimento. “Quando a plateia ri, o racismo vira um ritual coletivo de cumplicidade”, alerta Vinicius.
Baseando-se em autores como Adilson Moreira, Vinicius argumenta que o chamado racismo recreativo se utiliza do riso para reforçar estereótipos. Segundo ele, o palco vira uma plataforma de opressão quando piadas utilizam a inferiorização de minorias como artifício cômico. “Essas piadas não questionam o poder, elas o consolidam”, explicou.
Ao comentar sobre a condenação judicial de Léo Lins, Vinicius a classificou como um marco simbólico importante, embora ainda insuficiente para romper com a lógica de impunidade que prevalece em casos de discurso de ódio.
Ele ressalta que, apesar da sentença reconhecer a gravidade das ofensas, a maioria dos casos semelhantes não chega à responsabilização legal, especialmente quando os ofensores são artistas brancos, protegidos pelo discurso de “liberdade de expressão”.
“A comoção em defesa de Léo mostra como a liberdade de expressão ainda é um privilégio racial. Enquanto brancos podem ofender impunemente, pessoas negras são acusadas de vitimismo quando reagem” — Vinicius Pereira, aluno do curso de Psicologia e coordenador do Coletivo Negrada
Em suas falas, Vinicius também fez uma distinção clara entre o humor antirracista, que ridiculariza o opressor e desestabiliza hierarquias, e o humor discriminatório, que reforça o poder estabelecido ao ridicularizar os oprimidos. No caso de Léo Lins, ele menciona piadas que zombavam de surdos, indígenas e pessoas gordas como exemplos de humor que ultrapassa o limite legal e ético.
“O limite é a dignidade humana. Rir de grupos vulneráveis, zombar de tragédias como o Holocausto ou a escravidão, isso não é humor: é violência simbólica disfarçada de piada”, argumenta.
Vinicius defende que humoristas, produtores e o próprio público têm responsabilidades. Ele afirma que, diante de um cenário em que o riso pode tanto educar quanto legitimar agressões, é preciso ter consciência crítica. O humor, segundo ele, deve ser ferramenta de justiça, e não de humilhação.
“Personagens não pagam indenizações por danos morais. Pessoas reais, sim. E quando um artista lucra zombando da dor alheia, ele precisa ser responsabilizado”, afirma Vinicius (Foto: Getty Images)
O Coletivo Negrada Educa, do qual Vinicius faz parte, atua com oficinas de educação antirracista e grupos de estudo voltados à construção de uma sociedade mais justa. Ele explica que a luta é interseccional, pois os ataques de Léo Lins não se limitaram a uma única minoria: atingiram indígenas, negros, pessoas com deficiência, população LGBTQIAPN+, idosos e gordos — grupos que, segundo o aluno, são alvo da mesma lógica de exclusão.
“A piada que diz que um gordo com HIV pode emagrecer se ‘comer’ outro gay não é apenas ofensiva: é uma incitação à violência e à necropolítica desses corpos considerados indesejáveis”, afirma Vinicius.
Por fim, o estudante defende políticas públicas e mudanças culturais profundas para enfrentar o problema, desde a inclusão da educação antidiscriminatória nas escolas até a regulação mais firme das plataformas digitais.
“O humor que queremos é o que desmonta armadilhas, não o que as alimenta”, finaliza, citando Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar. Nós combinamos de não morrer”.
Limites do humor
Para o psicólogo e pesquisador do humor Márcio Acselrad, docente do curso de Psicologia e coordenador da Liga de Palhaçoterapia e Humanização (Projeto Nariz) da Unifor, o humor deve ser entendido como arte e, como tal, precisa estar livre para provocar até mesmo desconfortos.
“Humor, para mim, nada mais é do que a capacidade de fazer o outro rir, de alguma maneira. Esse é o objetivo de quem produz qualquer tipo de humor” — Marcio Acselrad, docente do curso de Psicologia e coordenador da Liga de Palhaçoterapia e Humanização da Unifor
O docente, que é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que não existe consenso sobre o que pode ser considerado ofensivo ou engraçado. “A piada que fere um, pode fazer outro rir. Isso é extremamente subjetivo”, afirma. Para ele, a reação do público muitas vezes diz mais sobre seus próprios valores do que sobre a piada em si.
Acselrad reforça que o humor historicamente se estabeleceu como um espaço de transgressão e catarse, especialmente quando se vale de elementos exagerados, grotescos ou absurdos. Ainda assim, reconhece que o riso pode ser veículo de preconceito, como nas caricaturas nazistas que comparavam judeus a ratos — um exemplo de humor com intenções claramente discriminatórias.
A diferença, segundo ele, está na intenção. “O discurso de ódio nasce para oprimir. O humor, em princípio, nasce para provocar o riso. Mesmo que fracasse nesse intento, a motivação inicial importa”, pondera. No caso de Léo Lins, o professor acredita que a condenação judicial abre um precedente perigoso: “A piada ruim, de mau gosto, infeliz, não pode ser criminalizada como se fosse um ato violento em si. Isso é abrir caminho para a censura”.
Ele argumenta ainda que o ambiente em que o humor é proferido influencia diretamente sua recepção. “O teatro é um espaço pactuado. Quem entra ali sabe que vai ouvir provocações. Já nas redes sociais, esse pacto não existe. A mensagem se espalha fora de contexto e sem filtros, o que amplia seu impacto e gera reações mais intensas”, pondera.
Diversos profissionais e personalidades famosas acreditam que a condenação ao humorista Léo Lins é uma ação contra a liberdade de expressão artística (Foto: Getty Images)
Já sobre o uso de minorias como alvo de piadas, o professor é enfático ao dizer que o humor pode, sim, reforçar estereótipos, mas também pode ser uma ferramenta poderosa de crítica social, dependendo da forma como é feito e da maturidade do público. “Um público não educado vai confundir crítica com validação. Mas, em essência, o humor tem esse potencial de mexer com os preconceitos e provocar reflexão”, afirma Márcio.
Ele cita o exemplo da palhaçoterapia, projeto do qual é coordenador, como uma vertente do humor que assume o ridículo como potência humana, sem jamais usar o outro como alvo. “O palhaço é quem leva a torta na cara. Ele se coloca no lugar do ridículo para acolher, nunca para humilhar”.
Quanto à condenação de Léo Lins, Márcio diz não concordar. Para ele, prender alguém por conta de piadas configura uma escalada preocupante na restrição à liberdade artística. “As pessoas estão sendo canceladas e agora presas por dizerem coisas que incomodam. Não é mais uma questão de qualidade da piada. É sobre criminalizar o incômodo”, critica.
No entanto, o professor reconhece que há uma linha tênue entre liberdade de expressão e discurso de ódio. “Cada um interpreta de forma diferente. A minha interpretação é que o Léo está tentando fazer graça, não promover ódio. Mas entendo que outras leituras sejam possíveis, especialmente por quem já foi ferido tantas vezes por esse tipo de discurso”, conclui.
Um debate que não acabou
O caso Léo Lins revela que o humor, muito além do riso, é um campo em disputa. Enquanto especialistas da área jurídica alertam para os limites constitucionais da liberdade de expressão, vozes como a de Vinícius denunciam o uso do humor como arma simbólica de opressão. Já pensadores como Márcio pedem cautela diante do risco de censura e da criminalização do pensamento.
Para o jurista Eduardo Régis Girão, a discussão não se encerra nos tribunais: ela deve começar na universidade. Ele afirma, por exemplo, que o curso de Direito da Unifor prepara os futuros juristas para lidar com “humor ofensivo” e liberdade de expressão na era digital.
“Nosso curso articula teoria e prática: decisões de grande repercussão são debatidas em salas de aula sob múltiplas óticas, constitucional, civil, penal e digital. Além disso, promovemos anualmente eventos científicos, nacionais e internacionais, que aprofundam temas como a tensão entre liberdade de expressão e discurso de ódio e a responsabilidade civil das plataformas digitais” — Eduardo Régis Girão, docente do curso de Direito e da Pós-Unifor
Ao levar esses debates para o ambiente acadêmico, a Universidade de Fortaleza busca formar profissionais capazes de equilibrar direitos fundamentais concorrentes e de compreender o novo ecossistema de comunicação, onde uma piada pode viralizar em segundos e gerar consequências jurídicas globais.
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