seg, 17 fevereiro 2025 08:06
Uma rede de apoio em resposta à violência urbana
Na Universidade de Fortaleza, um núcleo potente une alunos, professores e instituições para ajudar vítimas de violência urbana a acessar direitos e reconstruir suas vidas por meio de uma assistência interdisciplinar e humanizada

Fernanda (nome fictício) morou a vida toda no mesmo bairro da zona oeste de Fortaleza. Foi lá que conseguiu comprar a casa própria e instalar o comércio de onde tirava recursos para criar os filhos. Durante longos anos, ela viu o bairro crescer e a violência urbana se tornar um problema cada vez mais complexo. Mas não imaginava que isso pudesse lhe tirar tudo.
Era novembro de 2023, quando integrantes ligados a grupos criminosos lhe expulsaram de casa. Fernanda, o marido e a filha deixaram a residência onde viviam, o comércio e toda uma vida para trás em meio a um conflito de facções que cobrava a filiação de um dos filhos dela.
“Eu paguei o preço. Só vim mesmo com as minhas roupas”, diz Fernanda, aos 47 anos. “Tudo o que eu construí ao longo da minha vida, eles tomaram. Trabalhava de domingo a domingo achando que ia ter uma velhice tranquila e hoje estou morando de aluguel”, lamenta.
Fernanda procurou a polícia e juntou documentos em busca de alguma ajuda social para tentar refazer a vida. Seis meses depois, o filho e a nora foram mortos, e ela passou a cuidar também dos netos, em um apartamento distante do local que sempre chamou de lar.
Desde então, ela tenta reconstruir a vida de toda a família enquanto luta para tentar reaver sua casa na Justiça. A força e o apoio para isso ela tem encontrado no Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV), um equipamento que dá suporte interdisciplinar à população na Universidade de Fortaleza, vinculada à Fundação Edson Queiroz.
“Chegando lá, eu fui muito bem atendida”, conta Fernanda. Ela diz que recebeu ajuda psicológica, além de toda a informação necessária sobre o que é possível fazer juridicamente para tentar reaver sua casa. Também conseguiu um apoio emergencial do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e encontrou na Universidade um refúgio, um lugar onde pode se sentir protegida e amparada diante do trauma que ainda a acompanha.
“Agora a gente sabe para onde ir, onde tem ajuda. O NAVV me ajudou muito. Fui muito bem atendida e ainda estão me atendendo até hoje. O que eu preciso resolver, eu peço orientações dos advogados da Unifor”, declara.
Ambiente de escuta e busca por direitos
Ciente do impacto da violência urbana para a saúde mental e mesmo a segurança da sociedade em diferentes perspectivas, a Unifor criou o Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana. Desde maio de 2023, o equipamento presta uma série de atendimentos gratuitos à população vítima de violência territorial armada. Cotidianamente, chegam pessoas desalojadas por ações do crime organizado, afetadas por tentativas de homicídio e de feminicídio ou mesmo vítimas de violência institucional.
“O Núcleo é um ambiente de escuta, de acolhimento, de busca pela efetivação de direitos e de promoção da saúde mental”, explica a coordenadora do curso de Direito da Unifor e do NAVV, Juliana Mamede.
Trata-se de um espaço de acolhimento das pessoas vítimas da violência territorial armada e seus múltiplos desdobramentos por uma equipe multidisciplinar, que compreende a participação de professores e alunos do curso de Direito, psicólogos, assistente social e analistas jurídicos. “Identificamos as vulnerabilidades e as demandas dessas pessoas e damos os devidos encaminhamentos, em conjunto com toda a rede de apoio”, afirma Juliana.
Além da rede de apoio interna na Universidade — que conta com o envolvimento do NAVV e de diferentes cursos de graduação e equipamentos —, há uma parceria forte com órgãos públicos judiciais e entidades da sociedade civil. Todos atuam juntos para garantir amparo e apoio às vítimas de violência na busca por justiça e dignidade.
Juliana destaca que ter um equipamento como o NAVV na Unifor é de “extrema relevância”, uma vez que não apenas oportuniza aos discentes uma nova perspectiva de compreensão da realidade, a partir de narrativas tão complexas e multifacetadas, como também impacta no enfrentamento de problemas sociais.
“É com um olhar acurado, empático e científico que alternativas judiciais e extrajudiciais são perseguidas, que soluções são pensadas e efetivadas [por meio do NAVV]. É um trabalho de impacto acadêmico e socialmente relevante” — Juliana Mamede, coordenadora do curso de Direito da Unifor e do NAVV
Uma luta por dignidade
Além de ser um ambiente de acolhimento, o Núcleo é um canal especializado de atendimento e orientação às vítimas de violência armada. Lá, as pessoas acessam orientações jurídicas, obtêm ajuda para judicializar algumas demandas e encontram meios para o cuidado com a saúde mental e mesmo outros serviços de saúde.
Encontrar esse porto seguro foi crucial para Marta (nome fictício). Ela chegou ao NAVV dois anos depois de ser expulsa de sua casa pelo crime organizado. Teve poucos minutos para pegar as duas filhas e o neto com Transtorno do Espectro Autista (TEA) antes de deixar a própria casa.
Saiu apenas com a roupa do corpo e durante muito tempo não teve coragem de voltar para tentar resgatar suas coisas e a mercadoria de confecção com a qual trabalhava. “Não tenho dinheiro nem para comprar a tinta do cabelo”, disse em um dos atendimentos, enquanto exibia algumas mechas brancas.
Marta tinha acabado de reformar sua casa, quando foi expulsa. “Tive que recomeçar tudo de novo”, conta. A filha fez um bingo para que a mãe fosse recomprando itens básicos de um novo lar, como geladeira e armários. A vida, porém, nunca mais foi a mesma. “Eu vivo com medo”, diz.
Com apoio do NAVV, Marta obteve atendimento psicológico, estético e odontológico nas clínicas da Unifor. Vaidosa, foi conseguindo recuperar a sua autoestima e recobrar as forças para lutar.
“Sou uma idosa desempregada e pagando aluguel. Perdi tudo que passei uma vida toda para construir. Graças a Deus estou sendo acolhida pelo NAVV. Eles sentem a dor da gente”, conta.
Marta busca uma indenização na Justiça e tem avançado graças aos esforços do NAVV. Em abril do ano passado, foi ajuizada uma ação de reparação social com reparação de danos, julgada procedente em parte no último mês de janeiro. “Só quero conseguir minha dignidade de volta e poder terminar meus anos de vida com alguma felicidade”, diz Marta.
Uma rede forte para indicar caminhos
O sentimento de amparo e segurança relatado pelas pessoas assistidas é fruto de um trabalho realizado a partir de uma rede robusta e integrada, que envolve desde órgãos da justiça a entidades da sociedade civil. Atualmente, o NAVV mantém parcerias mais consistentes com o Ministério Público, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
“Todo esse trabalho em rede é fundamental para que possamos dispensar uma assistência integral e gratuita às pessoas que buscam o nosso auxílio”, ressalta Juliana Mamede.
Ela diz que a tutela de direitos e a saúde mental são pautas prioritárias. Além disso, cada atendimento é dotado de inúmeras variáveis, com soluções customizadas individualmente. “Assim, a rede é acionada e os caminhos a serem percorridos são delineados a depender da situação concreta", explica.
Chefe do escritório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Fortaleza, Mario Guttilla conta que logo que soube da criação do NAVV entendeu que aquele seria um núcleo muito importante de apoio e atendimento às vítimas da violência na capital cearense. “É uma peça-chave para as respostas às pessoas afetadas pela violência armada, impactadas por essa violência”, afirma.
Mario lembra que a violência armada é um fenômeno complexo, que precisa de múltiplas respostas a partir de uma rede multidisciplinar coordenada. Foi com esse entendimento que o CICV passou a integrar essa rede, respondendo algumas necessidades específicas a partir de seus próprios critérios de atuação. Por meio desse diálogo, é possível conseguir ajuda para os assistidos, em caráter emergencial.
“O que o CICV coloca como pontos principais é, primeiro, dar uma atenção às pessoas afetadas, [...] e depois que haja uma articulação, uma rede onde se possa coordenar essa resposta com um fluxo claro entre atores do Estado, da organização civil, dos órgãos e das instituições”, afirma.
“O NAVV entendeu imediatamente a necessidade de ter pessoas de diferentes disciplinas para poder dar uma resposta multidisciplinar e mais adequada [às vítimas de violência urbana]. É uma peça fundamental dessa resposta. (...) Não tinha ainda visto uma resposta assim de uma universidade, que acho muito pertinente, uma boa prática que pode ser levada a outros estados do Brasil” — Mario Guttilla, chefe do escritório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Fortaleza
O Ministério Público do Ceará (MPCE) é outra instituição atuante nesta rede, em parceria com o NAVV. A procuradora Joseana França Pinto, que coordena o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência do MPCE, explica que se debruça diariamente em uma alta demanda. O órgão faz um primeiro trabalho de escuta, identifica as necessidades e encaminha casos a parceiros como o NAVV, na Unifor.
“Essa parceria acontece através das demandas jurídicas, sociais e psicológicas”, informa. Joseana relata que muitas vezes as vítimas chegam em busca apenas da responsabilização e de um processo contra o agressor, mas é feito um atendimento para observar outras necessidades, como o acesso a programas sociais e a regularização de documentos e de guarda de crianças.
“O NAVV tem feito um trabalho belíssimo com o pedido de aluguel social [especialmente para pessoas deslocadas pela violência urbana], com as ações de reparação. Hoje eu digo que a nossa parceria com o NAVV tem dado todo um sentido para o nosso trabalho” — Joseana França Pinto, procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará
Para Joseana, a parceria com a Universidade humaniza a comunidade acadêmica e o estudante, que recebe uma demanda de uma população que precisa encontrar meios de acessar seus direitos. “O estudante entende que responsabilizar é importante, mas que cuidar dessa vítima, ouvir essa vítima, também tem uma importância muito grande”, acrescenta.
Cuidar e construir esperança
A rede de parcerias também inclui o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Daniela Rocha, juíza supervisora do Centro Especializado de Apoio a Vítimas de Fortaleza (Ceav) do TJCE, conta que esse trabalho acontece em dois eixos de atuação.
O primeiro inclui o atendimento no plantão psicológico do NAVV e encaminhamentos de demandas jurídicas e de assistência social dos assistidos acolhidos inicialmente pelo Ceav. O segundo eixo é o acompanhamento de vítimas diretas ou indiretas que compareçam aos júris que são realizados no Escritório de Práticas Jurídicas (EPJ) da Unifor, onde o NAVV está instalado.
Daniela diz ver o NAVV como um equipamento que veio para ficar por sua natureza capilar. Isso porque contempla a formação jurídica dos alunos, que cumprem carga horária no EPJ da Universidade, e especialmente a formação humana desse corpo discente, que tem na atuação do NAVV a possibilidade de conhecer de perto a realidade das comunidades e pessoas atingidas pela violência armada e urbana, assim como suas necessidades.
“A firme e eficiente atuação no acolhimento de vítimas de violência tem contribuído para uma visão que ultrapassa a responsabilização criminal do ofensor, fortalecendo a ideia de protagonismo das pessoas atingidas por essa violência endêmica” — Daniela Rocha, juíza supervisora do Centro Especializado de Apoio a Vítimas de Fortaleza (Ceav) do TJ-CE
O Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Ceará também tem sido um importante parceiro nas respostas aos deslocados urbanos, como são chamadas as pessoas que perderam suas casas pela atuação do crime organizado.
Segundo a defensora Elizabeth Chagas, titular do núcleo, essa parceria foi estabelecida através de um “fluxo piloto” pensado para somar forças e dinamizar a ajuda às famílias em situação de extrema vulnerabilidade, como as expulsas de seus lares por facções.
“A questão das expulsões por facções ou deslocamento urbanos por violência são problemas complexos em que não há ‘fórmulas de bolo’, mas envolvem estratégias conjuntas, participação das comunidades, programas, projetos e muitas parcerias. E a parceria com o NAVV é extremamente importante para dinamizar as providências que precisam ser urgentes”, aponta.
A Defensoria Pública seleciona casos e envia ao NAVV para apoio no desenvolvimento de ofícios e petições pelos alunos. Por meio de um sistema, as correções são feitas e, após isso, os documentos são protocolados.
Para Elizabeth, esta colaboração abre oportunidades para que os alunos da Unifor conheçam a realidade para além do que está nos livros e desenvolvam soluções para casos concretos. “Também aumenta as opções de encaminhamentos sociais que a Universidade tem à disposição e fortalece as parcerias em prol de quem mais precisa”, destaca.
“Trata-se de exercer o verbo ‘esperançar’ buscando soluções efetivas para a questão que mais aflige a sociedade, que é a atuação das facções nas moradias e no direito de ir e vir da população” — Elizabeth Chagas, defensora titular do Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública
Construção de conhecimento e empatia na graduação
A estudante de Direito Maria Patrícia Viana de Oliveira estagiou no NAVV. Lá, atendeu vítimas da violência urbana em um ambiente que exige empatia e resiliência para lidar com realidades difíceis.
“Minha experiência no início foi bem desafiadora e me impactou emocionalmente porque é muito diferente olhar para esses casos sem ser através das lentes das mídias e lidar com o que essas pessoas passam”, conta. Ela acredita que a violência, seja ela qual for, está ligada a fatores complexos, incluindo a ausência de políticas públicas eficazes, e, portanto, não pode ser combatida de forma isolada.
No NAVV, ela compartilha que aprendeu a fazer um acolhimento personalizado e respeitoso às pessoas atingidas pela violência e que têm sua qualidade de vida afetada. “Tem impactos profundos e muitas vezes duradouros. Seus direitos não são respeitados e há uma grande luta contra a impunidade”, afirma.
O projeto proporciona aos alunos a condição de perceber o outro, de conhecer a “inclusiva” e destrutiva dinâmica do crime, além de se debruçar sobre um determinado fato, as suas circunstâncias e o seu contexto, afirma a coordenadora do curso de Direito, Juliana Mamede.
Diante de narrativas muitas vezes nebulosa e entrecortadas pelos choros das pessoas que buscam assistência, o corpo discente organiza ideias, busca soluções e argumentos a fim de viabilizar a concretização de direitos constitucionalmente consagrados e de resgatar, mesmo que minimamente, a dignidade das pessoas atormentadas pela violência urbana.
Segundo Patrícia, um projeto como este é fundamental para garantir acesso à justiça, mas também impulsiona e encoraja os estudantes a acreditarem que podem fazer parte da mudança na vida de alguém.
“O Núcleo pode transformar essa violência sofrida em oportunidade e construção. É um trabalho para a paz e o comprometimento com a mudança social” — Maria Patrícia Viana de Oliveira, concludente do curso de Direito
Uma iniciativa singular
“O NAVV é uma iniciativa singular”, resume Juliana Mamede. A docente mergulhou nos estudos sobre violência urbana a partir da experiência dolorosa da perda de um colaborador da Universidade, num momento em que a comunidade acadêmica transformou a dor em ação para dar respostas sociais contra a violência. Por isso, abraçou o projeto como causa, vendo hoje a iniciativa como um “presente”.
“É a nossa Universidade, o nosso curso de Direito, na vanguarda, dizendo para a sociedade que vamos seguir firmes em nosso propósito de atendê-la, de atuarmos enquanto instância de formação, cuidado e promoção de direitos”, salienta.
Historicamente, a Unifor tem um compromisso com as causas sociais, com a formação e a preparação do corpo discente para atuar com segurança e desenvoltura no mercado. Além do NAVV, o Escritório de Práticas Jurídicas (EPJ) desempenha um papel importante ao apoiar a população no acesso à Justiça. Mas como é a atuação de cada um desses projetos?
No NAVV, são atendidas apenas as pessoas que são vítimas da violência territorial armada. Já no EPJ, a atuação é mais ampla, possuindo como requisito a hipossuficiência da pessoa a ser beneficiada com os serviços e que a demanda esteja nos limites de competência da justiça estadual e da Defensoria Pública.
“Tais estruturas permitem ao aluno formar um arcabouço teórico e significá-lo, permitem o desenvolvimento de habilidades caras à atuação no mercado profissional”, considera a coordenadora.
Juliana argumenta que a produção de conhecimento a partir dessas estruturas é muito rica, além de contribuir para os processos de efetivação de direitos e inclusão social. “Não há sentido em produzir conhecimento se esse não for empregado em prol de melhorias para a sociedade”, finaliza.
Serviço
Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV) da Unifor
Local: Escritório de Práticas Jurídicas, bloco Z (Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz, Fortaleza-CE)
Funcionamento: segunda a sexta-feira | 8h às 12h | 13h às 17h
Agendamentos: navv@unifor.br
Informações: (85) 3477-3406