Entrevista Nota 10: Regina Teixeira de Barros e a regência da arte

seg, 8 abril 2019 14:01

Entrevista Nota 10: Regina Teixeira de Barros e a regência da arte

Regina Teixeira de Barros (Foto: Ares Soares)
Regina Teixeira de Barros (Foto: Ares Soares)

Fazer curadoria em arte é como reger uma orquestra. Eis a imagem que a curadora Regina Teixeira de Barros mobiliza para flexionar o pensamento em torno de um trabalho quase arqueológico de descobrimento e releitura de obras de arte, propondo um diálogo muitas vezes imprevisto entre elas, a partir do cruzamento de diferentes contextos históricos. 

Curadora da exposição Arte Moderna na Coleção da Fundação Edson Queiroz, em cartaz no Espaço Cultural da Unifor até o dia 11 de agosto de 2019, Regina tem graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), Mestrado em História da Arte e atualmente cursa o Doutorado, também em História da Arte, na mesma instituição. Por 15 anos, esteve à frente da curadoria da Pinacoteca de São Paulo, já participou de importantes edições da Bienal de São Paulo e começou a se especializar em curadoria quando esse termo ainda nem existia de fato e de direito no Brasil. 

Hoje, como curadora independente, diz que não sabe conceber e montar uma exposição sem olhar criticamente para o que foi feito antes, ou seja, para a história passada que a faz transver o presente. Em entrevista, ela exalta a profissão e estimula o ensino da história da arte no Brasil, a partir de acervos como o da Fundação Edson Queiroz.

Entrevista

Como você definiria curadoria hoje?

Regina Teixeira de Barros - Eu acho que tem duas grandes vertentes. A primeira é o curador de coleção que é, por exemplo, um curador fixo de uma instituição como a Pinacoteca, onde eu fiquei 15 anos. Então você tem que cuidar, pensar aquela coleção, como extrair para o público possibilidades de narrativas. Porque cada exposição é uma história que você conta através das obras. Então eu acho que quando você é curador de uma instituição, você está amarrado, no bom e no mal sentido, com uma coleção específica. Então, sempre que eu pensava uma exposição, eu tinha que pensar a partir da coleção da Pinacoteca. Outro tipo de curadoria é a curadoria independente, onde você não está vinculado a uma instituição única. Mas na verdade eu digo que o curador independente é o curador mais dependente do mundo, porque ele depende de todo mundo. Ele depende dos empréstimos que você vai conseguir em uma instituição e em outra. Dos colecionadores também. Na verdade, acaba sendo um trabalho de regência de uma orquestra sinfônica, porque você é o centro de muitas atividades, iniciando por conceber a ideia Depois você precisa tornar essa ideia clara, através de obras. As obras é que vão dizer se a minha ideia é factível, pertinente ou não. São as obras que vão me guiar. 

Podemos exemplificar?

Regina Teixeira de Barros - Vou dar um exemplo: Anita Malfatti. Fez 100 anos da exposição de 1917 e me convidaram para fazer uma curadoria sobre ela. O que é que eu conhecia sobre Anita Malfatti? Aquilo que qualquer estudante de primeiro ano de História da Arte conhece, que é a exposição de 17. Foi um grande escândalo em São Paulo, ela tinha uma produção incrível e depois do Monteiro Lobato ela nunca mais foi a mesma. Era isso que eu sabia. Era isso que a história canônica da arte sempre frisou. Agora, cem anos depois, não dá para você achar que a história é a mesma. Ela não é a mesma, porque você tem um distanciamento que permite ver o que aconteceu para trás. 

Uma outra história possível...

Regina Teixeira de Barros - Uma outra história possível. E o que dá para perceber? Dá para perceber que o que chamamos de Modernismo teve vários momentos e tem um momento que é muito exaltado, que é esse momento inicial, a partir de 17 com a Anita, chegando aos anos 20 com Tarsila, Di, Segall. É um momento superexaltado. Os anos 30 e 40 são muito mais frágeis. Depois, os anos 50 é que aparecem como grande auge da história da arte no Brasil com a arte concreta. Aí vem neoconcretismo etc, etc. Então, primeiro eu tinha que conhecer a bibliografia. Ler tudo o que foi escrito sobre Anita Malfatti. Depois, olhar as obras. É algo fundamental para ver se as obras diziam aquilo que eu tinha lido. Portanto, o contato, a intimidade com a literatura, com a bibliografia e com as obras é que vão me dizer o que eu acho da Anita Malfatti. 

É desse cruzamento que você vai tirar a sua ideia original para o tempo de hoje.

Regina Teixeira de Barros - Exatamente. E digo: a gente sempre ouve falar que o modernismo brasileiro é defasado em relação ao modernismo europeu. Anita Malfatti estava em 1912, 1910, 11, 12, 13, na Alemanha, em Berlim, que era o centro onde estava surgindo naqueles anos, naquele lugar, o Expressionismo. Então ela tinha zero de defasagem. Ela estava ali junto com os artistas que vão surgir depois como o Kandinsky, o Clair, o Kirchner. Enfim, artistas alemães que vão ser grandes referências da arte moderna. Depois ela sai de lá na iminência da guerra. Volta para o Brasil, faz um pit stop rapidinho e vai para Nova Iorque. Lá – ela foi em 14 e ficou até 16 - em12 tinha tido o Armory Show, que é o equivalente à Semana de Arte Moderna norte-americana. Ela chega dois anos depois. Tem uma galeria importante, que movimenta artistas modernos, que é a de um fotógrafo chamado Stieglitz. Enfim, ela também está no lugar certo, na hora certa. Então Anita desmente essa narrativa que a gente tem uma defasagem. A defasagem são os outros artistas modernistas. Então Tarsila, Di, Vicente Monteiro, Ismael Nery, Brecheret. Todos esses grandes nomes, eles vão na década de 20 para a Europa atrás de uma renovação de linguagem mesmo. Em busca de linguagens modernas, acadêmicas e a Anita já tinha feito isso na década de 10. Em 20, quando ela vai para a Europa, vai olhar o quê? O que os contemporâneos dela estão fazendo. Aqueles artistas que ela conheceu na década de 10. Numa guerra, o que era vanguarda se dissipa. E os artistas vão caminhar muito mais em direção do que a gente chama de retorno à ordem, que é olhar para a tradição, não para se contrapor a ela, dialogando com a tradição. Então tem aí um acomodamento das linguagens modernas e é o que a Anita faz nos anos 20, mas não é bem entendida pelos contemporâneos dela no Brasil, que vão pensar Anita um retrocesso, um passo atrás. E computam ao Monteiro Lobato uma violência que teria atingido Anita, quando, na verdade, na exposição de 17, Anita tem obras que são expressionistas, muito fortes, mas também obras desse retorno à ordem. Então é pensar esse retorno à ordem, que de repente é uma pintura menos impactante, como parte desse projeto da arte moderna mais amplo. 

Então, Anita foi mal compreendida em sua própria época...

Regina Teixeira de Barros - Do meu ponto de vista, Anita sempre foi uma mulher muito atualizada. Ela sempre esteve muito atenta ao que acontecia ao redor dela. Ela virou um mito, como uma mártir do Modernismo, porque ela era uma mulher da classe média... não era como a Tarsila, que era da elite e que tinha tudo aos seus pés. A Anita sempre trabalhou, ela tinha um problema na mão direita. Era uma mulher mais tímida, não era uma mulher exuberante. Mas isso não fazia dela uma coitadinha. Ela era uma mulher que falava inglês, alemão, francês, italiano, viajou pela Itália, pela Alemanha, ficou em Paris seis anos, foi para Nova Iorque. Quer dizer, era uma mulher extremamente independente, mas tímida, trabalhadora, batalhadora, que não se impôs enquanto personalidade, mas era uma grande pintora. Acho que hoje a gente tem obrigação de olhar para trás e fazer a revisão crítica.

Então também é um papel da curadoria recontar a história né? Ou lançar luzes do que ficou ofuscado naquele momento histórico. 

Regina Teixeira de Barros - É o que eu acho. Você pode dizer assim: mas isso é uma forçação de barra. Não é uma forçação de barra. O que te instrumentaliza para falar nisso são as leituras e as obras, ou seja, é estudar. Não tem por onde fugir. As obras me falam. Os desenhos que ela fez nos anos 20, 30 e 40 são cadernos e cadernos de pequenos desenhos, mas onde você vê traços bem delicados, diferente dos anos 10. Ela fazia exatamente o que ela queria fazer. Ela tinha domínio sobre as técnicas de pintura e um domínio da cor. Podia fazer uma aquarela super delicada e continuar e fazer uma tela de pinceladas e cores fortes. Era uma mulher de uma sofisticação impressionante. E depois, no fim da vida, fez uma série de trabalhos que os críticos condenam absolutamente, porque era quase como se fosse uma pintura popular, meio ingênua, mas não porque ela desaprendeu a pintar. É porque virou moda pintar à maneira do popular. Isso era uma onda, uma tendência, uma vertente também da arte moderna que também ficou varrida para baixo do tapete. Então era uma mulher era muito antenada com o seu tempo, uma mulher que organizou salões, foi júri de vários e estava presente nas exposições. Era uma mulher que continuou pintando e trabalhando, mas perdeu a figura de destaque. 

Então a curadoria tem também o desafio de contar outras possíveis histórias, histórias sem registro oficial, portanto, é um trabalho quase de arqueologia para, de escavar essa história não oficial.

Regina Teixeira de Barros - Depois o desafio também é passar isso para o público. Como é que você resolve isso na exposição? Aí também é uma questão. E aí é um trabalho de regência, porque você trabalha primeiro com as instituições que você tem que lidar, visitar, pedir obras emprestadas e daí parte para mobilizar uma rede, em que os marchands e os galeristas são peças fundamentais, porque eles que sabem onde estão essas obras. Então, o tempo todo você tem que ter o plano A, o plano B, o plano C e o plano D por causa desses empréstimos. Na verdade, as pessoas têm que ter boa vontade para emprestar. E não é todo mundo que nem aqui na Unifor que esse acervo está aí para ser compartilhado. Tem gente que senta em cima das obras e não empresta. Então tem que ter jogo de cintura para lidar com as pessoas, paciência, maturidade, porque tem dias que dá vontade de gritar, rodar a baiana, mas não adianta nada.. É um trabalho de convencer as pessoas, de colaborar. Depois sentar com o pessoal da produção para ver a viabilidade. Do financeiro para ver se é possível dentro do orçamento trazer as obras, o transporte, o seguro, tudo isso. E outro dado que é muito real é o espaço físico. Como vamos equipá-lo. Então a conversa com o arquiteto é muito importante. Como vamos criar um percurso? O percurso vai ser livre? Temos um desenho na exposição com começo, meio e fim? Nós vamos ter cores na exposição? Nós vamos querer sinalizar alguma coisa? Tudo isso são decisões que você não toma sozinho. Você pede sugestões para o arquiteto e o arquiteto ajuda a conceber, a pensar em como resolver espacialmente a exposição, mas quem decide é você. 

Então, se formos pensar em uma formação ideal para um curador quais as disciplinas essenciais?

Regina Teixeira de Barros - Vária. Produção, conservação de obras. Acho que tem saber lidar com os editais para exposições e é super importante saber montar um projeto. Tem que ter História da Arte, com certeza. Ter uma noção de arquitetura básica, de histórias das exposições também. Como é que se monta uma exposição? Sempre foi assim? Não. Como é que se montava? O que foi acontecendo? Como é que você ilumina uma exposição? Como é que você traz de fora uma obra? Toda essa parte de importação ou exportação temporária de obras exige burocracias. E tem o educativo. Como é que você trabalha com crianças, com adultos? 

E como é que você vê o ensino da arte hoje no Brasil? 

Regina Teixeira de Barros - Por um lado avançou muito, porque abriram vários cursos de pós-graduação em História da Arte, alguns inclusive de graduação em História da Arte, em produção de exposições, em gestão de museus, gestão em geral voltada para a área da cultura. Então eu acho que hoje existe um leque que há 30 anos não existia de opções para se entrar nessa área da cultura. Por outro lado, eu estou sempre querendo mais História da Arte na graduação. E cursos de curadoria, o que, no caso da Unifor, viria muito a calhar até porque ela tem acervo. 

Serviço

Exposição: Arte Moderna na Coleção da Fundação Edson Queiroz
Período expositivo: 22 de março a 11 de agosto de 2019
Horário de visitação: de terça a sexta: 9h às 19h – Sábados e domingos: 10h às 18h