Entrevista Nota 10: Isaac Pipano e o diálogo entre cinema, educação e tecnologia no Brasil

qua, 3 janeiro 2024 10:55

Entrevista Nota 10: Isaac Pipano e o diálogo entre cinema, educação e tecnologia no Brasil

Doutor e mestre em Comunicação, ele cita a importância da experiência audiovisual em todas as instâncias de ensino e pontua o impacto da tecnologia na produção cinematográfica atual


Isaac Pipano é professor do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Leo Lara/Universo Produção)
Isaac Pipano é professor do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Leo Lara/Universo Produção)

Já consolidado na indústria do entretenimento, o cinema vem, nas últimas décadas, alargando seus horizontes para encontrar morada nos corredores da educação. Assim, o audiovisual se torna, cada vez mais, instrumento fundamental no processo de ensino-aprendizagem, seja em salas de aula do ensino básico, fundamental ou superior.

As primeiras produções cinematográficas, na virada do século 19, já evidenciavam o cinema como uma poderosa ferramenta para instrução e reflexão humanas. Ele contribui para tornar o ensino libertador e revolucionário, destacando aspectos culturais, históricos e políticos. Entretanto, à medida que a sociedade evolve, surgem novos questionamentos acerca do que o cinema é e, principalmente, do que pode vir a ser. 

Isaac Pipano, professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, afirma ser necessário que os currículos das escolas considerem a experiência audiovisual. Seja no âmbito da química, física, matemática ou sociologia, é preciso incorporar essa forma de saber, já que o audiovisual produz, por meio de imagens e sons, um modo de pensar próprio.

"Talvez uma das maiores contribuições do campo do cinema e da educação tenha sido, justamente, a possibilidade de olhar para a história do cinema canônico, do cinema hegemônico, procurando dar novas respostas a essas construções de imagens e sons", pontua o também coordenador de Pesquisa e Inovação da Escola Porto Iracema das Artes. 

O docente é também autor da obra “Isso que não se vê: teorias para cinemas e educações”, que visa demonstrar, em três partes – Deslocamentos, Desvios e Pistas –, de que modo a vivência em processos formativos com o cinema tencionou determinados conceitos de modos de pensar e agir. 

Na Entrevista Nota 10 desta semana, o doutor e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) explica o regime de representação e como ele está presente na sociedade. Além disso, pontua o impacto da tecnologia na produção cinematográfica atual e cita a importância de se pensar em uma formação audiovisual transversal, descentralizada e territorializada.  

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Em sua obra, você defende que é preciso abandonar a perspectiva do cinema como regime de representação. Regime este que se estrutura na fundação de modelos para nos dirigirmos em termos de práticas que instauram processos de singularização e modos de composição. Por que se faz necessário esse movimento no cenário atual?

Isaac Pipano — Em primeiro lugar, é importante entendermos o que é o regime de representação. Mais do que uma imagem, o regime de representação é um modo de organizar não apenas o que é visível, mas as palavras, signos, símbolos, discursos, e tudo aquilo que se articula para fundar ideias que se tornam modelos com os quais as formas de representar dialogam.

A sociedade ocidental foi se estruturando, desde a Antiguidade e, posteriormente, a partir do pensamento judaico-cristão, como nos conta a filósofa Marie-José Mondzain, na fundação dos seguintes modelos: Deus, a mãe, a criança, o pai, etc. Os modelos, portanto, definem as condições para que imagens surjam e estas, por sua vez, estão sempre em função dos modelos que as inspiram. A questão central é que todas as imagens provenientes desses modelos, são, por assim dizer, decalcadas. São imagens que estão em um estado de “dívida” com o modelo fundador.

A partir disso, é possível perceber como o regime de representação se associa às atuais estruturas de opressão e exclusão social, como o racismo, a transfobia, a misoginia ou mesmo as atuais formas de expressão do fascismo. O regime de representação não é, portanto, algo que diz respeito ao campo das artes ou ao entretenimento, apenas. Sua expressão está intrinsecamente vinculada às formas de dominação e resistência no mundo contemporâneo. Em outras palavras, todas as questões têm uma natureza estético-política. 

Porém, me parece que, ao invés de criticarmos somente esse modelo, é necessário que se possa criar condições e produzir experiências de criação que dêem lugar a outras imagens, a novas formas de pensamento mesmo, e que nos auxiliem a compreender a vida enquanto uma entidade muito mais complexa. Desse modo, o regime de representação precisa ser não só intensamente criticado, mas superado por imagens que façam os modelos ruírem. Em outras palavras, não precisamos de modelos melhorados, precisamos que os modelos percam sua força na constituição de um imaginário que se imponha como referência universal.

Entrevista Nota 10 — No livro, você afirma que a vivência em processos formativos com o cinema tencionou determinados conceitos e modos de pensar-agir. Você acredita que o crescimento de formações na área de audiovisual contribuiu para essa necessidade de mudar a forma de fazer cinema?

Isaac Pipano — Uma das maiores contribuições do cinema e da educação audiovisual é a oportunidade de reexaminar a história do cinema, especialmente o cinema dominante, produzido nos Estados Unidos. Isso envolve questionar e responder de novas maneiras às construções de imagens e sons. 

Os esforços da educação audiovisual têm sido vitais para reconhecermos os limites entre a história convencional do cinema, em particular, e das imagens em movimentos, em geral, assim como os conceitos formulados por ela, e a prática do cinema no cotidiano. Isso inclui pensar a produção audiovisual em outros suportes, formatos e contextos, como os filmes realizados em escolas, comunidades indígenas, quilombos, grupos ligados a ativismos políticos, entre outros.

Essas experiências nos forçam a reconsiderar certas categorias e teorias, especialmente aquelas influenciadas pela tradição cinematográfica anglo-saxã, que muitas vezes não refletem nossos modos de ser, pensar e fazer no Brasil. Esses trabalhos nos incentivam a revisitar a história do cinema e a desenvolver novos conceitos, teorias e métodos de ensino, mais ajustados às condições e contradições próprias à cinematografia brasileira.

Entrevista Nota 10 — Estamos vivendo na era dos streamings, que facilita o acesso às mais variadas produções audiovisuais do mundo todo. Como essa maior disseminação de conteúdo influencia no interesse por novas formas de fazer cinema e como isso tem se inserido na educação e formação em cinema?

Isaac Pipano — Acho que os streamings e a produção audiovisual contemporânea apresentam um paradoxo interessante. Por um lado, há um aumento exponencial na oferta de conteúdo, imensamente superior ao cenário dos anos 1990, com poucos canais de televisão abertos e opções segmentadas pagas para a audiência com maior poder aquisitivo. No entanto, no contexto brasileiro, a atual falta de regulamentação dessas plataformas resulta em uma predominância do conteúdo produzido principalmente por grandes produtoras dos Estados Unidos.

Há uma questão crucial aqui: as plataformas de streaming operam com lógicas algorítmicas, muitas vezes opacas, que determinam quais produtos ganham visibilidade. Isso cria uma situação onde, apesar da diversidade e riqueza da produção audiovisual brasileira em todos os estados, o que continua sendo ofertado à maioria do público é aquilo que vem dos Estados Unidos. Soma-se a isso as estratégias massivas de marketing e o impacto das redes sociais na circulação dos conteúdos e o que temos é um cenário homogêneo, onde poucos produtos ocupam a maioria das janelas e dispositivos.

A meu ver, a solução para esse paradoxo passa por uma ação legislativa que regulamente os serviços de streaming e dê contornos à ação das empresas estrangeiras no Brasil. Isso incluiria a criação de barreiras para o produtor estrangeiro e proteções para o conteúdo audiovisual brasileiro, bem como mecanismos para ampliar a visibilidade dessas produções. Além disso, devemos explorar o potencial dos streamings para criar um repertório cultural e audiovisual mais diversificado.

Um exemplo concreto recente é a criação da Rede Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas, uma plataforma que objetiva a criação de um espaço coletivo para fortalecer e visibilizar a produção audiovisual das mulheres indígenas no Brasil e América Latina. Apesar de ser uma iniciativa valiosa, ainda é pouco expressiva e conhecida comparada ao impacto de gigantes como Netflix e Amazon, ou mesmo os serviços brasileiros, como a Globo Play.

Portanto, as plataformas de streaming podem ser extremamente benéficas, desde que haja uma regulamentação efetiva que assegure a valorização e o destaque do produto audiovisual brasileiro, em contraste com as produções estrangeiras.

Entrevista Nota 10 — Smartphones cada vez mais modernos, o aumento de redes sociais voltadas para vídeos e a infinidade de aplicativos de edição permitem que muitas pessoas tenham acesso a equipamentos que são produtores de conteúdo audiovisual em potencial, inaugurando linguagens próprias e escalonando o número de conteúdos criados e disseminados. Em que medida essa realidade afeta o trabalho de quem faz cinema profissionalmente?

Isaac Pipano — Acredito que uma análise sobre o contexto contemporâneo da produção audiovisual demanda um olhar não só para o campo profissional, mas para a nossa sociedade de forma geral. 

O impacto negativo dessa produção desenfreada e na articulação com as redes sociais é, sobretudo, consequência de sermos demandados por empresas de tecnologia, as 'big techs', que têm construído uma nova lógica de atenção, na qual estamos constantemente vinculados aos nossos telefones. Então, a nossa atenção tem sido demandada cotidianamente e isso tem impactos na saúde mental da população.

Pesquisadores em todo o mundo apontam que vivemos em um contexto arriscado, onde a sociedade se tornou um laboratório para as empresas do Vale do Silício, como chama a atenção a pesquisadora Fernanda Bruno, do MediaLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O que isso quer dizer? As big techs desenvolvem tecnologias ainda em estágio de protótipo e as lançam diretamente ao público, muitas vezes gratuitamente, sem testes ou avaliações adequadas.  

Por outro lado, o audiovisual é uma poderosa ferramenta nas contendas políticas, componente central nos processos de inclusão e valorização cultural e instrumento importante para as políticas de preservação. Além disso, ele possibilita a construção de narrativas mais plurais, apontando perspectivas contracoloniais, como afirmava o intelectual e ativista quilombola Nêgo Bispo.

Entretanto, para uma contemplação plena dessas possibilidades, é necessário enfrentar o domínio das grandes empresas tecnológicas e esse debate é complexo pois, muitas vezes, toca o âmbito da “liberdade” individual. Não há dúvida de que desejamos uma rede livre, onde os indivíduos possam exprimir suas ideias e pontos de vista, mas desejamos igualmente que todos, pessoas e empresas, sejam responsabilizados pelos seus atos. 

Entrevista Nota 10 — Além de pesquisador, você atua como educador na área, integrando o corpo docente do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor desde 2020. Para você, qual a importância de formações na área?

Isaac Pipano — Como professor do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor e também pesquisador na área, sou um grande defensor da formação em audiovisual. Esta formação é crucial tanto para jovens que aspiram a uma carreira profissional na área quanto para o público em geral, pois o campo do audiovisual expandiu significativamente suas possibilidades de trabalho.

Essa formação deve ser abordada em duas dimensões principais. Primeiro, ela precisa ser transversal, integrando-se aos currículos escolares de todas as áreas. Isso significa que, independentemente do campo do conhecimento – seja a química, a física, a matemática ou a sociologia –, a experiência audiovisual deve ser valorizada e incorporada como uma forma de conhecimento, produzindo um modo de pensamento próprio através de imagens e sons. 

O segundo aspecto é a descentralização e territorialização dessas formações. É essencial que haja um aumento de escolas de cinema e audiovisual, como podemos ver no exemplo de Fortaleza, onde existem programas de formação desde o ensino superior até escolas básicas e cursos livres, que compreendem um ecossistema de formação audiovisual. A formação precisa se estender para além dos centros urbanos, alcançando áreas interiores e periféricas. Isso implica adaptar o ensino ao contexto local das pessoas, potencializando suas culturas e experiências, articulando seus saberes às práticas audiovisuais.

Então, a transversalização, descentralização e territorialização das experiências audiovisuais são elementos fundamentais para considerar a formação audiovisual contemporânea, além de essenciais para uma cultura e uma vida mais inclusiva e democrática.

Entrevista Nota 10 — Com as mudanças pelas quais a produção audiovisual vêm passando, você percebe também uma diferença no perfil do estudante de cinema de hoje em comparação a alguns anos atrás?

Isaac Pipano — Nos últimos dez ou vinte anos, o perfil do estudante mudou muito. Embora seja difícil generalizar devido à diversidade de suas origens, uma característica marcante é a maior exposição às telas, em comparação com as gerações anteriores. Esses estudantes crescem em um ambiente repleto de imagens e sons, interagindo por meio de telas e produzindo fotos e vídeos rotineiramente. Por outro lado, observamos que muitos enfrentam dificuldades na realização de pesquisas e no entendimento do uso dessas ferramentas para o seu desenvolvimento pessoal.

Neste contexto, a função da escola e da universidade é essencial para valorizar e potencializar o conhecimento e as experiências que os estudantes trazem consigo. A educação deve ir além da mera aquisição de conteúdos, focando no desenvolvimento de habilidades e competências. Nesse quadro, nós, educadoras e educadores, desempenhamos um papel de curadoria, ampliando os horizontes dos estudantes com repertórios e práticas, apresentando objetos e construindo experiências que possibilitam o debate, a reflexão e a criação.

No campo do cinema e do audiovisual, enfrentamos o desafio de lidar com esse corpo discente heterogêneo, que chega à universidade com desejos, expectativas e repertórios muito diferentes. É um ambiente de aprendizado dinâmico, que abrange desde entusiastas de anime japonês até aficionados por videoclipes, séries, games. Mas, independente da área, nosso objetivo central é colaborar para a formação de jovens e profissionais críticos, capazes de atuar de forma ética no campo, seja como realizadores, artistas, técnicos ou em qualquer outra função existente.