Entrevista Nota 10: Cláudio Meireles e o debate jurídico sobre o caso cannabis no Brasil

seg, 20 maio 2024 15:41

Entrevista Nota 10: Cláudio Meireles e o debate jurídico sobre o caso cannabis no Brasil

Mestre e doutor em Direito fala sobre o debate da maconha sob a ótica jurídica no país e no mundo, explicando as tensões entre STF e Senado e do que se trata o efeito backlash


Pesquisador de História do Direito e Direito Constitucional, Cláudio é professor do curso de Direito e da Pós-Graduação Lato Sensu na Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)
Pesquisador de História do Direito e Direito Constitucional, Cláudio é professor do curso de Direito e da Pós-Graduação Lato Sensu na Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)

Em meio a debates sociais acalorados por todo o mundo, a cannabis tem chamado cada vez mais a atenção não só da mídia, mas principalmente do campo jurídico no Brasil. Nesse contexto, o curso de Direito da Universidade de Fortaleza promoverá, às 19h do dia 21 de maio, a palestra “Tensões entre STF e Poder Legislativo: o caso cannabis e o efeito backlash”. A ocasião é aberta ao público e acontecerá no Auditório da Biblioteca Central da Unifor.

O evento vai analisar o julgamento de um recurso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que discute a possibilidade de não ser considerado crime o porte de maconha para consumo próprio, além de buscar definir a quantidade de porte da droga que dividiria um usuário de um traficante. O Senado, no entanto, responde ao STF com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 45/2023) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantia da substância.

Um dos palestrantes que discutirá o embate entre Senado e STF no caso da cannabis é o advogado Cláudio Meireles Jr, docente do curso de Direito e da Pós-Graduação lato sensu da Unifor. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ele é especialista em Direito Trabalhista pela Universidade Regional do Cariri (URCA) e pesquisador com ênfase em História do Direito e Direito Constitucional.

Egresso da Unifor, Cláudio fala à Entrevista Nota 10 desta semana sobre o debate da maconha sob a ótica jurídica no Brasil e no mundo, explicando as tensões entre STF e Senado, assim como o que se trata o efeito backlash.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Em meio ao debate social e jurídico sobre drogas, a cannabis é uma das substâncias que mais tem alcançado visibilidade midiática. Apesar da Lei das Drogas e da PEC mais recente que foi votada no Senado abrangerem qualquer tipo de ilícito, por que a maconha tem ganhado tanto destaque nessa discussão? 

Cláudio Meireles — Na realidade, há um debate mundial a respeito da política antidrogas e qual seria a metodologia mais eficaz para lidar com os numerosos e complexos problemas sociais relacionados ao tráfico e consumo de entorpecentes. Para fornecer alguns dados, remeto um relatório da ONU de 2022, segundo o qual um em cada 17 adultos teria usado algum tipo de droga em 2021. Há, então,  grande preocupação no que diz respeito às substâncias sintéticas e ao acelerado crescimento dos seus usuários, com graves consequências para a saúde das pessoas. 

Mais especificamente sobre a maconha, esse mesmo relatório constatou que continua sendo a droga mais consumida do mundo. Estima-se que aproximadamente 4,3% da população mundial entre 15 e 64 anos a tenham usado em 2021, o que corresponderia a cerca de 209 milhões de pessoas. Não por acaso, o uso dessa substância está sempre em meio a grande discussão.

É importante destacar que, em 2020, a própria ONU, por meio da sua Comissão de Narcóticos (Commission on Narcotic Drugs - CND), aprovou uma recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) que retirou a maconha da lista de narcóticos perigosos. Muito embora essa aprovação tenha se dado por uma margem estreita de votos (27 países votaram a favor e 25 votaram contra), é inegável que há uma visão que busca separar os debates sobre a regulação do uso da maconha daqueles que se concentram nas problemáticas trazidas por drogas consideradas pesadas.

A recomendação da OMS explica muito do porquê a cannabis tem ganhado tanto destaque nos últimos anos. O órgão de saúde fez ampla revisão de evidências científicas que demonstram as propriedades medicinais e terapêuticas da substância, razão pela qual não deveria ser categorizada no mesmo grupo de drogas como heroína e cocaína, que são particularmente suscetíveis a abusos, à produção de efeitos extremamente danosos e sem qualquer capacidade de produzir vantagens terapêuticas. 

Não é por acaso que os movimentos voltados a propostas de descriminalização e legalização da maconha têm ganhado corpo e maior legitimidade. Por exemplo, a Marcha da Maconha, que ocorre desde os anos 90 em países como Estados Unidos e Canadá, tem atraído cada vez mais adeptos. 

No Brasil, essa manifestação teve a sua primeira edição no início dos anos 2000. Em 2011, no julgamento da ADPF nº 187, o STF deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 287 do Código Penal, de forma a não impedir manifestações públicas em defesa da legalização de drogas. O entendimento foi de que os direitos fundamentais de reunião e de livre expressão do pensamento contemplam reivindicações por mudanças na legislação sobre drogas, sendo vedadas somente a apologia ou incitação ao crime.

Portanto, esse pode até parecer um debate que já estaria ultrapassado, mas a discussão está mais viva do que nunca. 

Entrevista Nota 10 — Qual a necessidade de trazer novamente o debate sobre cannabis à tona para a sociedade, especialmente aqui no Brasil? De que forma essa questão influencia no bem-estar social e no direito individual dos cidadãos?

Cláudio Meireles — Particularmente, considero que o debate em torno das regulamentações sobre a maconha ganha destaque no Brasil por dois fatores primordiais: 1- evidências científicas que apontam benefícios medicinais; 2- argumentos de cunho político, sociológico e de saúde em prol do uso recreativo.

Quanto ao uso medicinal, ainda em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu a respeito da autorização da importação direta do canabidiol para tratamento de criança com epilepsia refratária (REsp 1.657.075), em um caso que ganhou grande destaque no debate público à época. Naquele momento, uma série de evidências científicas sobre os benefícios do uso de produtos derivados da cannabis em tratamentos médicos ganhava cada vez mais repercussão na mídia brasileira, principalmente para casos nos quais os fármacos usualmente disponíveis no mercado não demonstravam resultados satisfatórios.

Nesse ponto, é muito importante distinguir o uso recreativo da maconha com a produção de fármacos a partir de seus derivados. Durante um certo período, considero que alguns grupos tentaram interditar, por questões mais ideológicas do que médicas, as reflexões e debate público sobre os benefícios medicinais da cannabis. Vejo como algo muito positivo que tenhamos avançado quanto a esse ponto e as informações de respaldo estejam melhor divulgadas perante a sociedade brasileira. 

Inclusive, em 2023, foi apresentado um estudo denominado Mapa de Evidências sobre a Efetividade da Cannabis Medicinal, em Congresso Médico da WeCann Academy realizado em Campinas, no qual foram apontadas evidências a respeito dos efeitos positivos da cannabis medicinal em cerca de 20 quadros de saúde.

No que diz respeito ao uso recreativo, há argumentos relacionados a um baixo (ou menor) potencial de danos à saúde comparativamente a outros entorpecentes, além de pretensos efeitos positivos na legalização, como redução da criminalidade e queda do consumo devido ao enfraquecimento do crime organizado e ao maior controle estatal. 

Especialmente quando se trata do consumo recreativo por meio do hábito de fumar, não se pode negar que existem sim riscos à saúde, atestados por evidências científicas. O mais claro seria a ocorrência de danos pulmonares, mas temos pesquisas que apontam também prejuízos à memória em razão do uso contínuo, agravamento de alguns transtornos psiquiátricos e até mesmo danos no desenvolvimento cerebral saudável. 

Ainda assim, considero haver nuances que merecem análise mais detida sobre o uso recreativo, que envolve reflexões a respeito da liberdade individual e qual esfera jurídica seria a mais adequada para regular o tema. Vou falar sobre isso nas próximas respostas.

Entrevista Nota 10 — Além do Uruguai (primeiro a legalizar a produção, venda e consumo de cannabis), diversos países debatem ou aprovam medidas sobre a maconha, seja ela de uso medicinal ou recreativo. Qual é a diferença entre descriminalizar e legalizar essa droga? Como tal decisão tem sido tomada ao redor do mundo?

Cláudio Meireles — A descriminalização significa retirar da esfera criminal a regulamentação normativa sobre o tema, ou seja, excluir determinado ato ou conduta da tipificação como crime. Algo considerado crime deixa de ser. No caso da maconha, as sanções penais associadas à sua posse para uso pessoal, bem como ao próprio consumo, deixariam de existir. 

Já a legalização significa ir além da descriminalização. Implica na regulamentação efetiva de diversos aspectos por outras esferas jurídicas que não a penal, visando normatizações sobre produção, venda, distribuição e uso da droga para fins medicinais e/ou recreativos. Seria a criação de um sistema regulatório, que pode incluir controle da produção, distribuição e venda de maconha, estabelecendo limites de idade, tributos sobre as vendas, restrições de locais de comercialização e/ou consumo, e outras medidas.

Dito de outra forma, descriminalizar significa o fim da proibição, permitindo assim o uso pessoal e recreativo da maconha e o porte de pequenas quantidades com esse fim. A produção, distribuição e comércio da maconha continuariam ilegais, sujeitos a diversas sanções. Legalizar a maconha, por sua vez, significa eliminar completamente o estigma da criminalização e expandir a discussão para outras áreas. Isso resultaria na inserção da cannabis na economia de mercado e na formalidade, sob o controle estatal e dentro dos limites estabelecidos, visando a redução de riscos à saúde, como já ocorre, por exemplo, na regulação do álcool e do tabaco.

Sobre a forma como o tema da regulação das drogas vem sendo normatizado mundo afora, existem discordâncias profundas em várias abordagens no âmbito da segurança pública, política criminal, saúde pública e liberdade individual. A província de British Columbia, no Canadá, chegou até mesmo a descriminalizar o porte de pequenas quantidades de drogas pesadas em 2023 como uma política de redução de danos que tenta lidar com a crise dos opioides. Por outro lado, países como Japão e Cingapura mantém leis extremamente duras em política de tolerância zero no combate às drogas.

É importante destacar que existem entidades internacionais que têm monitorado os efeitos da legalização do uso, porte e/ou comercialização da maconha em diversos países, como a Comissão de Narcóticos da ONU, já citada, o Centro de Monitoramento Europeu para Drogas e Dependência, entre outras.

Quanto ao Uruguai, um dos órgãos responsáveis por regular a plantação, cultivo, colheita, produção, elaboração, distribuição e dispensação de cannabis é o Instituto de Regulamentação e Controle da Cannabis (IRCCA). Conforme dados desse órgão, com a legalização da maconha, houve queda no seu consumo por meios ilegais originados do tráfico, o que influi na redução da criminalidade, além de que não há registro de casos de morte por intoxicação nem aumento na demanda de tratamentos de saúde em razão de problemas associados ao seu uso.

Entrevista Nota 10 — Em março, o Supremo Tribunal Federal voltou a debater o porte de drogas para consumo pessoal, em uma votação que se iniciou ainda em 2015 e que já possui maioria de votos favoráveis à flexibilização. Já em abril, o Senado aprovou a PEC que criminaliza o porte e a posse de qualquer quantidade de droga ilícita, seguindo agora para análise da Câmara dos Deputados. Por que existe essa diferença de posicionamento entre o STF e o Poder Legislativo? Qual é o papel de cada um e como os dois podem ou deveriam dialogar entre si nesse debate?

Cláudio Meireles — O Congresso Nacional e o STF são instituições com escopo e lógica de funcionamento muito distintos. É natural que em temas complexos não haja uma confluência plena. Como bem fala Marilena Chauí: “Democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos”.

Dito isso, o Parlamento é, em essência, a instituição que deve refletir a heterogeneidade existente na nossa sociedade. Retirando do quadro de análise aqueles legisladores com motivações inidôneas, sem lisura ou com postura fisiológica, considero que a atuação do parlamentar vai ser fundada em uma concepção político-ideológica conectada a certa visão de mundo compartilhada pelo seu eleitorado. 

Faço a leitura de que é inegável ser o Parlamento brasileiro hoje majoritariamente conservador quando se trata da pauta de costumes, o que é absolutamente legítimo, uma vez que foram democraticamente eleitos. Esse viés político-ideológico reflete em concepções a respeito de política criminal mais punitivistas, com ênfase na responsabilidade individual, na ordem e segurança públicas. Por isso, antevejo que a tendência seja pela aprovação da PEC também na Câmara dos Deputados.

Em relação ao STF, tenho entendimento particular que, ao decidir os conflitos concretamente, qualquer magistrado precisa aderir a certa concepção de justiça social que, por uma série de fatores, lhe parecerá mais coerente com as prescrições constitucionais, sem, todavia, ser unanimidade dentro do próprio Judiciário, quando mais nas diversas instâncias sociais. O ato de julgar, portanto, implica escolhas impregnadas de aspectos valorativos e na delimitação de critérios do que é justo, critérios esses que não serão simploriamente extraídos da literalidade do texto legal, como se fossem óbvios ou incontroversos. 

Tais escolhas valorativas, balizadas por uma determinada concepção de direito e justiça, influem diretamente nas relações de poder estabelecidas na sociedade, possuindo, em algum grau, caráter político. Em síntese, entendo não ser possível afirmar que decisões judiciais são plenamente neutras e apolíticas. Técnicas? Sim. Imparciais? Sem dúvida. Mas não há neutralidade, pois são atos de indivíduos. Para citar Gadamer, é impossível o afastamento da cultura, tradição e historicidade do sujeito-intérprete, no caso, do juiz que interpreta e aplica a norma. 

Onde quero chegar com essa digressão? Por mais técnicas e bem fundamentadas que sejam as decisões judiciais, quando se trata de interpretação constitucional e de casos complexos, a atividade interpretativa nunca se resume a uma simples revelação do conteúdo preexistente na norma escrita. Ademais, cabe ao Judiciário brasileiro o controle de constitucionalidade, que consiste em uma espécie de sistema de verificação e fiscalização da conformidade de atos do Poder Público em relação à Constituição Federal. Ao STF, precipuamente, cabe a guarda desta Constituição, como prescreve o seu artigo 102. Por essa razão observamos tantos atos do Executivo e Legislativo sendo invalidados pelo Judiciário em geral e pelo Supremo em particular.

Analisando o histórico recente das decisões do STF e o perfil jurídico dos atuais ministros da Corte, reconheço uma tendência mais liberal por lá, tanto na pauta dos costumes como na econômica. Ainda que liberalismo moral não possa ser confundido com progressismo político – são categorias distintas –, existe sim um certo antagonismo entre o teor do que vem sendo decidido por maioria pelo STF e o vetor ideológico dominante no Congresso Nacional. 

Entrevista Nota 10 — No próximo dia 21 de maio, você participará da palestra “Tensões entre STF e Poder Legislativo: o caso cannabis e o efeito backlash” junto ao professor Fábio Holanda. Qual a importância de trazer essa discussão para o ambiente acadêmico? Como o debate mediado na Universidade pode contribuir para a formação dos novos profissionais das mais diversas áreas, principalmente jurídica?

Cláudio Meireles — Este é um dos temas em destaque no momento, visto que o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário (RE) 635.659 já conta com cinco votos favoráveis à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Em clara resposta ao Supremo, o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pautou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 45/2023) no Senado Federal, cujo intuito é alterar o artigo 5º do texto constitucional para considerar crime a posse e o porte de drogas ilícitas independente da quantidade.

Essa resposta se deu pois há entendimento entre muitos parlamentares que o Supremo tem extrapolado os limites tradicionais de suas funções com uma certa frequência, intervindo indevidamente em questões que deveriam ser reguladas pelo Legislativo. O tema da descriminalização e legalização da maconha, sustentam esses legisladores, é de deliberação exclusiva do Congresso Nacional, de maneira que uma possível decisão do STF com caráter vinculante seria um claro caso daquilo que os juristas denominam como ativismo judicial. Os ministros do Supremo, por sua vez, compreendem que estão exercendo seu papel no controle de constitucionalidade, analisando se a previsão penal é compatível com o texto constitucional. Enquanto guardião da Constituição, o STF tem a obrigação de atuar na defesa de direitos individuais e de grupos minoritários, não podendo se furtar de decidir sobre questões sociais controversas.

Por efeito backlash, compreende-se um fenômeno político observado quando decisões judiciais sobre temas controversos são percebidas como progressistas ou liberais, o que gera uma reação adversa por parte da sociedade e do próprio Legislativo, podendo resultar em alterações legislativas com o objetivo de promover uma espécie de contragolpe ao Judiciário. Por essa razão, a proposta do evento é realizar um debate sobre o objeto do julgamento do STF e da PEC, como também da relação entre esses dois poderes.

Nossa pretensão, minha e do professor Fábio, é abordar elementos técnico-jurídicos, com sustentação em dados e evidências apurados em pesquisas sobre o tema. Não haverá a defesa de uma ideia ou posição fixa, como se as coisas fossem sempre polarizadas, pois acreditamos que se trata de um tema muito complexo. Contribuiremos para uma reflexão crítica, com abertura real à compreensão das visões contrapostas e nuances do caso.

Assim, podemos fomentar em nossa comunidade acadêmica o diálogo e compreensão mútua, com troca de ideias e respeito às opiniões divergentes. Ao mesmo tempo, esse tipo de evento valoriza os argumentos embasados, com o propósito de desenvolver o pensamento crítico e a análise de conjuntura. Queremos mostrar aos nossos discentes que, independentemente do posicionamento político-ideológico que eles possam ter, é possível e necessário que eles investiguem temas delicados e polêmicos sob um viés científico e acadêmico.