seg, 5 dezembro 2022 12:26
Entrevista Nota 10: Ana Virginia Moreira e os direitos trabalhistas na dignidade humana
Professora e doutora em Direito do Trabalho, a pesquisadora Ana Virginia Moreira explica como os direitos trabalhistas se relacionam com vulnerabilidade social, além de falar sobre o último livro que organizou
O trabalho não só é uma das principais questões presentes na formação de nossa sociedade, mas também desempenha um papel importante na vida de cada indivíduo, tanto a nível coletivo quanto pessoal. Por ser tão influente na manutenção do bem-estar social e individual, essa atividade ganhou uma legislação própria: o Direito do Trabalho.
Para Ana Virginia Moreira Gomes, professora de Direito do Trabalho no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) e no Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza – instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz –, ver o tema sob a perspectiva dos direitos humanos é algo natural por essa razão.
“É lá que passamos uma parte significativa da nossa vida, e o local no qual trabalhamos, conforme as suas condições, pode ser um ambiente de promoção da dignidade das pessoas ou de vulnerabilidades a ter sua dignidade violada”, elucida a doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e Seguridade Social (NEDTS), do PPGD/Unifor.
Com Estágio Pós-Doutoral na Cornell University, Ana Virginia já foi pesquisadora no Centre for Law in the Contemporary Workplace da Queens University, no Canadá. Seu foco de pesquisa atual se concentra em temas relacionados ao direito sindical, trabalho precário e vulnerável e direitos fundamentais do trabalho. Alguns desses assuntos perpassam, inclusive, o tema de seu recente lançamento, o “Efeitos Plurais da Pandemia: uma memória das políticas adotadas no Ceará”
A obra coletiva foi organizada pelas professoras Ana Virginia Gomes e Mariana Dionísio. É considerado o primeiro livro no Ceará a registrar memórias da pandemia por profissionais e gestores de políticas, trazendo relatos das áreas de assistência social, ciência & tecnologia, cultura, direito, economia, trabalho e saúde.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, a docente explica como os direitos trabalhistas se relacionam com a dignidade humana, além de falar sobre o livro lançado na última quinta-feira (1º).
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 – Professora, como surgiu o interesse em atuar e pesquisar nas áreas jurídicas sobre trabalho e direitos humanos?
Ana Virginia Gomes – Hoje, olhando para trás, eu vejo que o interesse e a sensibilidade às questões do trabalho me levaram ao Direito Trabalhista. Por um lado, o interesse e fascínio acerca do que significa o trabalho para as pessoas e na sociedade; por outro, a sensibilidade e a empatia em relação aos desafios, problemas e injustiças que as pessoas enfrentam no emprego. Daí, a também pensar o trabalho a partir da perspectiva dos direitos humanos é somente natural, uma vez que é lá que passamos uma parte significativa da nossa vida e o local no qual trabalhamos, conforme as suas condições, pode ser um ambiente de promoção da dignidade das pessoas ou de vulnerabilidades a ter sua dignidade violada.
Entrevista Nota 10 – O que significa estar em situação de vulnerabilidade?
Ana Virginia Gomes – Vulnerabilidade já de início nos passa as ideias de insegurança e desproteção, ou seja, a própria negação do Direito do Trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define vulnerabilidade laboral como o trabalho com baixa remuneração e produtividade, realizado em condições inadequadas, em violação aos direitos fundamentais dos trabalhadores. Duas características usualmente presentes nesses trabalhos são a baixa ou nenhuma proteção social e ausência de mecanismos de diálogo social e organização coletiva – isto é, os trabalhadores não têm meios de ecoar a sua voz.
Enquanto a vulnerabilidade pode afetar relações formais de trabalho – por exemplo, o contrato de trabalho intermitente, inserido na CLT pela reforma trabalhista de 2017, e que coloca o trabalhador em uma posição extremamente vulnerável – a vulnerabilidade é mais frequente e intensa na economia informal. Infelizmente no Brasil, podemos facilmente identificar trabalhadores nessa condição. Um tipo de trabalho vulnerável muito discutido atualmente é aquele dos trabalhadores por plataforma, como motoristas de entrega por aplicativos. Todavia, a vulnerabilidade no emprego é bem mais antiga no Brasil e em outros países latino-americanos. O trabalho nas ruas, doméstico, na agricultura, no extrativismo são alguns exemplos.
Estar vulnerável no trabalho significa que as associações positivas que fazemos em relação a ele (como forma de identidade social, de autoestima, de realização pessoal, de alcançar um melhor nível econômico e de bem-estar) são destruídas por uma ocupação que discrimina, degrada, machuca e mata.
Entrevista Nota 10 – Como a situação de vulnerabilidade afeta o exercício de cidadania da pessoa enquanto indivíduo e membro da sociedade?
Ana Virginia Gomes – Se pensarmos que o trabalho ocupa uma parcela grande e importante da nossa vida, podemos imaginar o quanto as condições de vulnerabilidade podem afetar o exercício da cidadania. Vou dar um exemplo que faz parte das nossas pesquisas no Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e Seguridade Social (NEDTS), do PPGD/Unifor. O trabalho dos catadores de resíduos nas ruas de cidades como Fortaleza se dá de forma autônoma e não organizada em associações ou cooperativas. Esse trabalhador é extremamente vulnerável. O indivíduo trabalha longas jornadas (12 a 14 horas por dia), puxando carrinhos com carga de até 100 quilos, enfrentando o trânsito nas ruas, em um contexto de violência urbana, vulnerável ao assédio e violência por parte, inclusive, da população e autoridades públicas que não reconhecem o seu trabalho. Essa vulnerabilidade laboral, claro, afeta e é afetada por outras dimensões vulneráveis da sua vida. Por exemplo, na pesquisa que fizemos no âmbito do NEDTS com catadores que trabalham nas ruas, descobrimos que quase metade do grupo estava em situação de rua. Esses trabalhadores também enfrentavam obstáculos para ter acesso aos serviços de saúde e mesmo de assistência social – como ficou claro durante a pandemia da Covid-19.
Enfim, a vulnerabilidade do trabalho não ocorre de forma isolada das demais vulnerabilidades sociais. E isso é importante porque mostra a necessidade de se desenvolver políticas, inclusive regulatórias, multidimensionais para tratar em especial do trabalho vulnerável na economia informal.
Entrevista Nota 10 – Junto à professora Mariana Dionísio, você organizou o livro “Efeitos Plurais da Pandemia: uma memória das políticas adotadas no Ceará”, que será lançado nesta quinta-feira e que traz relatos profissionais e análises jurídicas sobre o momento histórico. Poderia explicar como a tomada de decisões governamentais teve um papel significativo na manutenção (ou na falta) dos direitos e da qualidade de vida da população ao atravessarmos a pandemia?
Ana Virginia Gomes – Em uma situação emergencial e extrema, como a da pandemia da COVID-19, as ações governamentais foram decisivas para o enfrentamento da doença e para a vida das pessoas nesse período. No caso do Brasil, o não desempenho dessas funções, em especial na esfera federal, acarretou consequências trágicas para o País e sua população.
No campo do trabalho, é importante se debruçar no contexto regulatório criado à época para compreender o que foi feito e o que faltou. Por exemplo, em uma pesquisa realizada no âmbito do NEDTS, examinamos toda a legislação acerca das condições de trabalho dos profissionais da saúde de 2020 a 2021 nos âmbitos estaduais e federal. Encontramos que as orientações da OIT e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenir a vulnerabilidade, especialmente dos profissionais da saúde que estavam na linha de frente do combate à pandemia, não foram minimamente seguidas. Essa ausência repercute não somente no número de adoecimentos e mortes dentre esses profissionais, mas também na sua saúde mental, na sua integridade física e na proteção social a esses trabalhadores e suas famílias.
Entrevista Nota 10 – Qual a importância da academia se debruçar sobre esse tópico? Esses estudos podem transformar a vida das pessoas por meio do âmbito jurídico?
Ana Virginia Gomes – As crises sanitárias, econômicas e sociais resultantes da pandemia expuseram conflitos nas mais diferentes dimensões da vida da população e do funcionamento das instituições. As crises e os conflitos ocorreram no cenário de tragédia marcado pelas vidas que foram perdidas para a doença. É exatamente a gravidade do momento que ainda passamos que torna essencial a reflexão acadêmica sobre as respostas que foram construídas e efetivadas durante esse período tanto para se avaliar a efetividade das políticas, quanto para se refletir sobre o futuro.
No livro, os textos foram desenvolvidos por profissionais com vivências e experiências únicas diante das dificuldades decorrentes da proliferação do vírus. O desenvolvimento da obra contemplou sete áreas: assistência social, ciência & tecnologia, cultura, direito, economia, trabalho e saúde. A importância da vigilância epidemiológica, a busca por dados seguros e o enfrentamento da pandemia e de suas consequências constituem a maior riqueza desta obra: o aprendizado com a adversidade.
Por fim, é importante ressaltar que o resultado, publicado aqui, constitui o primeiro livro no estado do Ceará a registrar memórias da pandemia por profissionais e gestores de políticas. Gostaria também de agradecer o apoio da Fundação Edson Queiroz e da Vice-Reitoria de Pesquisa da Unifor para a realização dessa pesquisa.