seg, 6 outubro 2025 17:44
Cidades-esponja: conheça a solução urbana contra enchentes e extremos climáticos
Conceito criado pelo arquiteto paisagista Yu Kongjian para integrar natureza e planejamento urbano ganha relevância diante das mudanças climáticas e inspira alternativas sustentáveis em cidades brasileiras

O falecimento recente do urbanista chinês Yu Kongjian, criador do conceito de cidades-esponja, reacendeu os debates sobre soluções urbanas capazes de enfrentar as crises climáticas. Sua partida, que coincide com um momento crítico de debate ambiental no Brasil e no mundo, fortalece a necessidade da pergunta que ele tentava responder: como os cenários urbanos podem se preparar para conviver com os efeitos de chuvas intensas, enchentes e alagamentos, eventos cada vez mais frequentes?
A proposta de Yu, que vinha promovendo a discussão há décadas, era simples em sua essência, mas transformadora na prática: tornar a cidade capaz de absorver, reter e reutilizar a água de tempestades, enchentes e outros desastres, em vez de rejeitá-la. A metáfora da “esponja” traduz bem esse conceito. Em vez de encarar a água como ameaça, o planejamento urbano deveria incorporá-la como recurso e elemento vital.
Para compreender como essa ideia pode ser aplicada à realidade brasileira, o arquiteto urbanista Amando Candeira Costa Filho, docente do Mestrado Profissional em Ciências da Cidade (MPCC) da Universidade de Fortaleza — instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz — , explica os princípios e as possibilidades das cidades-esponja.
O ciclo da água e a ruptura urbana
Segundo Amando, o ponto de partida é entender que o ciclo da água sempre existiu como base da vida nos ecossistemas. “Em qualquer ecossistema, a água cumpre um ciclo: da chuva para os rios, os lagos, o solo e a vegetação. O problema é que a cidade talvez seja um dos ambientes mais alterados, e esse ciclo da água sofre impactos profundos pela impermeabilização e pela ocupação do solo”, explica.
A impermeabilização é o grande obstáculo. Ruas asfaltadas, calçadas cimentadas e edifícios sem áreas permeáveis impedem a infiltração da água. Assim, em vez de se distribuir no solo, ela escoa em grandes volumes pelas vias urbanas, provocando enchentes. “A cidade-esponja surge exatamente no sentido de reincorporar a água no planejamento, sob diversas formas. O objetivo é facilitar essa reintegração do ciclo hídrico no ambiente urbano”, afirma o professor.
Na imagem, o Parque Jinhua Yanweizhou, na China, demonstra o conceito de cidade-esponja em períodos mais secos (à esquerda) e com mais fluxo hídrico (à direita), sincronizando as necessidades da natureza com o ambiente urbano (Fotos: Turenscape)
Entre as soluções mais viáveis, Amando destaca a permeabilidade do solo. “A cidade é composta por superfícies impermeáveis que evitam a infiltração no solo. Daí surgem os alagamentos. Mas a permeabilidade pode ser recuperada com pisos drenantes, jardins de chuva e telhados verdes, que retêm parte da água”, aponta o docente.
Essas medidas, além de reduzir os riscos de enchentes, promovem áreas de lazer, aumentam o contato com a natureza e contribuem para melhorar a temperatura elevada das cidades. “No planejamento da cidade-esponja, não se considera apenas o leito do rio, mas também sua várzea. Essas áreas podem ser usadas pela população como parques e, em épocas de chuva, ficam temporariamente alagadas, cumprindo sua função natural”, pontua o urbanista, ressaltando a importância da associação entre água e áreas verdes.
Fortaleza como exemplo e desafio
Na realidade local, Fortaleza já apresenta elementos que dialogam com o conceito. Um exemplo do que poderia ser considerado uma estratégia de cidade-esponja, seria o Parque do Cocó.
O Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, é o maior parque urbano do Norte/Nordeste e o quarto da América Latina (Foto: Natinho Rodrigues/Diário do Nordeste)
O parque, influenciado pelo Rio Cocó e pelas marés, funciona como uma espécie de amortecedor natural. “Boa parte da água das enchentes fica retida naquela área de mangue, evitando alagamentos mais graves. Esse é um caso em que a preservação ambiental se alia ao planejamento urbano”, analisa Amando.
No entanto, ele alerta que a cidade enfrenta sérios problemas em outros pontos e cita situações recorrentes: “Em muitos locais, os rios foram canalizados ou aterrados. Qualquer elevação do nível da água vai diretamente para as ruas, como ocorre no Centro, em trechos da avenida Duque de Caxias. Não importa o quanto se tente conter, a água vai procurar seu caminho natural”. Esse tipo de descaso histórico na ocupação do solo explica por que enchentes se repetem ano após ano, sem que soluções definitivas sejam alcançadas.
Custos econômicos e benefícios ambientais
O debate sobre cidades-esponja também pode influenciar o meio econômico. Cada enchente representa prejuízos para o poder público e para a população, desde a destruição de infraestrutura até o comércio fechado por alagamentos. “Toda vez que a cidade sofre com enchentes, há custos para reparos, reconstrução de vias e indenizações indiretas. Investir em estratégias que previnam esses eventos é muito mais eficiente do que remediar depois”, defende Amando.
Além disso, cidades-esponja podem melhorar a qualidade de vida e reduzir gastos com saúde pública, pois áreas verdes ajudam a filtrar poluentes, reduzir a poluição do ar e amenizar o calor. “Você aproxima a cidade da natureza. E a natureza, ao estar mais presente, se torna parte da vivência urbana, não apenas uma paisagem distante”, observa o urbanista. Embora o conceito seja promissor, a aplicação em larga escala enfrenta desafios.
“É difícil implantar grandes estratégias em cidades já tão alteradas, os custos são altos, mas isso não significa que devemos esperar por megaprojetos. Soluções na microescala, como pisos drenantes e jardins de chuva em bairros e residências, são totalmente possíveis e podem trazer impactos significativos” — Amando Candeira, mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo e docente do Mestrado em Ciências da Cidade da Pós-Unifor
Para o professor, a adoção efetiva das cidades-esponja depende menos da disponibilidade técnica e mais da decisão política. Ele defende que os gestores urbanos precisam colocar essas estratégias no topo das prioridades; caso contrário, o conceito permanece apenas no campo das ideias, sem sair do papel. Segundo Amando, é urgente uma mudança na hierarquia do planejamento urbano brasileiro para que essas soluções sejam, de fato, implementadas.
As recentes tragédias ambientais no Brasil, desde enchentes no Rio Grande do Sul até deslizamentos em encostas urbanas, mostram a urgência de novas abordagens. O modelo das cidades-esponja aparece como alternativa para transformar o modo como convivemos com a água.
“Não podemos mais encarar os alagamentos como acidentes inevitáveis. Em muitos casos, eles são consequência direta de escolhas urbanas equivocadas. Incorporar áreas permeáveis e respeitar o ciclo natural da água é uma forma de evitar tragédias”, reforça Amando.
A lógica é simples: deixar que a água cumpra seu papel em vez de tentar expulsá-la. “Alagamento não é necessariamente uma coisa feia. Ele pode fazer parte da paisagem natural, se for planejado. O problema é quando acontece onde não deveria”, conclui o arquiteto.
O legado de Yu Kongjian e o desafio brasileiro
A morte de Yu Kongjian no Brasil deixa um legado em aberto. Sua ideia de cidades-esponja foi implementada em várias regiões da China, servindo como modelo para o mundo. O país investiu em mais de 30 projetos-piloto, transformando áreas urbanas em espaços resilientes, capazes de reter até 70% da água da chuva.
Para cidades brasileiras como Fortaleza, São Paulo e Recife, a inspiração é clara: em vez de investir apenas em obras de drenagem e canalização, é preciso planejar cidades que convivam com a água. “O sistema de drenagem tradicional apenas transfere a água de um lugar para outro. Mas em algum lugar ela vai parar. Por isso, precisa ser complementado com soluções sustentáveis”, destaca Amando Candeira.
Enquanto isso, parques urbanos, coberturas verdes, jardins e pisos drenantes podem começar a desenhar esse futuro mais resiliente. “É um conceito muito positivo e aplicável à realidade brasileira, desde que respeite as condições específicas de cada cidade. O importante é que não fique apenas na teoria”, afirma o professor.
Um caminho inevitável
As mudanças climáticas já estão em curso, trazendo chuvas mais intensas, períodos de seca prolongada e aumento do nível do mar. Nesse cenário, cidades-esponja não são apenas uma alternativa, mas uma necessidade.
Nesse sentido, Fortaleza, com seus rios ocupados e áreas periodicamente alagadas, é um exemplo de cidade que precisa repensar sua relação com a água. O Parque do Cocó mostra que é possível. Falta agora ampliar as estratégias e, sobretudo, priorizar a natureza como parte viva do planejamento urbano.
O desafio é grande, mas, como lembra o professor Amando, é também uma oportunidade: “Cada cidade tem sua realidade. Mas todas podem encontrar soluções compatíveis. O conceito de cidade-esponja é, acima de tudo, uma forma de devolver à natureza o espaço que lhe foi tirado. E, nesse processo, garantir a sobrevivência e a qualidade de vida de quem vive nas cidades”.