Entrevista Nota 10: Walquiria Leão Rego e o sofrimento social como ameaça à democracia

seg, 20 outubro 2025 18:16

Entrevista Nota 10: Walquiria Leão Rego e o sofrimento social como ameaça à democracia

Socióloga fala sobre a pobreza no Brasil profundo e o sofrimento causado pela exclusão social e política, além de comentar sobre seu novo livro, que será lançado no dia 22 de outubro, na Unifor


Professora da Universidade Estadual de Campinas, Walquiria também é coautora do livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania” (Foto: Karime Xavier/Folhapress)
Professora da Universidade Estadual de Campinas, Walquiria também é coautora do livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania” (Foto: Karime Xavier/Folhapress)

Em 2024, o Brasil celebrou uma façanha histórica ao alcançar os menores índices de pobreza e extrema pobreza já registrados desde 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da expressiva conquista, o país ainda conta com cerca de 68 milhões de pessoas que vivem a dura realidade dessas situações socioeconômicas.

A socióloga Walquiria Leão Rego — docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) — explica que a vida na pobreza, principalmente a encontrada no chamado Brasil profundo, traz um alto nível de privação a necessidades básicas, como saúde, água corrente, eletricidade, educação e até comida. Isso gera, então, um grande sofrimento social que poderia ser evitado.

Segundo a professora, a relação entre esse sofrimento social e o silenciamento político não é algo ocasional, mas intencional. A falta de investimento em educação pública de qualidade e bem-estar social, diz ela, fecha portas para esses indivíduos que vivem em situação de vulnerabilidade e abrem espaço para uma democracia ameaçada.

“A democracia, para ser forte, precisa de cidadãos fortes politicamente, com subjetividade, que tenham capacidade mínima de reflexão, de pensar. Mas quando o Estado não fornece essas condições, como escola de qualidade, transporte de qualidade e uma vida social de boa qualidade, o que se espera? Passividade política e sujeição a todas as formas de dominação”, pontua a pesquisadora.

Esse debate sobre exclusão social, políticas públicas e dignidade humana, inclusive, é tema do seu novo livro “Vidas Roubadas: Sofrimento Social e Pobreza”, escrito em parceria com Alessandro Pinzani. O evento de lançamento da obra irá acontecer no dia 22 de outubro, no campus da Universidade de Fortaleza, com a presença de Walquiria.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela fala sobre falar sobre a pobreza no Brasil Profundo e o sofrimento causado pela exclusão social e política, além de comentar sobre seu novo livro.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — O que significa o termo Brasil Profundo? Qual a sua relação com a pobreza e a falta de perspectivas de vida para populações marginalizadas?

Walquiria Leão Rego — O termo Brasil profundo — que foi muito usado já, inclusive no século XIX, por alguns autores que viajaram pelo país —, eu acho que ele tem ainda um certo sentido até hoje, claro que com todas as mudanças ocorrentes. Mas a ideia de Brasil profundo é aquele Brasil que não é muito visível a todos nós — todo mundo sabe o que é Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, São Paulo. O Brasil profundo é aquele Brasil onde certas relações sociais muito antigas, muito arcaicas até, mantêm-se de alguma maneira. Por exemplo, a figura do patriarca, a figura masculina muito forte, as mulheres ainda atreladas a hábitos e costumes extremamente, digamos, autoritários, e também modos de comer, certo tipo de comida etc.

No nosso caso de Brasil profundo, ele foi muito pensado e usado para falar do Brasil muito pobre. Do Brasil que, apesar de ser em país bastante industrializado, que teve uma industrialização extremamente forte e em um curto espaço de tempo, essa modernidade não chega em certos lugares do país. Mesmo agora, quando eu viajei em 2020, ainda encontrei, por exemplo, casas de barro, de taipa, forrados com sapé, chão batido, coisa que alguém que mora aqui em São Paulo, Rio e nas grandes cidades, sequer imagina como é que se dorme, se vive, se come numa realidade dessa.

Ou seja, a ideia de Brasil profundo está muito associada ao Brasil pobre, ao Brasil que foi injustiçado, no qual a modernidade não trouxe justiça, não trouxe bem-estar, não trouxe igualdade, não trouxe nenhum dos valores chamados de modernos.

Esse Brasil profundo tem sido normalmente o Brasil rural. É o Brasil rural dos sertões, os sertões de Minas, os sertões da Bahia, os sertões do Nordeste em geral. Certamente, existe um Brasil também que ainda nos é muito desconhecido, que é o Brasil amazônico das populações ribeirinhas, que viajam duas horas de barco para fazer uma compra numa cidade, ainda existe isso. Então, quando usamos essa expressão, é como se ela tivesse uma força própria. O Brasil Profundo tem uma força heurística, quase, entre nós.

Nós não estamos falando de Copacabana, nós estamos falando de um Brasil normalmente invisível, que não é visto ou é raramente mostrado. E quando ele foi mostrado pelo Cinema Novo, por exemplo, ou pela literatura de um brasileiro, nós nos assustávamos com aquilo. Nós, habitantes da cidade, estudantes da universidade, nos assustávamos quanto a isso. Mas o Brasil profundo produziu o Contestado, produziu Antônio Conselheiro, produziu bastantes revoluções — inclusive no Cariri.

Então, esse Brasil que eu estou me referindo como um Brasil muito pouco visível, não quer dizer que ali não houvesse muita vida, muita luta, que ali não tivesse almas. Pelo contrário, ali aconteceu muita coisa. Basta você pensar em Canudos, Contestado, a revolta do Caldeirão aí no Cariri, no Crato, e outras tantas que eu não preciso enumerá-las. Basta ler Grande Sertão Veredas, por exemplo, do Guimarães Rosa. O Guimarães Rosa trouxe um Brasil que não era visível. Trouxe, construiu uma língua própria, aquela maravilha e tudo mais. Ele trouxe um Brasil extremamente desconhecido por nós. É nesse sentido que eu uso o Brasil profundo.

Eu vi certas casas, eu vi o depoimento de certas relações entre as pessoas que me lembravam, certamente e vivamente, romances como Vidas Secas, do Graciliano, ou Grande Sertão Veredas, ou O Quinze, da Raquel de Queiroz. Os escritores dos anos 30, os chamados modernistas nordestinos, trouxeram muito desse Brasil para a população mais letrada, digamos assim, das grandes cidades. Onde descobriu-se, por exemplo, ou tornou-se mais visível, tanto é que quase toda essa literatura se transforma em cinema e esses filmes são passados nas universidades, nas cidades.

É um Brasil profundo, mas que vai tocar nos corações dos estudantes, acho que de todas as gerações, sobretudo da minha. Porque eu nunca imaginei algo como Vidas Secas, por exemplo, uma relação daquela, e nunca imaginei que alguém pudesse escrever de uma maneira tão viva e, ao mesmo tempo, tão dura sobre o que nós estamos chamando de Brasil profundo.

Entrevista Nota 10 — Como você define o conceito de pobreza extrema e de que maneira se dá a conexão disso com o sofrimento social? 

Walquiria Leão Rego — O conceito de pobreza extrema é um conceito muito descritivo, na verdade. Faz-se aquele cálculo de quem ganha menos de dois dólares por dia, então são aquelas estatísticas e classificações, inclusive feitas pelo Banco Mundial, por exemplo. Mas nós adotamos o conceito de pobreza extrema para mostrar que a pobreza tem graus absolutos de privação de necessidades básicas. Então, por exemplo, uma pessoa que passa fome vive em estado de pobreza extrema.

Mas você tem outros tipos de pobreza. Há uma pobreza em que a pessoa não necessariamente passa, ou nem passa fome, mas tem uma vida muito limitada, com condições materiais muito precárias. Nós chamamos, inclusive, de fenomenologia da pobreza quando nós conseguimos descrever quem são essas pessoas que vivem em lugares extremamente duros de viver sem conforto, sem água corrente, sem luz elétrica — que até hoje existe. Nós tínhamos quase 20 milhões de brasileiros que não tinham luz elétrica.

Então, a pobreza extrema é um nível tão grande de privações, de necessidades, que, necessariamente, ela traz um grande sofrimento social. Por que enfatizamos o termo social? Porque é um sofrimento que não precisava existir. Ele pode ser evitado. E quem disse isso não fui eu, foi Sigmund Freud, no livro O Mal-Estar da Civilização, onde ele faz essa pergunta. Há sofrimentos que podem ser evitados, por exemplo, o social. E, no Brasil, as pesquisas, inclusive as que eu faço e fiz, mostraram muito isso. O sofrimento social traz um sofrimento psíquico, claro, mas eu não vou tratar disso porque não sou psicanalista, não sou psicóloga, nada disso. Há gente muito competente trabalhando sobre essa dimensão da pobreza.

E a pobreza extrema, essa privação profunda de necessidades sociais básicas, traz um grande sentimento de inferioridade, de insegurança, de autoestima muito baixa. Há um grande sofrimento quando você se sente assim no mundo, quando você se sente escrava das necessidades básicas.

Hannah Arendt usa uma expressão muito forte para falar da pobreza. Ela diz assim: "é a ditadura dos corpos". Você só pensa em comer. O que eu vou comer? Eu vou ter o que comer amanhã, depois de amanhã? Eu, meus filhos? Então, ela vive sob quase uma ditadura que chama de ditadura dos corpos. Você não consegue nem refletir, nem pensar, porque a fome não te deixa, a sede não te deixa. É isso, para nós, o conceito de pobreza extrema. É a ideia de privações quase absolutas de necessidades. De necessidades básicas para uma vida.

Entrevista Nota 10 — E por que precisamos entender a relação entre a pobreza extrema e o sofrimento social para conseguir compreender esse Brasil profundo e olhar para ele de uma maneira mais ativa?

Walquiria Leão Rego — Eu tenho a impressão, e isso trabalhamos nesse último livro [Vidas roubadas: sofrimento social e pobreza], que é a relação com a democracia. Como podemos chamar um país de democrático tendo uma porcentagem tão grande de cidadãos, de nossos concidadãos, passando fome, passando por essas necessidades e privações de coisas básicas para a própria sobrevivência? Essas pessoas sofrem muito, por tudo isso que eu falei antes, [e vivem] o sentimento de que são menores, de que, no fundo, elas são quase culpadas daquilo.

Esse sentimento de inferioridade paralisa para a ação política, por exemplo. Ela é facilmente aprisionada pelo primeiro demagogo da esquina, como costumamos dizer. Ela pode ser capturada por forças extremamente negativas que a convencem que é isso mesmo, que Deus quis assim, mas que ela vai ser compensada na outra vida e transformá-la num sujeito muito passivo diante do próprio sofrimento.

Ou pode acontecer o contrário, como aconteceu. O que foi Canudos, Contestado, a revolta do Caldeirão? Foram momentos em que esse sofrimento se transformou em fúria. Ele pode ter essa potência. Mas, é como nós sabemos: juntar os desvalidos, como alguém já disse, é uma coisa muito difícil. Deve ser feito, mas não é fácil. Mas ela aconteceu muitas vezes na história. Os desvalidos se juntarem e serem massacrados, como sempre foram, mas tentarem superar aquela situação com uma vida mais comunitária, mais igualitária, como aconteceu com essas experiências que nos referimos aqui. E todas elas foram barbaramente massacradas, reprimidas.

Então, o sofrimento é uma espécie de Janus, o deus romano que tem duas faces. Ele pode levar ao sujeito passivo, a se conformar, um conformista que não consegue lutar porque está aprisionado pela ditadura dos corpos, como lembramos. Ou isso pode se transformar em uma fúria, uma rebeldia. Essas duas potências, uma negativa e outra positiva, digamos assim, podem ocorrer. Vai depender de muitas circunstâncias, que daí cada caso tem que ser analisado sociologicamente, antropologicamente etc.

Entrevista Nota 10 — Você acredita que essa associação entre sofrimento social e silenciamento político é proposital? Ele acontece com intencionalidade ou isso é mais uma questão de fazer parte do sistema em que vivemos?

Walquiria Leão Rego — Ele não é ocasional. Ele é, vamos dizer assim, intencional. Quando você não investe em educação pública, de qualidade, você fecha as portas para a igualdade. Os ricos vão estudar em escolas de qualidade e os pobres em escolas de má qualidade. Quando você não fornece serviços públicos de qualidade, transporte público, habitação com qualidade, bem-estar social — já nos lembrava Aristóteles, a vida boa —, o que você tem? A democracia é ameaçada. Por que ela é ameaçada o tempo inteiro por essa situação? Porque essas pessoas são muito vulneráveis e podem ser capturadas por demagogos de todos os tipos, religiosos como pastores, não religiosos, políticos inescrupulosos. E a democracia pode ser até morta, até desaparecer.

Nós colocamos que é um dilema e um desafio. A democracia, para ela ser forte, precisa de cidadãos fortes, com subjetividade, fortes politicamente, que tenham capacidade mínima de reflexão, de pensar. Mas quando o Estado não fornece essas condições, escola de qualidade, transporte de qualidade e uma vida social de boa qualidade, o que eu espero? Eu espero passividade política e sujeição a todas as formas de dominação. E essas pessoas, nessas formas de dominação, conhecem muito bem a humilhação, o insulto, as ofensas, porque é negra, porque é pobre, porque não tem dentes etc.

Então, a dominação vem junto com a humilhação. Ela traz a humilhação. E uma pessoa humilhada é uma pessoa mais ou menos destituída, ela tem a sua subjetividade arrasada. Isso não sou só eu que estou dizendo, há estudos sobre isso. Aí é um campo fértil para a violência absolutamente vazia, a violência até de um contra o outro.

A relação é bastante estreita com a ameaça à democracia. A democracia, para ser bem realizada, tem que constar da vida democrática, de um bem-estar social mais generalizado. Eu digo que — aliás, é o Darcy Ribeiro quem disse pela primeira vez — escola pública de má qualidade não é por acaso, é um projeto político de dominação.

Entrevista Nota 10 — As políticas públicas, como a transferência de renda, têm ajudado a tirar uma parte da população dessa pobreza extrema, mas ainda recebem muitas críticas. Qual a sua visão sobre essas ações governamentais? Esses auxílios são suficientes para dar dignidade e promover transformações sociais significativas e, principalmente, permanentes na nossa sociedade?

Walquiria Leão Rego — Olha, as críticas, precisa ver de onde vêm. Vêm da classe média, normalmente da classe média alta. Vêm dos preconceitos terríveis que essa classe média tem. O horror ao pobre é antigo no Brasil. Não se desenvolveu no Brasil o que, já desde a Revolução Francesa, se chama paixão pela compaixão. Pelo contrário, se desenvolveu aqui paixão de ódio. Ódio ao pobre. E essa classe também não quer acabar com a pobreza, ela quer que o pobre continue se sujeitando a baixíssimos salários. De preferência, gostaria ainda que a escravidão fosse mantida, tem uma visão escravocrata. Eu não levo a sério essas críticas. Acho que nós não devemos levar a sério. Preconceito nós temos que lutar para eliminá-lo. Ele é nocivo, é um mal à sociedade.

Bem, as políticas que foram desenvolvidas até agora, claro que elas foram muito importantes e são muito importantes. Salvaram vidas, muitas vidas foram salvas. Basta ver a mortalidade infantil como diminuiu. Algumas doenças foram quase erradicadas. Basta olhar as pesquisas que os médicos que estudam fizeram. Na Fiocruz, por exemplo, ou em outros lugares que eu posso não estar sabendo. Então, você tem garantido com elas uma coisa fundamental, o direito à vida. Quando você não dá nem isso, nem o direito à vida está assegurado.

Essas políticas são muito importantes. São insuficientes? Claro que são insuficientes, porque era preciso, ainda é preciso fazer muito mais coisas. Mas veja que a primeira coisa que o golpe fez derrubando a Dilma foi fazer o quê? O que fez o Temer? Cortar a Bolsa Família, cortar o Benefício de Prestação Continuada, cortar o programa de cisternas — pensa, cortar a feitura de cisternas! Veja se não é olhar para o outro com ódio. Se não for ódio, é uma indiferença. Execrável. São seres execráveis que têm esse ódio.

Então, você tem aí crítica de quem tem muito preconceito e de quem sequer tem instrução, tem cultura, tem conhecimento para ver as transformações que ocorreram no Brasil. O Brasil não é o mesmo mesmo. Você vê na universidade que eu estudei e na de hoje a quantidade de pessoas negras ou pobres que vêm da escola pública que estão na universidade. Isso não existia no meu tempo de universidade. Os professores estrangeiros vinham para cá e olhavam as classes e diziam "mas escuta, eu li, eu vi a estatística de que a maioria da população é parda ou preta e onde eles estão?". E nós não sabíamos responder.

Eu me lembro que o Michel Foucault, quando ele esteve no Brasil dando curso na USP, eu era aluna e lembro, ele fez essa pergunta: "Ué, mas cadê os pardos que são a maioria?". E achávamos que aquilo era natural, era natural alguém estudar na USP para uma certa origem social ou ir para qualquer universidade pública, principalmente.

Bom, então é isso. As críticas dessa gente não têm cabimento, não têm conhecimento. Uma coisa é você dizer, "olha, é talvez melhor fazer assim do que assado, talvez investir mais em certo tipo de lugar que é menos provido de recursos". Você pode corrigir, vai ajustando, mas as críticas normalmente são do tipo preconceito social. Aí não dá para levar a sério uma madame que foi para a avenida Paulista botar um cartaz dizendo que é contra a PEC das domésticas. Ela quer escravos, ela não quer formar cidadãos.

Entrevista Nota 10 — No livro "Vozes do Bolsa Família", de 2014, você e Alessandro Pinzani trouxeram a visibilidade a casos de pessoas que são esquecidas pelo sistema. Quais as similaridades e diferenças entre essa primeira obra e o título que vocês estão lançando agora, o "Vidas Roubadas"? Pode falar sobre o que trata esse novo livro?

Walquiria Leão Rego — No Vozes, nós tínhamos uma questão muito clara. Nós queríamos mostrar, e acho que demonstramos e comprovamos, que a renda monetária regular é a melhor forma de construir uma subjetividade menos oprimida e a melhor forma de se dar alguma autonomia a essas pessoas, algum horizonte para elas.

Minhas pesquisas são muito longas em anos, fazemos cinco anos de pesquisa. Nós já pudemos perceber que as gerações estavam mudando. As meninas já não queriam viver como a mãe viveu, como a avó viveu. Aquele círculo, chamado círculo vicioso da pobreza, começava a se romper. Meninas me diziam "Não, eu quero ser médica, eu quero ser engenheira. Eu não quero ter a vida da minha mãe, da minha avó, da minha bisavó". Isso foi o Vozes.

Trouxemos essas vozes para o livro para provar [a importância da] renda monetária. As pessoas achavam, até então, que bastava ir lá da cesta básica. Elas escolhiam o que as pessoas iam comer, não que as pessoas iam ter o direito de aprender a escolher, porque a escolha é um aprendizado, nós vamos aprendendo a escolher. E nós mostramos isso no primeiro livro, que a renda monetária regular dá essa possibilidade, ela tem essa potência.

No segundo livro, nós quisemos enfatizar o papel do sofrimento social no roubo da vida das pessoas. Elas não têm tempo de brincar, não têm infância porque trabalham o dia inteiro, não têm adolescência. Então, há uma expropriação da vida da pessoa. A pobreza, mesmo com os programas, ainda falta tanta coisa para ser feita, porque as pessoas ainda sofrem muito. Nesse Brasil profundo ainda há muito sofrimento social. Não só no Brasil profundo. Eu estou indo aqui na hiperperiferia de São Paulo, ainda que seja uma situação bem diferente, mas ainda você vê muito sofrimento. Muita violência de Estado, a polícia matando meninos pobres, porque são pretos. Há um grande medo, um medo social muito grande no Brasil e há um sofrimento.

Nós queríamos enfatizar essa questão, o sofrimento social, aquele que pode ser evitado. E trazer ao conhecimento das pessoas, não que elas não soubessem, [a necessidade] de aprofundar mais essa visão que às vezes temos, de que basta tal coisa que já está bom para os pobres. Não. Nós tínhamos que ter políticas públicas e culturais muito específicas para trabalhar o grande sentimento — porque a pobreza é um sentimento também. Isso é uma coisa importante, ela é um sentimento —, para trabalhar esse sentimento de inferioridade de "eu não sou nada, eu não sirvo para nada".

Então, nós queríamos trazer e mostrar também que esse sofrimento social é paralisante também do sujeito. O sujeito torna-se muito passivo se ele é muito humilhado. Ou muito violento. É sempre assim, sempre essa dualidade, como eu falei do Janus. Tem um autor famoso da Universidade de Jerusalém, Avishai Margalit, que escreveu um livro chamado “A Sociedade Decente”. E quando perguntaram para ele “Mas por que você deu esse nome de sociedade decente e não sociedade civilizada?”. Ele respondeu: “A sociedade civilizada não garante que as instituições não humilhem o seu cidadão. E uma sociedade decente é aquela que não humilha o seu cidadão”. As instituições não humilham, porque a humilhação é um sentimento, é uma ação terrível. E cria um sentimento, muito, muito, muito negativo, muito devastador.

Nós também usamos a ideia de uma antropóloga indiana, que trabalhou um pouco o que ela chama de espaços de devastação. De devastação moral, de devastação psíquica. Aí você vai querer que esse cidadão seja o quê na vida? É disso que nós queríamos falar. Queríamos falar de que esses espaços de devastação e de sofrimento colocam milhões de brasileiros em situação de passividade política. Pode colocar. E a passividade política aí é de um sentido muito amplo. Não é que ela se resolve só na causa das eleições, é a não participação na vida comunitária, é não ser um cidadão ativo pela coisa pública. É totalmente fechado. Não consegue aparecer porque não tem a roupa adequada, tudo o que ele pensa sobre si mesmo, as concepções que ele tem sobre si mesmo.

Imagine uma pessoa ter vergonha de si mesmo. Esse é um sentimento que a humilhação e a pobreza extrema criam muito. E há estudos sobre isso. Um dos mais famosos é o da filósofa americana Martha Nussbaum, que estuda a vergonha de si mesmo. Não sorrir porque não tem dentes, botar a mão na frente para não mostrar a boca. Tudo isso nós sabemos que isso pode ser evitado. Nós estamos tendo experiências de políticas públicas que já melhoraram bastante, mas ainda falta muito. Muito.