seg, 7 outubro 2024 11:23
Não é brincadeira, é bullying
Combatido por lei, o bullying afeta a saúde mental das pessoas e prejudica o processo de formação de estudantes, sejam eles jovens ou adultos
Você provavelmente já presenciou colegas serem apelidados ou terem suas características físicas zombadas. Também já deve ter visto alguém específico ser alçado a alvo constante de piadas. Nada disso é brincadeira, e é preciso dar nome a um problema que ainda existe principalmente no ambiente educacional, das escolas às universidades.
Quando falamos de ações entre os pares para perseguir, agredir ou ridicularizar pessoas, estamos falando de bullying. A palavra vem do inglês e caracteriza a prática de agressão física, verbal e/ou psicológica sistemática e repetitiva contra uma ou mais pessoas. Mas se uma prática assim parte de alguém hierarquicamente superior, o nome muda para assédio.
“Os dois podem ter uma perspectiva de violência física ou de violência moral”, explica Marília Barreira, psicóloga e docente do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz. Estamos falando daquelas supostas “brincadeiras” que constrangem e ridicularizam o outro. Quando elas saem do ambiente real para o mundo virtual, ganham outro nome: cyberbullying.
Essas práticas precisam ser entendidas com a mesma seriedade dos impactos que carregam, afetando as vítimas psicologicamente. Os casos mais graves configuram como crimes passíveis de punição por reclusão e multa e, portanto, precisam deixar de ser vistos como “coisa de criança”. O problema está nas escolas, nas redes sociais, nas universidades, nos clubes e em uma infinidade de espaços sociais. Vamos compreendê-lo melhor e descobrir como combatê-lo?
Agressões deixam marcas e viram questão de saúde pública
“É muito fácil dizer que é coisa de criança e que não tem nada demais, quando na verdade tem. Está atingindo outra pessoa”, pontua Marília, mencionando impactos na autoestima da vítima como exemplo dos desdobramentos da prática. A docente defende que as pessoas precisam olhar para o bullying como uma questão séria e não uma brincadeira. “O bullying afeta diretamente a autoestima das pessoas e os processos de socialização”, diz.
Para ela, o problema deve ser visto como uma pauta de saúde pública porque é uma questão de saúde mental, que cada vez mais acontece em larga escala e traz inúmeros perigos. “Podemos falar da ocorrência de sintomas depressivos, da ocorrência de autolesão e de ação suicida em virtude das práticas do bullying”, alerta. Quando o problema ocorre na universidade, é possível trabalhar a autorresponsabilização dos alunos de uma outra forma por serem adultos.
“Não é só dizer que a pessoa não deveria fazer, mas propor espaços de reflexão para que a pessoa possa entender as repercussões daquilo que ela tem feito. E aí, sim, trabalhamos essa responsabilidade individual em cada um” — Marília Barreira, psicóloga e docente do curso de Psicologia da Unifor
Talvez as escolas sejam o lugar onde o problema é mais evidente. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, realizada pelo IBGE, mostra que 23% dos estudantes de 13 a 17 anos afirmaram ter sofrido bullying na escola no mês anterior à pesquisa. Em contrapartida, 12% dos alunos na mesma faixa etária assumiram ter praticado essa violência no mesmo período.
A docente acredita que o atendimento psicológico pode beneficiar tanto vítimas quanto agressores, já que, muitas vezes, as pessoas praticam bullying devido a baixa autoestima, dificuldade social ou mesmo necessidade de controle. É preciso vigiar e ficar atento para combatê-lo.
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Das repercussões jurídicas à importância de mediar os conflitos
Os casos mais comuns deste tipo de violência ocorrem por meio de ataques físicos, insultos pessoais, ameaças, comentários e apelidos pejorativos de forma contínua, uso de expressões preconceituosas e isolamento social consciente e premeditado.
O crescimento de episódios deste tipo, especialmente nas escolas, contribuiu diretamente para a necessidade de o sistema jurídico ser mais rigoroso e protetivo, considerando que os impactos psicológicos e sociais nas vítimas são profundos e refletem na formação das novas gerações.
Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Unifor, Mônica Mota Tassigny explica que o bullying é caracterizado pela Lei 13.185/15 como “intimidação sistemática”, referindo-se à conduta repetida de violência, seja física ou psicológica, com a intenção de intimidar ou agredir alguém sem motivo aparente, causando dor e angústia.
Neste ano, a legislação avançou. A tipificação dos crimes de bullying e cyberbullying no Brasil foi formalizada pela Lei 14.811, de janeiro de 2024. “[Isso] tem relevância social diante da violência no ambiente escolar e digital, com foco especial na proteção de crianças e adolescentes”, diz Mônica.
Isso porque a criminalização não só pune os praticantes, mas instiga que os casos sejam oficializados, gerando dados importantes para combater e prevenir a violência relacionada ao bullying e cyberbullying. As penas para quem pratica esses crimes variam de multa a até quatro anos de reclusão.
“É interessante atentar para o fato de que muitas práticas degradantes são transmutadas como brincadeiras. Ressalta-se, no entanto, que a brincadeira constitui uma atividade prazerosa que deve trazer divertimento, alegria e leveza para TODOS os envolvidos. O ponto de desvirtuamento da brincadeira está no desrespeito a algum dos pares envolvidos, virando não uma atividade colaborativa de divertimento, mas uma manifestação escrachante de poder, em que há opressores e oprimidos” — Mônica Tassigny, professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Unifor
Para além da possibilidade jurídica de reparação civil e de responsabilização criminal, a docente defende a importância de que haja o debate sobre a violência dentro do ambiente escolar. O projeto de pesquisa “Direito, Tecnologia e Arte na Prevenção de Bullying e Cyberbullying nas Escolas”, desenvolvido pela equipe dela na Unifor, resultou na elaboração de um aplicativo chamado SafeApp.
Em fase de teste em Escolas Públicas de Fortaleza, a ideia é enfrentar e prevenir o problema por meio da possibilidade de denúncias anônimas. Ficou curioso? Saiba mais informações sobre o projeto e sobre o problema em discussão pelo Instagram @falesobreoelefante ou pelo e-mail safeapp.rede@gmail.com.
Parte da equipe que criou o SafeApp, uma das vencedoras do 1º Hackathon Mundo Unifor de Impacto Social, em 2023 (Foto: Arquivo pessoal)
Coordenados por Mônica Tassigny, o estudo e a criação do SafeApp contou com a participação de diversos estudantes da Unifor: Bianca Mota, Mariana Távora, Leonardo Batista, João Pedro Sidou, Luciana Freire, Karen Dantas, Luisa Souto, Raquel Mota e Davi Mota.
A professora destaca que, em qualquer ambiente de ensino e aprendizagem, há a possibilidade de existência do conflito. “É preciso estimular o diálogo e a tolerância para que uma convivência harmoniosa entre diferentes grupos se estabeleça”, diz. Além disso, afirma, uma cultura de paz perpassa também pela escuta e a fala de todos os envolvidos, por meio de técnicas mediadoras.
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Impactos na formação e na experiência acadêmica
Ser zombado e humilhado repetidas vezes por conta de características físicas, raça, sexualidade, gênero ou quaisquer outros atributos pode afetar a saúde mental das vítimas e mesmo seu desempenho acadêmico, quando ocorre em ambientes de aprendizagem como a universidade. A intimidação sistemática ainda é recorrente nas salas de aula e afeta diretamente o processo de formação dos alunos, sejam eles jovens ou adultos.
Tanto o bullying quanto o assédio moral causam mal-estar emocional, intimidação e até mesmo a sensação de perseguição. “É possível ocorrer em qualquer ambiente. A responsabilidade de cada um para com o outro pede que sejamos mais empáticos e respeitosos em nossas relações sociais”, afirma a psicóloga e coordenadora do Programa de Apoio Psicopedagógico (PAP), Terezinha Joca.
Ela lembra que as características do cyberbullying são as mesmas do bullying, a diferença é que não há a violência física e as pessoas podem agir no anonimato. “Mas é tão prejudicial quanto o causado presencialmente”, ressalta. Para ela, as boas práticas para evitar estes problemas envolvem uma comunicação ética e respeitosa com as pessoas, não criar narrativas mentirosas e não entrar na vibe do cancelamento.
“Tanto o bullying como o assédio podem marcar a vida das pessoas que são vítimas, gerando medo, ansiedade, pânico, baixo rendimento acadêmico e distanciamento social, dentre outros sintomas que podem surgir” — Terezinha Joca, psicóloga e coordenadora do Programa de Apoio Psicopedagógico (PAP)
Na Unifor, o Programa acolhe o estudante em suas mais diversas demandas, seja psicológica ou psicopedagógica. O setor também trabalha com o processo de inclusão e acessibilidade da comunidade acadêmica. É, portanto, um local essencial para o aluno buscar caso identifique este tipo de prática na Universidade. Outro caminho possível é comunicar eventuais casos às coordenações dos cursos.
“O PAP realiza a escuta psicológica e presta apoio emocional ao estudante. No caso da necessidade de entrar em processo terapêutico, [o setor] faz a triagem e encaminha para o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA/NAMI) ou para a rede particular”, informa Terezinha.
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Conscientizar para não repetir
“A psicoterapia vai ajudar inclusive a reconhecer o bullying, porque às vezes pode parecer que é só uma brincadeira de mau gosto de um colega”, diz a psicóloga e responsável técnica do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) do Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Unifor, Raquel Barsi.
Ela lembra que este não é um problema restrito aos espaços educacionais, podendo ocorrer até mesmo no ambiente de trabalho. “E causa realmente um sofrimento psíquico muito grande. É como se fosse uma violência psicológica, por isso precisamos conscientizar essa pessoa de que aquilo ali não é normal, não é simples”, diz.
A ideia é que a psicoterapia ajude a vítima a reconhecer o problema e desenvolver formas de conseguir pedir socorro, seja com familiares, nas próprias instituições ou até mesmo na Justiça, a depender da gravidade dos casos. “Não conseguimos mudar necessariamente a sociedade, mas na psicoterapia, conseguimos fortalecer aquele sujeito para que ele consiga lidar melhor com essas questões”, aponta.
Para Raquel, a presença de psicólogos no ambiente educacional também é uma ferramenta valiosa para promover lugares mais seguros e saudáveis emocionalmente, conscientizando as pessoas sobre o respeito necessário na relação com os colegas.
“Acredito que quanto mais gente conscientizada de que o bullying é realmente algo que pode agredir e ferir bastante aquele indivíduo, menos as pessoas vão querer fazê-lo” — Raquel Barsi, psicóloga e responsável técnica do SPA/NAMI
O cuidado deve permear os ambientes reais e digitais, especialmente quando o cyberbullying pode tomar uma proporção gigantesca tanto nos impactos à vítima como nas consequências para os agressores.
Raquel conta que o SPA pode acolher pessoas vítimas de bullying ou assédio por meio do plantão psicológico ou de atendimento de psicoterapia. O primeiro atende, por ordem de chegada, crianças, adolescentes, adultos e idosos que estão com alguma emergência psicológica, passando por uma crise (pode ser inclusive por bullying). As senhas são distribuídas nos dias de atendimento: manhã e tarde das terças e manhãs de sexta.
Outra possibilidade de atendimento gratuito é através de agendamento de uma Unidade Básica de Saúde (UBS). “O NAMI tem convênio com a Prefeitura de Fortaleza, envia as vagas para eles e eles marcam os pacientes de acordo com a lista de espera. O paciente participa de uma triagem para ver se o atendimento será individual ou em grupo e inicia o processo psicoterapêutico”, explica Raquel.
Há ainda uma outra opção, que é o atendimento por meio da tarifa social ou do plano de saúde. Neste caso, é preciso ligar para o SPA para ver as vagas disponíveis e agendar.
Serviços
SPA - Serviço de Psicologia Aplicada
Funcionamento: segunda a sexta-feira, 7h30 às 11h30 e 13h às 20h | Sábado, 7h às 11h
Endereço: rua Desembargador Floriano Benevides, 221, bairro Edson Queiroz - ao lado do Fórum Clóvis Beviláqua | 2º andar do NAMI
Contatos: namispa@unifor.br | (85) 3477-3643 e 3477-3644 | (85) 9.9210-2924
PAP - Programa de Apoio Psicopedagógico
Funcionamento: segunda a sexta-feira, 7h30 às 12h e 13h30 às 19h
Local: Bloco N, sala 12 - campus da Universidade de Fortaleza
Contatos: (85) 3477-3399 | papunifor@gmail.com