Isenção do Imposto de Renda: entenda o projeto que reacende debate sobre justiça tributária no Brasil
seg, 13 outubro 2025 14:26
Isenção do Imposto de Renda: entenda o projeto que reacende debate sobre justiça tributária no Brasil
Especialistas analisam os impactos da proposta aprovada na Câmara dos Deputados que promete aliviar o bolso do trabalhador e ampliar a taxação sobre altas rendas

A recente aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei que isenta do Imposto de Renda (IR) a pessoas físicas com rendimentos de até R$ 5 mil mensais marca um novo capítulo no debate sobre justiça tributária no Brasil. A medida, que ainda tramita no Congresso Nacional, promete corrigir uma defasagem histórica da tabela do IR, aliviar o peso dos tributos sobre a classe média e transferir parte dessa carga para os detentores de grandes rendas.
Mas além de seus efeitos imediatos no bolso do trabalhador, a proposta reacende discussões profundas sobre arrecadação, responsabilidade fiscal e o modelo de tributação vigente no país. Segundo o advogado Francisco Jório Bezerra Martins, especialista em Direito e Processos Tributários e docente do curso de Direito da Universidade de Fortaleza — instituição mantida pela Fundação Edson Queiroz —, o projeto não tem alteração na Constituição, mas sim uma atualização da legislação do IR dentro do marco legal já existente.
Na prática, ele institui a isenção total para quem ganha até R$ 5.000,00 por mês e uma redução progressiva para quem recebe até R$ 7.000,00, criando uma faixa de transição. “É uma forma de corrigir a defasagem histórica da tabela, que penalizava o trabalhador por não acompanhar a inflação”, explica o professor. Essa correção representa “um alívio direto no orçamento das famílias e um estímulo à economia, pois devolve poder de compra à população”.
Um debate antigo sobre tributação igualitária
A discussão sobre a isenção para rendas mais baixas e a taxação das altas rendas não é nova. Desde a década de 1990, economistas e juristas apontam a necessidade de tornar o sistema mais progressivo, ou seja, quem ganha mais paga proporcionalmente mais.
No entanto, como lembra o professor Jório, “desde 1996, quando o Brasil isentou os lucros e dividendos recebidos por pessoas físicas, criou-se uma anomalia: a alta renda passou a pagar proporcionalmente menos imposto do que o trabalhador comum”. Essa distorção consolidou um sistema regressivo, onde a tributação incide fortemente sobre o consumo e os salários em vez da renda e do patrimônio.
Para o professor, a resistência à mudança vem de duas frentes: uma econômica, com setores que temem o impacto sobre investimentos, e outra política, ligada à influência de grupos que representam o topo da pirâmide de renda. “Qualquer proposta que mexe com o topo da pirâmide enfrenta barreiras, porque são grupos com grande capacidade de influência”, observa.
A atual proposta busca um caminho intermediário. Em vez de criar um novo imposto sobre grandes fortunas que exigiria uma lei complementar e quórum mais alto no Congresso, o texto aprovado propõe uma tributação mínima de 10% sobre lucros e dividendos distribuídos acima de 50 mil reais por mês. Segundo Jório, trata-se de “um passo pragmático em direção à progressividade tributária, sem romper com o sistema vigente”.
Impactos diretos no bolso do cidadão
Os efeitos da proposta serão sentidos de forma imediata pela população de menor renda. Para quem ganha até 5 mil reais, o desconto do Imposto de Renda simplesmente deixará de existir. Já os contribuintes com rendimentos superiores terão uma redução gradual. “O primeiro efeito é o aumento da renda líquida de milhões de trabalhadores”, explica Jório. “Isso se traduz em mais consumo, maior capacidade de poupança e dinamização da economia local”.
O contador Levy Guedes, professor do curso de Ciências Contábeis e coordenador do Núcleo de Prática Contábil e Fiscal (NAF) da Unifor, reforça essa perspectiva com números: “De acordo com o Ministério da Fazenda, somado aos 10 milhões já beneficiados pelas mudanças de 2023 e 2024, são cerca de 20 milhões de brasileiros que deixarão de pagar Imposto de Renda a partir de 2026”.
Ele exemplifica os ganhos individuais:
- Exemplo 1 > Motorista: um motorista que ganha R$ 3.650,66 por mês deixará de pagar cerca de R$ 1.058,72 por ano em imposto de renda.
- Exemplo 2 > Professora: uma professora, com salário mensal de R$ 4.867,77, terá uma economia anual de R$ 3.970,07.
- Exemplo 3 > Enfermeira: uma enfermeira que recebe R$ 6.260,00 mensais pagará R$ 1.821,95 a menos de imposto ao ano.
Mesmo que a medida represente um alívio para os trabalhadores, o projeto de lei impõe um desafio fiscal. Afinal, menos arrecadação significa menos recursos para o governo. O professor Jório pondera, no entanto, que o projeto foi desenhado com neutralidade fiscal: “A perda gerada pela isenção é compensada por novas fontes de arrecadação”.
De acordo com o Ministério da Fazenda, a isenção deve representar uma renúncia de cerca de R$ 25 bilhões em 2026, mas a tributação de altas rendas e lucros remetidos ao exterior deverá gerar mais de R$ 34 bilhões no mesmo período. “É um modelo que busca equilibrar justiça social e responsabilidade fiscal”, analisa o professor de Direito.
Para o professor Levy, a compensação é um ponto crucial. “O governo pretende equilibrar as contas com a tributação de 10% sobre lucros remetidos ao exterior e com a cobrança de imposto sobre rendimentos que antes não eram tributados”, explica o contador. Ele acredita que essa redistribuição pode, inclusive, estimular a reinversão de capital no país, já que os detentores de grandes fortunas “vão repensar antes de enviar recursos para fora”.
Microempreendedores e autônomos
Entre os principais beneficiados estão também os microempreendedores e trabalhadores autônomos, grupos que representam uma parcela expressiva da economia informal e de pequenos negócios. Segundo Levy, “os microempreendedores terão impacto positivo, mas em menor proporção que os autônomos, já que a realidade tributária é diferente”, explica.
No primeiro trimestre de 2025, os Microempreendedores Individuais (MEIs) corresponderam a 78% dos novos CNPJs registrados (Foto: Getty Images)
O professor lembra que o Microempreendedor Individual (MEI), possui um regime tributário próprio, com recolhimento simplificado, mas que pode se beneficiar ainda mais caso mantenha escrituração contábil. “Quem tem contabilidade regular pode usufruir da isenção total dos lucros com base no lucro contábil”, explica. Já os profissionais autônomos, sem esse respaldo, sentirão um impacto mais direto da medida, especialmente pelo aumento da renda líquida.
Mas o que seria a escrituração contábil? Ela consiste no registro e na organização de todas as operações financeiras e patrimoniais de uma empresa, de maneira sistemática e em ordem cronológica. Esse processo assegura a conformidade legal e a transparência, além de apoiar a tomada de decisões estratégicas e o cumprimento das obrigações fiscais.
Além disso, Levy vê a proposta como uma oportunidade para estimular a formalização de empregos e rendas autônomas. “Muito pelo contrário do que se teme, acredito que a medida vai incentivar a formalização, porque o cidadão perceberá vantagem real em declarar sua renda”, afirma.
Justiça tributária e cultura fiscal
Um dos pilares da proposta é o princípio da justiça tributária, previsto na Constituição Federal. O professor Jório destaca que o novo modelo reforça esse princípio ao fazer com que “cada um contribua conforme sua capacidade econômica, essa mudança torna o sistema mais progressivo, mais coerente com a Constituição e mais próximo dos padrões internacionais”. Ele ressalta ainda que o maior ganho pode não ser apenas econômico, mas simbólico.
“Quando o cidadão percebe que o sistema é justo, que quem ganha mais paga mais, ele passa a confiar mais no Estado, entende o papel do tributo e cobra melhor o uso do dinheiro público” — Jório Bezerra, especialista em Direito e Processo Tributário e docente do curso de Direito da Unifor
Levy também compartilha dessa visão. Segundo ele, a proposta “corrige uma injustiça estrutural e resgata a legitimidade do sistema tributário”. Para o coordenador do NAF, esse é um passo importante para mudar a relação entre Estado e sociedade, promovendo uma cultura fiscal mais consciente e participativa.
Um dos argumentos mais utilizados contra a taxação das grandes rendas é o de que os mais ricos deixariam o país. Jório, no entanto, classifica essa tese como “mais política do que técnica”.
Ele cita estudos do Observatório de Política Fiscal da Fundação Getulio Vargas (FGV), que mostram que países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com impostos sobre grandes fortunas, como Noruega e Suíça, conseguiram manter altos níveis de investimento e estabilidade econômica. “O problema não é tributar a riqueza, e sim desenhar o tributo de forma eficiente”, ressalta.
Contudo, a aprovação da proposta não substitui a reforma tributária em andamento, mas a complementa. Enquanto a reforma trata da unificação de impostos sobre consumo, o projeto do Imposto de Renda lida com a renda e o patrimônio. “São frentes distintas, mas que se conversam”, explica o advogado. “Uma reforma só é completa quando corrige as distorções tanto no consumo quanto na renda”.
Para Levy, essa integração é fundamental para promover um sistema mais equilibrado. “Com a classe média tendo mais poder de compra, há um estímulo direto à economia, especialmente para micro e pequenas empresas. Isso retroalimenta a arrecadação e fortalece o ciclo econômico”, observa o contador.
Um passo em direção à equidade fiscal
A isenção para rendas até R$ 5.000,00 representa, segundo ambos os especialistas, um avanço significativo na direção de um sistema tributário mais justo e racional. Ainda que dependa de aprovação final no Senado e de ajustes na execução, o projeto aponta para uma nova forma de equilibrar as contas públicas sem penalizar o trabalhador.
Nas palavras de Jório, “no fim das contas, talvez o maior legado dessa proposta seja justamente esse: mudar a cultura fiscal e fazer o cidadão enxergar o tributo como instrumento de justiça, não de punição”. Já Levy conclui com uma visão otimista sobre o futuro.
“A classe média vai ter mais condições de consumir, o que aquece a economia e gera emprego. Mas é importante que outras medidas também surjam, voltadas a fortalecer micro e pequenas empresas, para que o país avance de forma sustentável e equilibrada” — Levy Guedes, coordenador do Núcleo de Prática Contábil e Fiscal e docente do curso de Ciências Contábeis da Unifor