O canto torto de Belchior : conheça 4 músicas do artista com referências literárias
Outubro é um mês especial para a cultura nordestina: além de ser o mês de comemoração ao dia do nordestino, dia 08, também é o mês do aniversário do artista cearense Belchior. O cantor faria 75 anos no próximo dia 26.
Nascido em Sobral, Antônio Carlos Belchior sempre foi estudante da vida que queria dar. Estudou canto e piano na infância, foi estudante do Liceu do Ceará, seminarista franciscano no mosteiro de Guaramiranga e estudante de medicina na Universidade Federal do Ceará. A complexidade de suas experiências o levou ao fascinante e inusitado destino de ser um dos principais letristas da música popular brasileira.

Apaixonado por filosofia, letras e artes em geral, Belchior imprimiu bem nas suas obras suas influências. De Carlos Drummond de Andrade, passando por Edgar Allan Poe e Dante Alighieri, o eu-lírico migrante nordestino canta a cultura popular parafraseando clássicos literários, numa ode à vida do homem comum, às pessoas cinzas, normais que, talvez, tenham histórias iguais à sua.
A seguir, confira algumas das canções de Belchior com importantes referências literárias e conheça um pouco mais sobre a obra do nosso rapaz latino-americano.
1 — A Palo Seco (Belchior, 1974)
A canção traz uma forte mensagem anti-imperialista, exaltando a latinidade, sobretudo, da América do Sul, em tempos de forte período de repressão militar. “A palo seco” é uma expressão espanhola que significa “franco, direto, sem rodeios” e é título do poema do pernambucano João Cabral de Melo Neto. Segundo Andrade e Lima (2021, p. 2015): “No poema cabralino, a palo seco 'não é um cante a esmo: exige ser cantado com todo o ser aberto', o cante está ligado ao ser, à projeção, à representação da dor, do sofrimento, da distopia, do cante cantado sob sol a pino, intimamente ligado ao ser, ao processo de emancipação, de libertação e criação”.
"O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua".
(João Cabral de Melo Neto)
Belchior se apropria do cante de Cabral para gritar o desespero de uma juventude sem perspectivas numa época sombria da história da América Latina. “A palo seco” de Belchior é o grito urgente, agoniado, “torto feito faca”, de alguém que observa consciente e aflito a realidade, no meio de tanta apatia coletiva.
2 — Velha roupa colorida (Alucinação, 1976)
Uma das mais conhecidas canções de Belchior. A letra traz a eterna dicotomia entra o velho e o novo, e a necessidade natural de que tudo se renove para a plenitude das coisas. Na canção, Belchior faz menção aos diferentes significados de pássaros-pretos na cultura pop: "The Raven", de Edgar Allan Poe; "Blackbird", dos Beatles, e; "Assum Preto", de Luiz Gonzaga.
"The Raven" ou "O Corvo", em português, é um dos poemas mais famosos do poeta americano Edgar Allan Poe. Nele, o corvo é um mensageiro sombrio que anuncia que a amada do eu-lírico não voltará nunca mais, enquanto repete “nevermore” a cada questionamento deste.
Em “Blackbird”, canção atribuída a John Lennon e Paul McCartney, o pássaro negro simboliza a luta contra a segregação racial nos Estados Unidos.
E a canção “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga e Renato Teixeira, conta a história da lenda cearense do assum preto, a qual se furara os olhos do pássaro para que, pelo sofrimento, cantasse melhor.
Os três pássaros-pretos são citados na mesma estrofe, enquanto o eu-lírico revive o personagem do poema "The Raven", ao questionar sobre seu destino:
“Como Poe, poeta louco americano / Eu pergunto ao passarinho / Blackbird, assum preto, o que se faz? /Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven /Assum preto, pássaro preto, blackbird, me responde: Tudo já ficou atrás / Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven / Blackbird, assum preto, pássaro preto, me responde: O passado nunca mais”.
3 — Divina Comédia Humana (Coração Selvagem, 1977)
A música dialoga com o poema épico do italiano Dante Alighieri, "Divina Comédia". O poema é dividido em três partes: “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”. De acordo com Souza e Silva (2019, p. 8), as referências estão implícitas da seguinte maneira:
“Inferno: ‘Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol’, este verso inicial faz uma tradução do que seria os tormentos infernais, principalmente com a palavra “angustiado” [...] porque o tormento que é narrado por Dante, no início da obra dele, recai também na canção, cujo discurso do narrador se encontra atormentado, martirizado em um afã infernal íntimo, configurando-se como uma intertextualidade implícita;
Purgatório: ‘Aí um analista amigo meu disse que desse jeito, não vou ser feliz direito/ Porque o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual’. Já nestes versos, observamos que a palavra ‘analista’ seria uma metáfora para o ‘purgatório’ [...] em outros termos, seria a análise de consciência que o narrador tem de fazer para a expiação de suas faltas cometidas;
Paraíso: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso, eu vos direi, no entanto: / Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não, eu canto.” Esses últimos versos [...] Belchior dialoga com o texto de Alighieri [...] sobretudo com a palavra “estrelas” para relacioná-la com o “paraíso”, novamente de modo sutil e implícito [...]. Em suma, metaforicamente ele termina a letra da canção com as palavras “eu canto”, ou seja, alegra-se, festeja, fica feliz: celebra a ascensão ao paraíso, aos céus".
Os dois primeiros versos desta estrofe são do “Soneto VIII” do poeta parnasiano Olavo Bilac:
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…”
4 — Populus (Coração Selvagem, 1977)
A canção traz uma crítica social onde retrata como a classe operária (populus = povo em latim) é vista como “cães” pela burguesia. Na canção, Populus é “um escravo indiferente que trabalha / e por presente / tem migalhas sobre o chão”. A figura de Populus é a de um ser impotente na inércia das relações de poderes as quais já foram submetidos seus antepassados e que, não importa o quanto ele espume, tudo será em vão. A letra cita o poema de Carlos Drummond de Andrade, “Congresso Internacional do Medo” para se referir ao fim de Populus:
“[...] cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.
O poema também é referência para a canção “Pequeno Mapa do Tempo”, do mesmo álbum.
“Populus”, que deveria ter sido lançada em 1976, foi censurada pela ditadura militar.
Referências
ALENCAR, R. B.; LIMA, S. A. O. A palo seco: cante e vida, João Cabral e Belchior. Macabéa, [s.l], v. 10, n. 5, jul./set. 2021. 211 - 223.
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D’ANGELO, L. B. 10 músicas de Belchior que fazem referência a clássicos da literatura. Notaterapia, [s.l], 02 maio 2017. Disponível em: https://notaterapia.com.br/2017/05/02/10-musicas-de-belchior-que-fazem-referencia-a-classicos-da-literatura/. Acesso em: 08 out. 2021.
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MEDEIROS, J. O claustro: o relato dos três anos em que Belchior viveu em um mosteiro. Revista Piauí, São Paulo, 02 maio 2017. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/o-claustro/. Acesso em: 08 out. 2021.
RODRIGUES, T. Belchior na Divina Comédia de Dante. HH Magazine: humanidades em rede, [s.l], 22 nov. 2018. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/belchior-na-divina-comedia-de-dante/. Acesso em: 08 out. 2021.
SANTOS, L. M. S. A divina comédia de um rapaz latino-americano: a influência da literatura na obra de Belchior. Revista Crioula, São Paulo, v. 26, n. 1, 2020, p. 95 - 106. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/177234. Acesso em: 08 out. 2021.
SILVEIRA, M. P. O significador de Blackbird, clássico dos Beatles. Letras, [s.l], 4 jun. 2020. Disponível em: https://www.letras.mus.br/blog/blackbird-significado/. Acesso em: 08 out. 2021.
SOUZA, E. R.; SILVA, U. C. C. A intertextualidade nas canções da MPB: o conhecimento que canta e dança. CONEDU, [s.l], 2019. Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/editora/ebooks/conedu/2019/ebook2/PROPOSTA_EV127_MD4_ID13469_25092019090715.pdf. Acesso em: 08 out. 2021.
Thailana Tavares — Bibliotecária do Setor de Processamento Técnico