seg, 23 maio 2022 19:07
Entrevista Nota 10: Adriana Pires e o diálogo entre saúde e arte
Professora do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza e doutora em oncologia, Adriana Pires busca aliar sua área profissional à sensibilidade presente no exercício das artes
Médica, bailarina e escritora são algumas das posições profissionais mais respondidas pelas crianças à pergunta “O que você quer ser quando crescer?”. Adriana Pires, professora do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, honrou sua criança interior e tornou-se as três.
Doutora em oncologia pelo A.C.Camargo Cancer Center, a docente alimenta desde cedo um fascínio por conectar-se com o outro; seja ao cuidar de sua saúde, seja pela sensibilidade do fazer artístico e de contar histórias. Servidora pública do Hospital Geral de Fortaleza, ela concilia seu trabalho acadêmico e profissional com aulas de balé clássico e a escrita de poesia.
Neste semestre, Adriana lançou a obra “Poesia Para Mães Cansadas” que, de acordo com ela, nasceu durante uma caminhada pelo Campus Mais Lindo e tem inspiração nas vivências felizes e desafiadoras com as duas filhas, Júlia e Isadora, e com sua própria mãe, Socorro. Na conversa com o Entrevista Nota 10, ela fala sobre a importância de aproximar-se da arte para ser capaz de realizar um atendimento mais humano e empático na área da saúde.
Leia na íntegra:
Entrevista Nota 10 - Professora, poderia compartilhar conosco detalhes de como sua trajetória na medicina teve início?
Adriana Pires - Desde criança, observei minha mãe cuidando de pessoas doentes de forma voluntária e sem nenhuma formação profissional, além de ter convivido com uma grave cardiopatia de meu pai. Isso me despertou o desejo de cuidar de vidas, bem como da saúde de meus pais. Cursei minha graduação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), morando longe da família desde os 17 anos.
Depois, fiz então clínica médica em Fortaleza e fiquei particularmente fascinada pelos pacientes oncológicos, suas histórias de vida, suas famílias. Vários deles carregam um grande sofrimento regado de resiliência, e que me motivou a buscar aliviar de alguma forma tantas dores. Segui para São Paulo no intuito de fazer minha formação em oncologia, no A.C.Camargo Cancer Center, depois cursei também doutorado na mesma área e sempre me sinto cada vez mais engajada em cuidar de pessoas com câncer, trazendo humanidade e ciência juntos.
Entrevista Nota 10 - O que a atraiu para a especialização em oncologia? Havia interesse nessa área desde o início da graduação?
Adriana Pires - A primeira paciente que atendi com câncer na Universidade me marcou muito. Uma garota de 15 anos com linfoma, e eu, com 19 anos, fiquei tocada com tamanho amadurecimento e coragem dela. Observei também que havia uma grande dificuldade por parte dos estudantes e médicos em lidar com o sofrimento, ocasionando afastamento e isolamento desses pacientes. Escutava a palavra “câncer” como uma sentença de morte e isso me incomodava e me motivava a fazer algo diferente. A partir do momento que passei a escutar as histórias de vida das pessoas que lidam com essa doença, percebi que havia sempre muito a fazer por elas, nem que fosse oferecer minhas mãos e ouvidos atentos.
Entrevista Nota 10 - Sabemos que, além da paixão pela área da saúde, a senhora nutre um interesse pelas artes, em especial por dança e literatura. Em sua opinião, como a conexão entre esses dois universos pode trazer bons frutos, seja para profissionais, acadêmicos ou pacientes?
Adriana Pires - Diz um aforismo médico que “quem só sabe medicina, nem medicina sabe” (frase de Abel Salazar). Cuidar de vidas não é cuidar de uma máquina, exige sensibilidade e escuta. Quando faço uma consulta, presto atenção na história de vida de cada pessoa, que pode até ter a mesma doença, mas o resultados, os desfechos, os impactos são completamente diferentes.
A arte permite você inicialmente conectar-se consigo mesmo, [e no meu caso] com a minha essência, abrindo um caminho para que eu possa me relacionar melhor com os outros. A dança, em especial o balé clássico, que fiz dos 10 aos 17 anos, e retornei após os 40 anos, além de manter minha saúde física em dia, permite melhorar minha concentração, foco e memória, bem como desafia meus limites físicos e até emocionais.
Como descrevo em uma de minhas poesias, chamada “Liberte-se”: “cuide da casa de dentro, que a casa de fora vem junto”. Além disso, a música clássica (especialmente Bach e Mozart), tocam profundamente minha alma. Quanto à literatura, vem também desde a adolescência, período em que tive como autores preferidos Machado de Assis e Fernando Pessoa. A literatura melhora meu vocabulário, minha criatividade e até o meu raciocínio clínico.
Entrevista Nota 10 - Qual a inspiração por trás de seu livro “Poesia Para Mães Cansadas”, lançado neste semestre?
Adriana Pires - As minhas inspirações vêm do meu lar, primeiramente com minha mãe Socorro, uma mãe cansada que criou três filhos no tempo das fraldas de pano, e que hoje é mais minha filha do que mãe. Tem Alzheimer e está vivendo a maternidade como uma fita cassete sendo rebobinada de volta ao ventre. E minha filhas Júlia e Isadora, que enchem meus dias de alegria e exercício da paciência e resiliência, [nos quais sou] sempre apoiada pelo meu esposo Ralph.
Mas o começo da história do livro foi nas minhas andanças no campus da Unifor (#ocampusmaislindo). Em um dia de grande cansaço, passei a observar quanta beleza eu via ao meu redor e, muitas vezes, embotada por tantas atividades, não enxergava. Olhando para uma das estátuas belíssimas que temos aqui, veio a ideia de escrever poesia para mães cansadas, como eu e muitas que conheço. Aos poucos, fui juntando as experiências divertidas de ser mãe, mas também as dores e desafios de seguir muitas vezes solitária no ato de “maternar”. Vejo poesia “nos olhos cansados de quem tem pressa de nunca chegar”. As mães precisam muito de apoio, de cuidado e de afeto.
Entrevista Nota 10 - Por que escrever poesia? Há algum fascínio pessoal por trás desse gênero literário?
Adriana Pires - Escrevia poesias desde os sete anos, quase na mesma época que aprendi a escrever. E, após entrar na Universidade e seguir a carreira de médica e as outras atribuições posteriores (professora, mãe, dona de casa), parei de escrever. Durante a pandemia, um aluno me presenteou com uma poesia e veio um estalo para voltar a escrever. Sempre admirei as rimas, o cordel, e a forma poética de enxergar o mundo “nem sempre bom ou bonito”, como digo em um de meus poemas, chamado “Mulher”. Passei a colocar quase diariamente uma leitura de poesia e escrever versos sobre vida cotidiana de mãe, dona de casa, esposa, professora e médica.
Entrevista Nota 10 - Quais palavras gostaria de deixar para os estudantes de saúde que também buscam encontrar-se de outras formas nas artes?
Adriana Pires - Viver é uma arte. Pessoas não são aparelhos que funcionam a partir de algoritmos pré-estabelecidos. Para cuidar de vidas, faz-se necessário um olhar livre, respeitoso e amoroso. Exige escuta e coração aberto. Aproximar-se da arte, independente de qual seja, também aproxima as pessoas de sua essência divina. Permite o exercício do autoamor e compaixão consigo mesmo, de forma que prepara você para lidar com mais empatia com a dor do outro. Especialmente na área da saúde, essa sensibilidade é um diferencial para o melhor cuidado.