Entrevista Nota 10: Maged Elgebaly e a tradução como caminho para a internacionalização

seg, 18 novembro 2024 18:01

Entrevista Nota 10: Maged Elgebaly e a tradução como caminho para a internacionalização

Tradutor e professor da Universidade de Assuã, no Egito, fala sobre o papel da tradução na construção de pontes culturais entre diferentes nações


Maged Elgebaly possui doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (Foto: Duda Barroso)
Maged Elgebaly possui doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (Foto: Duda Barroso)

De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra “tradução” significa “técnica que consiste em traduzir palavra, enunciado, texto, obra etc. falado ou escrito, de uma língua para outra, possibilitando sua compreensão por alguém que não conhece ou não domina a língua em que originalmente o enunciado foi emitido”. 

Entretanto, a tradução vai muito além do processo de decodificação de mensagens da língua de origem para a língua de destino. É uma prática antiga e uma atividade cognitiva de alta complexidade que serve para construir pontes entre nações e aproximar pessoas ao redor do mundo. 

É importante ressaltar que a tradução vai muito além do aspecto sintático ou lexical, e que requer muito mais do que fluência em dois idiomas. A tradução é uma atividade entre culturas. Assim, além de palavras, um bom tradutor traduz também o contexto e intenção por trás delas. 

“No sentido mais amplo, a tradução representa uma troca entre culturas. Então, [...] estamos sempre traduzindo, à medida que fazemos intercâmbios entre vários elementos”, afirma Maged Elgebaly, professor associado de literaturas de línguas portuguesa e espanhola na Universidade de Assuã, no Egito. 

O docente, que possui doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), esteve em Fortaleza para participar de reuniões no âmbito do G20 e aproveitou para visitar a Universidade de Fortaleza.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, o tradutor da versão árabe do livro “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, e membro do Comitê Nacional de Tradução do Ministério de Cultura do Egito, fala sobre o papel da tradução na construção de pontes culturais e o impacto da ferramenta no processo de internacionalização.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Como tradutor e membro do Comitê Nacional de Tradução no Egito, que impacto você acredita que as traduções da nossa literatura nacional têm tido na compreensão e apreciação mútua entre as culturas árabe e brasileira?  

Maged Elgebaly — Para começar, [é importante entendermos] as relações internacionais formais, entre os estados, e as relações internacionais informais, entre os povos. Hoje em dia, esse segundo tipo de relação é um campo emergente dentro do direito internacional, conhecido como “diplomacia popular”. Ela acontece por meio da educação e da tradução – especialmente a educação artística e literária, e, no caso da tradução, abrange a literatura e as artes em suas diferentes manifestações

Temos que entender a tradução da literatura e das artes brasileiras para o exterior como uma forma de “poder” para o país. No campo das relações internacionais, fala-se muito de soft power e hard power. Entre os dois, existe um termo muito utilizado atualmente, chamado “estratégia”. 

Dentro dessa estratégia, existe o conceito de smart power. O smart power é a combinação entre a sociedade civil, que é uma empresa privada, e o Estado, que, nesse contexto, tem o poder cultural e educativo das instituições de ensino. Articular esses atores para trabalharem juntos, utilizando estratégias internacionais, resulta no chamado smart power.

A tradução é um dos mecanismos que compõem esse tipo de "poder". A palavra para "tradução" em árabe é “Tarjama”, que possui dois sentidos: além de significar "traduzir", refere-se também ao ato de passar um elemento, uma “célula” para outra, possibilitando sua sobrevivência em momentos de crise. Tradução também é “escrever a vida”, ou passar a vida a vários códigos. Nesse sentido mais amplo, a tradução representa uma troca entre culturas.

Então, entendendo a tradução de forma mais abrangente, estamos sempre traduzindo – o tempo todo –, à medida que fazemos intercâmbios entre vários elementos. Nas nossas iniciativas de internacionalização, é sempre um grande desafio o diálogo entre o elemento local e o elemento internacional. Você tem um elemento local que tem que dialogar com o internacional para manter a força da cultura. E quem faz isso? É o sujeito cultural, formado em nossas universidades. 

Entrevista Nota 10 — E qual é o papel da tradução na construção de pontes culturais entre o Brasil e os países árabes, principalmente o Egito? 

Maged Elgebaly — Se entendermos a tradução em seu sentido mais amplo, e não apenas literal, como nas traduções de livros, textos escritos, documentos, ou tradução simultânea, estaremos realizando o que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chama de "tradução como transferência de saber" – uma transferência de tecnologia de um lugar para outro. 

Nossos países são muito ricos, e o potencial da sabedoria popular é imenso, mas essa vasta sabedoria popular ainda não foi traduzida para a linguagem científica e cultural da elite. Como, então, fazer essa transferência de sabedoria e tecnologia para responder a problemas locais?

Quando cheguei pela primeira vez à América do Sul, me chamou a atenção as fortes semelhanças entre nossos povos, o egípcio e o brasileiro, e sempre me perguntava: será que essa semelhança se deve a uma história comum ou a condições socioeconômicas parecidas? Depois, percebi que condições socioeconômicas parecidas podem produzir [comportamentos semelhantes]. Assim, comecei a ver o jeito informal brasileiro como muito próximo do jeito informal egípcio, diferente, por exemplo, da formalidade de países como a Inglaterra.

Essas semelhanças fazem com que, muitas vezes, esses mesmos sujeitos que têm formas parecidas, tenham problemas parecidos. E, quando temos problemas parecidos, vamos usar as estratégias da arte, cultura e criatividade para solucioná-los. Muitas vezes, o problema que o Egito enfrenta agora pode ter uma resposta no Ceará e vice-versa.

Por isso, vemos a importância de entender que a internacionalização também precisa ter um fluxo entre [países do Sul Global]. Os países do Hemisfério Sul compartilham experiências históricas e econômicas parecidas, enfrentam problemas parecidos e têm desafios em comum. Isso não significa que, no processo de internacionalização, vamos excluir o Norte, mas sim integrar o Sul, buscando soluções parecidas para os problemas compartilhados. 

Por quê? Porque muitas vezes os intercâmbios se concentram apenas nos grandes centros – Nova York, Paris – e são as mesmas soluções que já ouvimos em aulas em todas as universidades. Mas, se venho para o Ceará, escuto um discurso que nunca ouvirei em Paris. Se você chegar a Assuã ou ao Cairo, você verá o seu país com outro olhar. 

Aqui, a tradução, como experiência de intercâmbio e internacionalização, se torna também uma busca contínua de tradução de soluções: soluções nas ciências sociais, ciências naturais e ciências exatas. Para os problemas que enfrentamos, utilizamos, o tempo todo, dois mecanismos: a interculturalidade e a interdisciplinaridade.

Entrevista Nota 10 — O senhor mencionou o papel da interculturalidade e da interdisciplinaridade como mecanismos essenciais para lidar com desafios globais. Poderia explicar um pouco mais sobre?

Maged Elgebaly — Estamos constantemente lidando com interculturas, pois ninguém hoje representa uma cultura “pura”, mas sim uma mistura de culturas – e isso é a interculturalidade. Estamos, ainda, sempre buscando soluções e formando diálogos entre diferentes áreas para pesquisa. Nesse contexto, a tradução vai além da questão literal de traduzir textos. É uma tradução de experiências entre diferentes áreas do conhecimento.

Muitas vezes, vejo o modelo de conhecimento dentro da área de direito sendo abordado na área linguística, na literatura, na comunicação social ou na biologia, mas com linguagens diferentes. Então, o que você faz na interdisciplinaridade é entender como traduzir entre essas diferentes áreas. Esse é o segundo mecanismo que utilizamos hoje em dia para fazer da tradução uma ferramenta efetiva para responder aos problemas que temos hoje. 

As mudanças climáticas, por exemplo, que achávamos estar distantes, de repente estão afetando pessoas no Rio Grande do Sul, e ninguém sabe onde [essas mudanças] vão impactar a seguir. Isso significa que precisamos começar a dialogar para ver o que fazem aqui e o que fazem lá. No Egito, temos rios; aqui, vocês têm rios. O que os egípcios fazem para lidar com enchentes nos rios? 

A tradução é um jeito inteligente de resolver problemas, em vez de [recorrer a] guerras e conflitos. A tradução é, também, um dos mecanismos de construção da paz. 

Entrevista Nota 10 — Como você enxerga a influência da tradução nas dinâmicas entre diferentes culturas e nações?

Maged Elgebaly — Primeiro, ao falar sobre internacionalização e tradução, eu não gosto muito da palavra ‘influência'. Um dos modelos do século XIX na internacionalização universitária falava muito de influência. Hoje, o termo que se usa cada vez mais é ‘interação’, porque influência dá a entender que você tem um projeto colonial e está vindo para influenciar o outro – o que remete aos modelos coloniais dos séculos XIX e XX. 

O que estamos buscando são interações. E, quando falo de interação nas relações internacionais, faço isso em dois sentidos: o modelo da reciprocidade e o modelo de solidariedade. Se estamos lidando com países africanos, que têm poucos recursos para a internacionalização, mas com quem é essencial cooperar em termos de conhecimento e história, então recorremos não à reciprocidade, mas à solidariedade.

Já ao trabalhar com países como os Estados Unidos ou nações européias, é necessário ter reciprocidade. Se operarmos o tempo todo com reciprocidade, vamos excluir a Ásia, a América do Sul e a África da internacionalização. Então, temos que equilibrar o tempo todo esses dois modelos. 

Entrevista Nota 10 — Durante a estadia no Ceará, você visitou a Biblioteca de Acervos Especiais da Unifor. Como professor universitário, de que maneira você enxerga a relevância dessas obras para o público? Além disso, há possibilidades de fortalecer intercâmbios culturais entre o Brasil e o Egito, talvez levando o estudo da literatura brasileira para o Egito ou promovendo o ensino da literatura e da língua árabe no Brasil?

Maged Elgebaly — O acervo que a Universidade de Fortaleza tem é realmente muito admirável e coloca a instituição, em termos de pesquisa histórica e social, como guardiã ativa da memória cultural do Nordeste. 

Na Universidade de Assuã, podemos oferecer, em parceria com a Unifor, cursos novos online de extensão, como sobre língua árabe e história do antigo Egito. Podemos também começar palestras gratuitas nos temas de interesse, como literatura da imigração árabe no Brasil.