seg, 8 setembro 2025 11:44
Do PCC à Faria Lima: como o crime organizado se infiltrou na economia formal do Brasil?
Facções criminosas exploram brechas legais, o setor de combustíveis e a digitalização financeira para lavar bilhões, um desafio que põe à prova a legislação, a fiscalização e a confiança nos mercados formais

Postos de combustíveis movimentando milhões em dinheiro vivo, fintechs surgindo como alternativas ágeis aos bancos tradicionais e empresas de fachada desaparecendo na mesma velocidade em que surgem. O que parecia apenas inovação ou rotina de mercado escondeu, por anos, uma face sombria: a infiltração de organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), no coração da economia formal brasileira.
O fenômeno não é recente, mas ganhou novos contornos com a sofisticação tecnológica e regulatória dos últimos anos. A chamada Operação Carbono Oculto, deflagrada pela Polícia Federal (PF), revelou como as facções se aproveitam de brechas legais e fiscais para lavar bilhões, utilizando o setor de combustíveis e fintechs como plataformas privilegiadas.
Para entender como isso aconteceu e o que pode ser feito para evitar novas infiltrações, o Unifor Notícias Mobile, jornal institucional da Universidade de Fortaleza — instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz —, conversou com dois especialistas sobre os aspectos legais e regulatórios do problema, assim como os impactos macroeconômicos e setoriais dessa atuação criminosa.
A face jurídica das brechas
O especialista em Direito e Processos Tributários e professor do curso de Direito da Unifor, Giovani Magalhães, pontua que o Brasil possui um arcabouço jurídico robusto no combate à lavagem de dinheiro, consolidado pela Lei nº 9.613/98. Essa norma, ao longo dos anos, foi aprimorada para permitir investigações sem a necessidade de identificar previamente o crime antecedente. No entanto, a sofisticação das organizações criminosas trouxe novos desafios.
“O sistema jurídico brasileiro tem avançado significativamente no combate à lavagem de dinheiro, mas ainda enfrenta desafios. A velocidade da inovação tecnológica, como as fintechs, criou um vácuo regulatório que foi explorado”, explica o advogado.
Segundo ele, a principal fragilidade está na dificuldade de fiscalização. “A utilização de laranjas, empresas de fachada e a pulverização de transações menores dificulta o rastreamento. No caso das fintechs, a agilidade na abertura de contas e o menor rigor histórico nos processos de verificação (Conheça seu cliente) criaram um ambiente propício para o dinheiro ilícito circular sem despertar suspeitas”, exemplifica.
O setor de combustíveis, por sua vez, é apontado pelo professor como “um complexo concurso de crimes, incluindo organização criminosa, lavagem de dinheiro, crimes contra a ordem tributária e, possivelmente, gestão fraudulenta de instituição financeira”. Nesse ramo, a sonegação e a adulteração de produtos já são práticas comuns, o que aumenta a vulnerabilidade à lavagem de dinheiro por esses meios.
Giovani ainda alerta que a Operação Carbono Oculto expôs uma faceta ainda mais preocupante: a relação entre crime e política. “As notícias recentes sobre a Operação Carbono Oculto, por exemplo, mencionam que a politização do caso foi utilizada para justificar a aceleração da regulamentação das fintechs, indicando que o tema da lavagem de dinheiro pode ser instrumentalizado no debate político”, analisa o docente.
“A relação entre movimentos políticos e a facilitação de esquemas criminosos é complexa e multifacetada. Em alguns casos, pode ocorrer por meio da influência em processos regulatórios, quando a pressão política pode levar à criação de leis ou normas com brechas ou à não fiscalização adequada de setores específicos.” — Giovani Magalhães, professor do curso de Direito da Unifor e mestre em Direito Constitucional e Relações Econômicas
O financiamento de campanhas eleitorais por fontes ilícitas, aponta o advogado, também pode gerar um ciclo vicioso, onde políticos eleitos se sentem “obrigados” a retribuir favores, criando um ambiente de impunidade ou dificultando a atuação de órgãos de controle. “Além disso, a alocação de emendas parlamentares para regiões ou projetos específicos pode ser desviada para irrigar licitações fraudulentas, beneficiando empresas ligadas ao crime organizado”, pondera.
Economia sob risco
Se, do ponto de vista jurídico, a questão envolve brechas e fiscalização, na economia, os efeitos se espalham de forma silenciosa, mas devastadora. Para o economista Ricardo Aquino Coimbra, conselheiro e ex-presidente do Conselho Regional de Economia Ceará (Corecon-CE) e professor do curso de Ciências Econômicas da Unifor, a entrada de dinheiro ilícito na economia formal tem impacto direto na concorrência e na sustentabilidade dos setores.
“Quando o capital ilícito está camuflado em uma empresa, muitas vezes não é possível identificar de imediato. Ele atua como se fizesse parte das atividades normais do negócio. Só é possível perceber algo suspeito se forem encontrados indícios dentro dessa empresa que revelem a irregularidade” — Ricardo Coimbra, mestre em Economia e professor do curso de Ciências Econômicas da Unifor
Por isso, ele destaca que é fundamental haver acompanhamento e fiscalização constantes, pois somente dessa forma é possível identificar sinais de que algo pode não estar dentro da legalidade e, assim, diferenciar atividades regulares de possíveis práticas ilícitas.
No caso do setor de combustíveis, os efeitos já são perceptíveis. “Isso gera, sim, um impacto, porque provoca uma desconexão com a realidade e pode afetar o processo de concorrência entre empresas”, destaca o economista. Ele explica que, em muitos casos, empresas sem sustentabilidade no mercado acabam não conseguindo se manter justamente por estarem envolvidas nesse tipo de prática.
As fintechs, por sua vez, surgem como alvos fáceis para a lavagem de dinheiro. Essas empresas trouxeram avanços na agilidade e inclusão financeira, mas também expuseram fragilidades: a abertura de contas totalmente digitais, muitas vezes sem o rigor fiscal necessário, acabam criando brechas no sistema. Assim, a mesma tecnologia que moderniza o setor financeiro, pode também ser explorada pelo crime organizado.
Mas o que são fintechs? Essas empresas unem finanças e tecnologia para disponibilizar serviços financeiros digitais — como pagamentos, crédito, investimentos e gestão financeira — de maneira mais ágil, acessível e com custos reduzidos em comparação aos bancos tradicionais, geralmente sem a necessidade de agências físicas.
Ricardo lembra, no entanto, que o Brasil tem uma vantagem em relação a outros países da América Latina: um sistema financeiro altamente digitalizado e com forte capacidade de fiscalização. “Sistemas como o PIX, o Open Finance e o Drex, que é a nova moeda digital, [são] novas formas de facilitar o sistema financeiro, mas que paralelamente [se faz preciso] criar um mecanismo de combate a fraudes, corrupção e ilegalidades”, comenta.
Pix é o meio de pagamento rápido e fácil criado pelo Banco Central do Brasil (Foto: Getty Images)
Sobre os efeitos macroeconômicos, o economista destaca que é difícil mensurar exatamente quanto da lavagem impacta índices como inflação ou geração de empregos, mas reconhece os riscos. Dependendo do volume movimentado em um setor ou região, afirma ele, o impacto pode ser significativo, citando casos em que facções atuaram no mercado imobiliário de alto padrão em Fortaleza, o que provocou distorções nos preços e uma valorização artificial de determinadas áreas.
O alerta mais forte, no entanto, está na percepção internacional. “Se o volume movimentado for muito expressivo e causar reflexos relevantes na atividade econômica do país, de forma evidente, isso pode acabar gerando um mecanismo de repulsa em relação a investimentos no território nacional”, observa o docente.
Caminhos possíveis
Do ponto de vista jurídico, o professor Giovani reforça a necessidade de fortalecer a cooperação entre órgãos, como Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Polícia Federal, Ministério Público e Receita Federal. Ele também defende maior transparência na identificação do beneficiário final das empresas.
“O sigilo bancário é a regra, mas não é absoluto. Ele pode ser afastado em prol do interesse público na persecução penal, desde que observados os requisitos legais e constitucionais, garantindo que a privacidade não se torne um escudo para atividades criminosas”, considera.
Já o economista Ricardo enfatiza a importância de autonomia plena do Banco Central para fiscalizar e agir contra esquemas ilícitos: “A autoridade monetária, independente de qual seja o governo, deve ter autonomia plena para adotar as medidas que considerar mais importantes e necessárias a fim de prevenir e controlar o sistema financeiro contra fraudes ou práticas ilegais”.
Para Giovani, o desafio é conciliar inovação e controle. “Não podemos sufocar as fintechs, que trazem muitos benefícios à economia e aos consumidores. O caminho é uma regulamentação proporcional ao risco, uso de tecnologias de monitoramento (RegTech), ambientes de teste controlados (sandbox regulatório) e cooperação constante entre setor privado e governo”, enfatiza o especialista.
O caso, que vai “do PCC à Faria Lima”, é também sobre a capacidade do crime organizado de se sofisticar, explorar brechas legais e utilizar instrumentos modernos da economia formal para perpetuar seus lucros. Se, de um lado, há avanços importantes na legislação e fiscalização, do outro, ainda existem vulnerabilidades que precisam ser enfrentadas com urgência.
“Do ponto de vista jurídico, para blindar a economia formal contra a infiltração do crime organizado, seriam necessárias três frentes, o aprimoramento legislativo e regulatório, o fortalecimento da fiscalização e cooperação interinstitucional e o incentivo a programas de compliance e due diligence”, finaliza Giovani.