qui, 12 setembro 2019 14:58
Entrevista Nota 10: Camila Girão, viva a cidade viva!
A arte de traduzir vontades. É assim que a arquiteta e urbanista Camila Girão, que coordena o curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza, prefere ver e entender a carreira profissional que a levou, entre o mestrado e o doutorado, à pós-graduação em planejamento urbano. No centro de seu interesse, a vedete absoluta sempre foi a mesma: a cidade, esse organismo vivo e mutante, onde o individual e o coletivo se debatem e se retroalimentam para forjar, juntos, um lar comum.
Complexo e pungente, o desafio histórico dos arquitetos e urbanistas, que diz sobre as interseções possíveis entre espaço, tempo e modos de vida, tem na sala de aula seu primeiro laboratório. Assim, imperativo é tornar o ensino e a aprendizagem tão dinâmicos quanto as próprias cidades. Eis a razão de ser do novo projeto pedagógico do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unifor, que entra em vigor a partir de 2020 e convoca, desde já, a professora e coordenadora Camila Girão, bem como todo o corpo docente, a pensar a formação muito além das pranchetas, apostando, do primeiro ao último semestre, numa teoria aplicada à prática onde, partindo de problemas concretos, os estudantes se tornarão aptos a propor soluções criativas e factíveis para manter tesa a promessa de convivialidade entre semelhantes e diferentes.
Afinal, do que trata o planejamento urbano e quais seus mais prementes desafios?
O tema planejamento urbano é um papel em branco, ou seja, o campo está aberto, a contribuição possível é enorme. Diz respeito à luta diária da construção da cidade. E envolve uma sistemática para você entender um determinado cenário ou contexto, como ele está agora e como esse processo histórico me trouxe até ali. Dentro desse contexto de sempre olhar e redimensionar, o planejamento não é estanque, ele é flexível, alterável e pra isso tem que estar sistematicamente se retroalimentando, se avaliando. Um desafio grande porque necessita de investimento e de um compromisso geral, não só do poder público, mas de todos e todas que estão envolvidos dentro desse organismo vivo e complexo que é a cidade. Não se faz planejamento urbano dentro de uma sala cheia de técnicos, fora do chão. Planejamento exige sentir e viver a cidade, se colocar no lugar das pessoas, porque se está mexendo na vida delas. São decisões que envolvem um comprometimento técnico vinculado a um entendimento e tradução do que as pessoas querem e podem. Sempre extrair das pessoas. E isso exige sensibilidade. Portanto, a função dos arquitetos é traduzir essas vontades no espaço, levando em conta desde o ambiente interno até o sistema macroeconômico.
Como você avalia o planejamento urbano em Fortaleza? O que a cidade nos diz sobre isso e que experiências bem sucedidas podemos vislumbrar?
Há uma crítica do que a gente chama de planejamento urbano formal, que é o Plano Diretor, por exemplo, aquele que está lá no papel, escrito, desenhado, com metas e diretrizes que muitas vezes viram leis. Há uma critica diante desse planejamento formal frente ao planejamento cotidiano, porque as coisas mudam. Percebendo o planejamento de forma mais holística, diferente desses planos formalizados, que são importantes porque asseguram direitos, mas não se atendo a isso, desde o século 19 temos planos urbanos que tiveram maneiras diferentes de olhar para a cidade. Por exemplo, na década de 1980, diante daquela crise econômica profunda no Brasil, com inflação e desemprego, no Ceará adotou-se uma política de desenvolvimento diferenciada, que tinha a ver com a questão da industrialização, a partir de uma guerra fiscal entre estados, e um investimento na lógica do turismo. Em que medida isso influencia no planejamento da cidade? Total. A gente trabalhou com eixos estruturantes ao longo do litoral e isso fez com que várias cidades se desenvolvessem, fizessem seus planos diretores para viabilizar a exploração desse circuito novo. Isso não é decisão política apenas, mas desenvolvimento, crescimento que impactou a forma como as cidades antes funcionavam e se apresentavam. Voltando um pouco mais na história, como as cidades no Ceará se desenvolveram? O Ceará estava na periferia do Nordeste em termos de trocas comerciais com a Europa. Então se desenvolveu de dentro para fora, através das rotas dos rios. As redes urbanas das cidades cearenses eram ligadas a essas rotas internas de escoamento da produção em suas poucas cidades portuárias do litoral. Na hora em que se mudou a estratégia de desenvolvimento, a rede urbana mudou junto, vieram ainda as ferrovias e foram criadas outras cidades de exportação. Fortaleza surge nesse cenário. Isso é uma forma de planejamento dentro de uma rotina de pensamento econômico. E a cidade nada mais é do que o reflexo de um determinado tempo na organização social econômica e cultural.
Então o planejamento urbano tem que estar em constante revisão e adequação...
Isso. Os planos têm que ter essa visão muito clara, incorporar essas interferências, caso contrário não farão sentido. Se pensamos no trecho da avenida Beira Mar. Quantas vezes já recebeu investimentos? Não é à toa. Mas por que a Beira Mar recebe e a orla da Barra do Ceará não recebe? Ou recebeu somente uma vez? Isso está também atrelado a uma lógica de conquistas e gozo no final. Temos o Metrofor, por exemplo, um projeto da década de 1960. Que transformações ele fez na Parangaba? Mas não fez isso sozinho. Foi a partir da instalação de centros comerciais, centros educacionais, dentro de um núcleo dinâmico e econômico novo que se formou ali, dentro de uma lógica de planejamento de polinucleações na cidade. Isso é importante e tem que ser assim. Levar em conta as várias dinâmicas que se anunciam.
A quantas anda o planejamento urbano de Fortaleza, onde você como especialista enxerga potencialidades?
Quando falamos em solo urbano é importante que a gente entenda que há um conjunto de interesses diversos que se confrontam o tempo todo. Cidade sem conflito não é cidade, é um campo ilusório. Mas me é estranho que dentro de uma mesma estrutura de planejamento, com instituições e pessoas que pensam a cidade, haja direcionamentos tão diversos. Hoje temos em paralelo o Plano Diretor da cidade em vigor, que é de 2009 e se trata da Lei maior, com suas diretrizes, instrumentos, índices, parâmetros, tudo voltado ao ordenamento da cidade. Vinculadas a ele temos várias leis acessórias que vão detalhando esse plano mais geral para a cidade... Só para ilustrar: o plano diretor diz que naquela área vai ter isso, mas não vai ter aquilo porque ali já está saturado, tenho que conter a ocupação e a expansão; aquela outra área tem terra disponível, infraestrutura urbana, transportes, dá para desenvolver; aquela outra área eu preciso regularizar, porque vive ali uma comunidade há muitos anos, sem acesso a estrutura alguma... ou seja, trabalha com grandes olhares, mas quando chega na escala da quadra, do quarteirão, do lote, são inúmeras as demandas e especificidades que aparecem, desde a altura das calçadas até a árvore que foi cortada... Mas esse Plano Diretor de 2009 teve seu primeiro detalhamento agora em 2017. Entre 2009 e 2017, a gente ficou convivendo com uma lei que era de 1996. E agora em 2019 uma outra lei de detalhamento, que é o Código da Cidade, que diz respeito a aspectos mais construtivos, também vem recebendo muitas críticas. E essa duas leis vão agora também sofrer um outro processo de revisão e vão ter que se adequar. E em paralelo a tudo isso há ainda um processo de planejamento que se chama Fortaleza 2040. Esse é um plano muito mais estratégico, no sentido de como chegar de forma mais rápida a um desenvolvimento socioeconômico. E não conversa com tudo o que está acontecendo do outro lado. Propõe um horizonte temporal muito largo e a meu ver não tem capacidade de acompanhar esse dinamismo tão essencial. Há uma distorção aí e um abismo que não sei como a gente vai sarar em algum momento. E acho mesmo que não vai...
Diante do espaço urbano em constante mutação, essa ânsia por um lar comum, levando em conta inclusive as desigualdades sociais, é algo utópico então? Em Fortaleza, sobretudo?
Hoje o que eu acredito, enquanto docente, arquiteta, acredito muito na colaboração, na apropriação dos espaços, nas pequenas intervenções que têm capacidade regenerativa e estão vinculadas às pessoas. Em Fortaleza você vê esses movimentos o tempo todo, isso é lindo, é dinâmico... esses coletivos que se apropriaram da questão da bicicleta, que fizeram as pessoas pensarem que podem se deslocar diferente; os grupos que fazem intervenções em espaços públicos, juntando pessoas e executando uma intervenção naquela praça, onde se apropriam e cuidam. Na medida em que as pessoas reconhecem aquilo como seu há transformação. Então essas medidas borow up, iniciativas que surgem de baixo e vão repercutindo até chegar numa conquista que é coletiva, tem um poder de articulação entre impressionante e mostram caminhos inovadores. É olhar para o espaço e propor transformações a partir dos recursos que estão ali, a mão. Acredito muito nesse poder. E quando isso vai crescendo e é olhado como uma maneira de preparar a cidade para o planejamento urbano funciona muito. Os grandes projetos devem acontecer, mas nunca desconectados a essas realidades locais efervescentes. O que acontece hoje são tentativas de insurgências superpositivas, que mostram as desigualdades presentes em uma realidade, mas que transformam, se viram e mesmo sem recursos conseguem e fazem. Quando a gente conseguir entender essa articulação de base vai conseguir ter uma articulação maior. Mas como incorporar essas insurgências sem destruir ou fagocitar?
Sim, como? Há exemplos concretos disso?
Vou citar um grupo de ex-alunas do curso de Arquitetura da Universidade de Fortaleza que fazem intervenções urbanas. Por exemplo, o Coletivo (A)braço. Trabalham com urbanismo colaborativo. Pensam e fazem jogos para conhecer a cidade por meio dos espaços de afetos históricos. Uma praça que não tinha mobiliário nenhum passa a ter bancos, a quadra recuperada, o parque para as crianças brincarem, enfim... uma aluna nossa que desenvolveu um trabalho de graduação num bairro periférico de Iguatu, ela executou uma praça, um trabalho muito emocionante e transformador... num campo mais institucional, intervenções muito baratas, como pintura de chão, no asfalto, no passeio, para ampliar o espaço para o pedestre e reduzir espaço para o automóvel, então são intervenções muito baratas que têm uma capacidade transformadora do espaço... bairros como a Cidade 2000, muito atuantes, onde as pessoas interferem, a praça é dinâmica, eles se autocontrolam quanto ao uso desse espaço e ao desenvolvimento do comércio, essas ações são muito significativos. Tem por exemplo os parklets, que viraram até lei municipal: você pega uma vaga de estacionamento e temporariamente transforma aquilo numa micropraça. Isso começou como intervenção, uma luta de arquitetas, inclusive egressas da Unifor, de um escritório que se chama Star Urbano. Esses grupos partem do princípio de que a cidade tem que ser construída a partir dessas intermediações. É gentilíssimo isso, transformar uma área privatizada num espaço coletivo. E quem quiser fazer agora aciona os dispositivos e pode fazer. Antes era ilegal, mas agora pode fazer, essas medidas foram absorvidas. Mas acho que para a escala do planejamento urbano isso ainda não foi incorporado, ainda não há uma costura para o desenvolvimento da cidade, a partir dessas pequenas iniciativas e das particularidades de cada lugar.
E por quais razões?
Ainda se homogeneíza muito os espaços e se insiste em valorar coisas muito inadequadas. Multar porque avançou ali 30 centímetros na calçada ao abrir um negócio... O comércio informal do Centro, por exemplo. Quanto tempo a gente ainda vai demorar para ver isso como uma coisa boa? Todo o dinamismo econômico da Praia de Iracema, da rua José Avelino, que se transportou pra dentro daqueles galpões... então, demora-se muito a entender que esses processos podem ser incorporados. Aí estão os lotes e prédios do Centro todos vazios e o espaço público sendo ocupado. Como é isso? Como resolver? Dá trabalho. A gente sai do que é convencional e fácil, mas seria um caminho.
O que é prioritário e pode fazer diferença na vida dos moradores de Fortaleza em termos de planejamento urbano?
Fortaleza tem um problema habitacional imenso. Não é tanto falta de lugar pras pessoas habitarem, mas reconhecer como e onde elas estão e levar para elas os seus direitos. Então, quando se fala em direito à cidade, não é só a infraestrutura, a casa, mas o direito de transformar e atuar na cidade enquanto voz atuante. O reconhecimento dessas comunidades e priorização delas enquanto política urbana, que não seja para retirar, marginalizar, tratar como diferente. Se é para distribuir investimento, por que não investir nas comunidades e nessa questão habitacional em áreas mais precárias? Por que expulsar e retirar violentamente comunidades que lutam historicamente pelo território? Não é só desigualdade. É você usar pesos muito diferentes. Isso gera cidadania, respeito, aquece a economia e vai gerando um bem estar que afeta a todos os habitantes da cidade. Tem efeito regenerativo.
A graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza tem um novo projeto pedagógico, que entra em vigor em 2020. Por que ele foi repensado e para onde aponta?
Ele sempre foi fruto de reflexão constante. É o nosso quarto projeto pedagógico e o curso faz 21 anos esse ano. E não é só a adequação de uma matriz, não é mexer em caixinhas, não é uma reflexão superficial, mas estamos entrando em um novo contexto formativo. O arquiteto pode desenhar desde uma cadeira até uma rede de cidades. A gente está treinando o arquiteto para sempre ter uma visão holística, atendendo as necessidades dentro de um contexto de restrição ou de possibilidades. Não posso só usar o máximo de tecnologia ou fazer ficar bonito. A formação do arquiteto é generalista, mas a cada semestre o aluno terá um desafio único para que ele aprenda consigo mesmo a partir dos problemas que são colocados. Constantemente, ele vai se deparar com desafios onde deve articular as várias questões, tudo para entender a partir da complexidade daquele problema o que deve extrair. Para o corpo docente e para os alunos será um desafio imenso, mas é o melhor processo. Dentro dessa lógica, a gente reduz a carga horária total, porque aplica mais os conhecimentos e libera o aluno para outras atividades na universidade como pesquisa, ensino e extensão, indo além do currículo único. Então, é uma oportunidade para dar tempo ao aluno de se interessar por outros elementos que agregam. A ideia é ancorar. Usamos muito o símbolo da corda. Você tem os fiapos e sozinhos eles não dão segurança, mas na hora em que vai trançando vem a firmeza, a robustez. Isso é o que a gente quer: pegar os conhecimentos espalhados e ir trançando para dar forma, sentido. Estamos muito animados para começar, o corpo docente se envolveu muito e a expectativa é apoiar o aluno dentro do seu processo e dar o suporte necessário. Será teoria aplicada sempre, não tem mais exceção. E acho que vai ser um ganho para o que hoje se está exigindo do profissional do futuro: aprender sempre; buscar o conhecimento a partir da pesquisa qualificada; reconhecer um processo metodológico que sempre irá usar; e se preparar para os desafios que a gente ainda nem sabe hoje exatamente quais são. Então, é preciso estar consciente da própria prática, inclusive em termos éticos. E tem que estar preparado para atender a essa autoformação, a partir de uma base bem consolidada, onde é importante que ele se adapte para responder aos desafios futuros.