Entrevista Nota 10: Daniel Fernandes e o trabalho contínuo de preservação da Caatinga

seg, 17 junho 2024 14:43

Entrevista Nota 10: Daniel Fernandes e o trabalho contínuo de preservação da Caatinga

Coordenador geral da Associação Caatinga fala sobre a importância da conservação e proteção do único bioma exclusivamente brasileiro para a manutenção do equilíbrio ecológico


Na foto, Daniel segura um tatu-bola, animal símbolo da Caatinga (Foto: Arquivo pessoal)
Na foto, Daniel segura um tatu-bola, animal símbolo da Caatinga (Foto: Arquivo pessoal)

Com uma área de aproximadamente 850 mil km², a Caatinga é um ecossistema exclusivamente brasileiro, não ocorrendo em nenhum outro lugar do mundo. Ocupando cerca de 11% do território nacional, o bioma apresenta uma imensa biodiversidade ao abrigar espécies endêmicas de fauna, como o tatu-bola, e flora, como a carnaúba.

Apesar de toda essa riqueza biológica – e também cultural, da população que vive ali –, a Caatinga sofre com uma crescente degradação ambiental. Só de 2020 para 2021, por exemplo, houve um aumento de quase 90% nas taxas de desmatamento em sua área, segundo levantamento do MapBiomas. Um dos fatores disso é a falta de definição oficial do bioma enquanto Patrimônio Nacional do Brasil, o que lhe faz não receber tratamento especial de proteção.

“As florestas de Caatinga são grandes sumidouros de carbono, demonstrando a importância da preservação e recuperação ambiental do bioma”, afirma Daniel Fernandes Costa, coordenador geral da Associação Caatinga — Organização da Sociedade Civil (OSC) cuja missão é promover a conservação das terras, florestas e águas da Caatinga para garantir a permanência de todas as suas formas de vida.

Um exemplo disso é que a Caatinga, ao longo de quase dez anos, conseguiu retirar da atmosfera uma média de 5,2 toneladas de carbono por hectare ao ano. Esses dados do Observatório Nacional da Dinâmica da Água e do Carbono no Bioma Caatinga reforçam a urgência e relevância da busca contínua pela conservação de um ecossistema tão único e essencial para o equilíbrio ambiental.

No início de junho, Daniel participou da palestra de abertura da 17ª Semana do Meio Ambiente da Unifor, que teve como tema central “Bioma da Caatinga: Ações Sustentáveis para a Implementação de um Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e Inclusivo”. No evento que abriu a programação de atividades, o advogado debateu com os demais convidados sobre “Políticas Públicas para a conservação do bioma da Caatinga”.

Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza, ele conta com um MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Já são 21 anos de experiência na elaboração e gestão de projetos socioambientais com enfoque em conservação, biodiversidade e promoção do desenvolvimento sustentável. Também foi, por nove anos, gerente administrativo-financeiro da Associação Caatinga, instituição a qual se dedica desde 2003.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, Daniel fala sobre a importância da conservação e proteção do único bioma exclusivamente brasileiro para a manutenção do equilíbrio ecológico.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Mesmo sendo um bioma exclusivamente brasileiro, a Caatinga não é oficialmente considerada patrimônio nacional, o que a faz não receber tratamento especial de proteção. No que a falta desse status implica para sua conservação? O que é preciso para mudarmos essa definição e garantirmos os benefícios de um suporte nacional à preservação?

Daniel Fernandes — A Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro e, quando comparada a outras regiões semiáridas do planeta, tem uma das maiores biodiversidades, envolvendo espécies de fauna e flora, inclusive endêmicas da Caatinga, ou seja, que não são encontradas em outras regiões do mundo como, por exemplo, a carnaúba, árvore símbolo do estado do Ceará. O bioma ocupa aproximadamente 11% do território nacional e abriga cerca de 28 milhões de pessoas que demandam diariamente por recursos naturais da Caatinga. Trata-se de uma das regiões menos protegidas por meio de Unidades de Conservação e também uma das regiões mais sensíveis aos efeitos do aquecimento global.

Em que pese toda a importância da Caatinga, infelizmente, o legislador constituinte de 1988 não reconheceu a Caatinga e o Cerrado como patrimônios nacionais. Trata-se de um processo de desvalorização histórica do bioma, principalmente em decorrência do modo de povoamento do Nordeste a partir do século XVI. Isso contribui para uma relação predatória do bioma.

Atualmente tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 504/2010, por meio da qual se busca o reconhecimento da Caatinga e do Cerrado como Patrimônio Nacional. Na prática trata-se de uma retratação histórica, inserindo tais biomas no parágrafo 4º do Art. 225, da Constituição Federal. Com este reconhecimento, espera-se que políticas públicas de conservação e restauração florestal na Caatinga, bem como de adaptação climática, possam ser implementadas, gerando benefícios ambientais, econômicos e sociais.

Entrevista Nota 10 — Uma recente pesquisa do Observatório da Caatinga revelou que a retenção de carbono por esse bioma chega a retirar da atmosfera uma média de 5,2 toneladas por hectare ao ano. Como esse dado pode ajudar no combate às mudanças climáticas por meio da preservação da “mata branca”? Esse estudo abre novas perspectivas para planos de ação atuais e futuros?

Daniel Fernandes — As florestas de Caatinga são grandes sumidouros de carbono, demonstrando a importância da preservação e recuperação ambiental do bioma. A pesquisa ratifica a importância da manutenção da floresta em pé para que o fluxo de serviços ecossistêmicos possa ser mantido, gerando condições de convivência com o semiárido e adaptação climática por parte de famílias que residem na região. 

São exemplos de serviços ecossistêmicos gerados a partir da proteção de florestas: segurança hídrica, fertilidade do solo, estoque e sequestro de carbono, polinização, dentre outros. Tais serviços são vitais para a nossa sobrevivência e para as atividades econômicas.

Este dado da pesquisa contribui para demonstrar a importância da Caatinga e para que novos investimentos em projetos de conservação de florestas e restauração de áreas degradadas possam ser incentivados, estimulando inclusive a economia e mitigando os impactos do aquecimento global.

Entrevista Nota 10 — Você é o coordenador geral da Associação Caatinga, uma instituição sem fins lucrativos que atua ativamente na proteção da Caatinga. Para você, como é fazer parte dessa iniciativa? E quais são os projetos e ações que a Associação desenvolve para a preservação do bioma e das vidas que ele abriga?

Daniel Fernandes — Estou na Associação Caatinga desde 2003. É um motivo de realização pessoal e profissional poder contribuir com a proteção da Caatinga e geração de oportunidades para famílias que residem no semiárido nordestino.

A Associação Caatinga é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em outubro de 1998. Tem o objetivo de conservar a biodiversidade da Caatinga a partir da implementação da Reserva Natural Serra das Almas, uma unidade de conservação na categoria Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com área de 6.285 hectares, situada nos municípios de Crateús (CE) e Buriti dos Montes (PI). Esta área é reconhecida pela Unesco como Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Caatinga pelo seu nível de conservação e pela interação com comunidades circunvizinhas.

A Reserva Natural Serra das Almas, a maior RPPN do Ceará, abriga uma rica biodiversidade e fornece uma série de serviços ecossistêmicos para as populações locais como, por exemplo, a segurança hídrica e o sequestro e estoque de carbono. A Associação Caatinga atua por meio de sete eixos temáticos, a saber: 

  • criação e gestão de unidade de conservação,
  • restauração florestal,
  • educação ambiental,
  • disseminação de tecnologias sociais de convivência com o semiárido e incremento de resiliência às mudanças climáticas,
  • incidência em políticas públicas socioambientais,
  • fomento à pesquisa,
  • comunicação para revelar o surpreendente mundo da Caatinga e engajar a sociedade, contribuindo com a desmistificação da visão estereotipada de que a Caatinga não tem riqueza.

Todos estes eixos temáticos se relacionam entre si de forma sistêmica, promovendo um modelo integrado de conservação da Caatinga, por meio do qual estimulamos a conservação dos recursos naturais do bioma e a geração de oportunidades para quem vive no semiárido.

A Associação Caatinga desenvolve projetos relacionados à proteção da Caatinga e restauração florestal, estimula o fortalecimento da sociobiodiversidade e bioeconomia da Caatinga; atua com a proteção de espécies ameaçadas de extinção, com educação ambiental envolvendo, por exemplo, o empreendedorismo feminino e a atuação com o público de primeira infância. Também há projetos relacionados à geração de renda, segurança alimentar, saneamento rural e agricultura de baixo carbono. São exemplos de projetos o No Clima da Caatinga, patrocinado pela Petrobras, o Restaura Caatinga e o Carnaúba Sustentável.

Entrevista Nota 10 — Além das atividades focadas na preservação do ecossistema, a Associação Caatinga também promove ações e projetos voltados para a população que vive no bioma. Que tipo de trabalhos são realizados no âmbito social por vocês? Qual a relevância da conscientização e capacitação dessas pessoas para fortalecer a luta pela Caatinga?

Daniel Fernandes — É imperativo envolver as comunidades no processo de conservação e recuperação de ecossistemas. As comunidades devem ser protagonistas neste processo de reversão do quadro de degradação e implementação de desenvolvimento local sustentável. A Associação Caatinga atua com esta perspectiva a partir de um conjunto de atividades de educação ambiental e formativas, juntamente com a difusão de tecnologias sociais que ajudam a harmonizar a relação de comunidades com os recursos naturais.

As ações de educação são transversais a todas as demais iniciativas e englobam todos os públicos, desde crianças em idade de primeira infância a agricultores. Buscamos estimular o empreendedorismo feminino. Há também iniciativas de boas práticas na Cadeia Produtiva da Carnaúba, atividade extrativista que gera emprego e renda para mais de 90 mil pessoas somente no estado do Ceará. 

A Associação Caatinga dissemina um conjunto de tecnologias sociais que ampliam a resiliência de comunidades rurais aos efeitos das mudanças climáticas. São exemplos disso a Cisterna de Placa, para captação de água das chuvas, e o Sistema Bioágua, para o reaproveitamento da água cinza das residências (chuveiro, cozinha etc) — esta água é tratada e reutilizada na produção de alimentos, promovendo segurança alimentar. Outra iniciativa relacionada à gestão hídrica são os Canteiros Biosépticos ou fossas ecológicas, os quais promovem o destino adequado do esgoto, evitando a contaminação de pessoas a partir do contato com água contaminada. Distribuímos fogões ecoeficientes que consomem 50% menos lenha.

Há também atividades relacionadas a sociobiodiversidade como a meliponicultura, ou seja, criação de abelhas nativas com o viés produtivo e de geração de renda; e o extrativismo da carnaúba. 

Em 2022, a Associação Caatinga passou por uma análise do retorno social do investimento (SROI) do projeto No Clima da Caatinga. Foi diagnosticado que para cada R$1,00 investido há um retorno de R$7,91 em valor socioambiental.

Entrevista Nota 10 — Mesmo com a atuação de organizações da sociedade civil, a preservação do meio ambiente também requer um esforço governamental para ser viabilizada; com a Caatinga, não seria diferente. Como andam as políticas públicas voltadas para esse bioma? Poderia pontuar o que já temos e o que precisa ainda ser feito para fortalecer essas medidas?

Daniel Fernandes — As políticas públicas direcionadas para a proteção e desenvolvimento sustentável na Caatinga ainda são bem incipientes e ainda não têm gerado os efeitos práticos necessários para a proteção do bioma. Além de não ser reconhecida como Patrimônio Nacional, a Caatinga já perdeu mais de 46% de sua cobertura vegetal e teve 89% de sua cobertura vegetal alterada pela ação humana. Mais de 13% do território da Caatinga se encontra em estágio avançado de desertificação gerando danos ambientais, econômicos e sociais, pois os solos ficam estéreis.

Não há uma política de restauração de ecossistemas e ampliação do número de áreas legalmente protegidas, que são as unidades de conservação. Segundo o Relatório Anual de Desmatamento 2023, publicado pelo MAPBiomas, a Caatinga foi o terceiro bioma mais desmatado de 2022 para 2023. O Ceará apresentou um crescimento de 28% no desmatamento, inclusive em áreas suscetíveis à desertificação. A Bahia foi o estado campeão de desmatamento. Inclusive, foi diagnosticado que alguns municípios deste estado passaram a ser considerados áridos e não mais semiáridos, dado o processo de degradação.

Para a reversão deste quadro é necessária a ampliação de unidades de conservação, sobretudo as de Proteção Ambiental, investir em fiscalização para coibir crimes ambientais como a caça, desmatamento e incêndios florestais, além de promover um programa de recuperação de áreas degradadas e de educação ambiental e climática em todos os níveis de ensino.

Paralelamente a isso, é necessário que haja uma transição energética socioambientalmente justa.

Entrevista Nota 10 — No início de junho, você participou da palestra de abertura da 17ª Semana do Meio Ambiente da Unifor, discutindo o tema “Políticas Públicas para a conservação do bioma da Caatinga”. Como foi o debate? E qual a importância de momentos como esse, principalmente dentro da academia, para o fortalecimento das ações de preservação da Caatinga?

Daniel Fernandes — Foi uma ótima oportunidade de debater acerca das questões ambientais relacionadas a Caatinga, tendo como enfoque as políticas públicas. A 17ª Semana do Meio Ambiente da Unifor trouxe como foco a Caatinga, bioma que ocupa mais de 90% do território do Ceará. Foi um rico e importante cenário de debate e de busca de soluções em um ambiente favorável para isso, que é a academia. A Unifor tem um protagonismo neste processo à medida que contribui com formação de novos líderes que, em algum momento, estarão exercendo suas atividades profissionais em postos estratégicos e de tomada de decisões e será imperativo levar em conta em qualquer decisão os aspectos socioambientais.

Portanto, espero que a Unifor continue sendo esta instituição indutora deste processo de formação de lideranças engajadas na busca de um mundo melhor e mais justo para as presentes e futuras gerações.