Bets e saúde mental: entenda o impacto do vício em apostas online na qualidade de vida dos brasileiros
A explosão das apostas esportivas online no Brasil acende o alerta para uma crise de saúde pública, com impactos econômicos, sociais e psicológicos profundos
Desde a legalização das apostas esportivas de cota fixa em 2018, o mercado das “ bets ” cresceu rapidamente no Brasil, impulsionado por publicidade intensa, patrocínios esportivos e influenciadores digitais. As consequências são alarmantes: 86% dos apostadores acumulam dívidas, 64% estão negativados no Serasa e 63% comprometem parte relevante da renda mensal. Os números refletem ainda um impacto direto na saúde mental da população, como mostra o Serviço Social da Indústria .
Para o pesquisador Eduardo Rocha Dias, procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e docente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza — instituição mantida pela Fundação Edson Queiroz —, esse é um dos sintomas da falta de educação financeira adequada. O vício em apostas, diz ele, leva ao direcionamento de uma renda que deveria ser de consumo para o jogo.
O professor vem desenvolvendo o projeto de pesquisa “ Apostas Esportivas e a Prevenção do Jogo Patológico: aperfeiçoamento da Lei 13.756/2018 e o uso de algoritmos para monitoramento de jogadores em risco ”. Debruçado sobre o assunto, ele busca trazer luz às nuances do problema.
“O Brasil não está preparado para o grande aumento de viciados em apostas. Faltou um planejamento e uma articulação maior entre a área econômica do Governo e a área da saúde, além de campanhas informativas e também uma articulação nacional para coibir o jogo promovido por esquemas criminosos”, alerta Eduardo.
A publicidade das bets como questão de saúde pública
A proliferação da publicidade sobre apostas é apontada por especialistas como um dos principais vetores de disseminação do vício. Para Eduardo, que é doutor em Direito pela Universidade de Lisboa, o Estado precisa intervir de forma mais firme.
“De início, julgo necessário restringir mais a publicidade. O acesso à publicidade expõe pessoas vulneráveis ao jogo, ampliando os danos, inclusive por meio de influenciadores digitais”, declara o docente.
A influenciadora Virginia Fonseca faz parte dos famosos que
tinham contratos de divulgação com casas de apostas e que
prestaram depoimento na CPI das Bets (Foto: Gabriela
Biló/Folhapress)
Ele destaca que o patrocínio de eventos esportivos também deveria ser revisto. “Um modelo que pode ser adotado é o das bebidas alcoólicas e do tabaco”, sugere. Nesse modelo, a exposição seria controlada ou limitada a determinados horários e espaços, protegendo especialmente crianças e adolescentes.
A preocupação de Eduardo é reforçada por dados divulgados pelo Ministério da Saúde e por estudos acadêmicos recentes. Entre os efeitos mais comuns do vício em apostas estão insônia, distúrbios de humor, irritabilidade, retraimento social e falhas no desempenho profissional. “Há uma clara diminuição da produtividade laboral”, acrescenta Eduardo, referindo-se aos prejuízos que os empregadores também enfrentam com funcionários afetados pelo vício.
O vício em apostas como doença
A psicóloga Catarina Nivea Bezerra, professora do curso de Psicologia e da Especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental da Unifor, destaca que o vício em jogos de apostas online deve ser compreendido como um transtorno clínico devidamente reconhecido, com sintomatologia específica e consequências significativas para a saúde do indivíduo, suas relações interpessoais e seu contexto social mais amplo.
“O vício em jogos online passou a ser reconhecido como um transtorno de saúde pública pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) em 2013 e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2018, com o CID-11”, explica a psicóloga especialista em comportamento compulsivo.
Ela pontua que o transtorno precisa ser diagnosticado com base em critérios objetivos, como:
- perda de controle sobre o ato de jogar,
- persistência mesmo diante de prejuízos,
- e prejuízos significativos no funcionamento pessoal, familiar e social.
Estudos indicam que o vício em jogos está associado ao aumento de ansiedade, depressão e ideação suicida. “As plataformas utilizam mecanismos que estimulam a repetição compulsiva, ativando o sistema de recompensa do cérebro de forma semelhante às drogas”, afirma a especialista. Esse processo gera um ciclo de culpa, baixa autoestima e isolamento social.
Nas relações familiares, os impactos também são significativos. “O jogador tende a se isolar, esconder dívidas e sentir vergonha, o que reforça ainda mais o comportamento compulsivo”, explica. Entre os sinais de alerta estão o aumento de tempo e dinheiro investidos nas apostas, mentiras, tentativas frustradas de parar e alterações emocionais frequentes.
Tratamento e prevenção
Embora ainda não exista uma política pública específica para o vício em apostas, há alternativas de tratamento. Em Fortaleza, o atendimento pode ser feito em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) , Unidades Básicas de Saúde (UBS) , ONGs, serviços particulares e no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Unifor. “O tratamento inclui reestruturação cognitiva, controle dos estímulos digitais e envolvimento da família por meio de psicoeducação”, afirma Catarina.
“O envolvimento da família é determinante no processo de
recuperação. É fundamental que haja uma comunicação sem
julgamentos, o estabelecimento de limites financeiros claros e a
busca por ajuda profissional. Essas são estratégias que fazem toda
a diferença no tratamento” — Catarina Nivea,
psicóloga e professora da Unifor
Para evitar que mais pessoas, especialmente jovens, entrem nesse ciclo, a prevenção precisa ser multissetorial. “É preciso aliar medidas individuais, escolares, familiares e estatais. Isso inclui desde campanhas educativas nas escolas até regulação mais severa da publicidade. O vício começa muitas vezes com a promessa de ganhos fáceis, e os jovens são especialmente vulneráveis a isso”, alerta a docente.
A psicóloga conclui com um apelo direto: “Precisamos entender que isso não é apenas uma questão de escolha ou falta de força de vontade. É um transtorno mental, com impactos reais, e que exige uma resposta séria e integrada do Estado, das famílias e da sociedade como um todo”
A CPI das Bets
Diante da crescente preocupação social, a Câmara dos Deputados instaurou, em 2024, uma Comissão Parlamentar de Inquérito que ficou conhecida como CPI das Bets . A iniciativa tem como objetivo apurar irregularidades nas plataformas de apostas, identificar crimes financeiros e sugerir medidas legislativas que mitiguem os efeitos nocivos do setor. Para o advogado Eduardo Rocha, a CPI pode cumprir um papel essencial se conseguir aprofundar investigações e propor ações concretas.
“Se bem conduzida, pode apontar fatos específicos a
serem objeto de atuação por parte do Ministério Público, sobretudo
crimes como estelionato envolvendo plataformas de apostas e
pessoas que se beneficiaram de esquemas criminosos, sabendo da
ilicitude do fato” — Eduardo Rocha,
procurador federal da AGU e docente da Unifor
Ele também chama a atenção para o papel da Secretaria de Prêmios e Apostas , órgão responsável pela regulação do setor. Para o professor, é preciso intensificar o monitoramento das plataformas, exigindo delas mecanismos de proteção ao usuário, como limites de tempo de jogo, autoexclusão e advertências.
Quanto à legislação atual, Eduardo Rocha considera que, apesar de existirem medidas como a proteção a crianças e adolescentes e a proibição de promover o jogo como fonte de renda, ainda são necessários avanços mais rigorosos, entre eles, a proibição total da publicidade relacionada às apostas.
Por fim, o professor propõe uma reestruturação mais ampla da regulação no setor. “Acho que se pode avançar um dia para a criação de uma autoridade reguladora independente, que possa atuar considerando os diferentes interesses envolvidos”, enfatiza ele, sobre a necessidade de tratar o tema não apenas como uma questão econômica, mas como uma pauta de saúde pública.