Saúde e inclusão começam com o respeito à diversidade dos corpos

Em uma sociedade que impõe padrões, reconhecer os impactos do preconceito pode abrir espaço para relações mais saudáveis e empáticas

Em um contexto que impõe padrões estéticos quase inatingíveis, corpos reais e diversos — marcados pela vivência, idade, raça, peso, deficiência, gênero ou sexualidade — seguem como alvos de julgamentos e violências. Seja em comentários com ideias cristalizadas sobre um estereótipo ou em “piadas” sobre a aparência alheia, o preconceito assume formas tão distintas que podem passar despercebidas a um olhar menos atento.

A exclusão social baseada na aparência física vai muito além da vaidade: afeta diretamente a saúde mental, emocional e até fisiológica das pessoas, e desconstrói aquilo que é chamado de sociedade. Diversos especialistas destacam que o preconceito contra corpos diversos não é apenas uma questão de opinião, mas também um problema jurídico e até de saúde pública. 

Conversamos com o nutricionista Augusto Carioca, professor do curso de Nutrição e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC) da Universidade de Fortaleza — instituição mantida pela Fundação Edson Queiroz —, e a psicóloga Luciana Maia, docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) , para entender os impactos dessas discriminações na vida das pessoas.

Impactos do preconceito na saúde física

Você já ouviu comentários sobre seu peso, o que você deveria comer ou deixar de comer para não engordar, o que você pode ou não fazer por conta do seu tamanho? Ou ainda, você mesmo já comentou dos “quilinhos a mais” de alguém? Apesar de parecer inofensivo, esse tipo de comportamento segue uma linha de pensamento nociva: a gordofobia.

A gordofobia é um preconceito que desvaloriza e marginaliza pessoas com corpos fora do padrão magro, promovendo atitudes agressivas contra pessoas gordas que podem ter consequências graves. Ela não afeta apenas o emocional: seu impacto chega à saúde física de quem é constantemente alvo disso, causando distúrbios alimentares e problemas com a autoimagem e autoestima da vítima.

Segundo o nutricionista Augusto Carioca, doutor em Saúde Pública, “o preconceito relacionado ao corpo pode gerar impactos físicos significativos na saúde das pessoas, mesmo sendo inicialmente de natureza social e psicológica”. Ele explica que o estresse constante causado por experiências gordofóbicas eleva o nível de cortisol, que pode desencadear aumento da pressão arterial, resistência à insulina e inflamação.

Além disso, o professor alerta que esse tipo de discriminação costuma comprometer a relação das pessoas com a alimentação, favorecendo comportamentos restritivos que, com frequência, resultam em episódios de compulsão alimentar.


“A pressão estética, reforçada por padrões irreais de beleza nas mídias e cultura de dietas, causa insatisfação corporal e leva muitas pessoas a adotarem comportamentos alimentares restritivos ou desordenados, gerando ciclos de alimentação compulsiva, sentimentos de culpa e frustração”Augusto Carioca, nutricionista, professor do curso de Nutrição e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unifor

Um dos mitos mais perigosos reforçados pela sociedade é que corpos gordos são necessariamente doentes e que só corpos magros são saudáveis. Mas, de acordo com Augusto, essa é uma visão ultrapassada e redutora.

É plenamente possível ser saudável em diferentes tipos de corpos”, afirma o nutricionista. Para ele, o conceito de saúde deve ir além do peso corporal, considerando fatores como bem-estar emocional, equilíbrio hormonal, pressão arterial estável, boa qualidade do sono e outros indicadores clínicos.

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Prejuízos na construção da autoimagem

Para a psicóloga Luciana Maia, os impactos do preconceito podem ser sentidos desde a infância. Ela destaca que crianças crescem absorvendo mensagens sobre o que é “aceitável” em um corpo, e isso molda diretamente sua autoestima.


“Quando o preconceito é internalizado desde cedo, ele afeta profundamente a autoestima e a saúde mental, criando uma autoimagem negativa. Crianças aprendem a se ver a partir de olhares excludentes da sociedade”Luciana Maia, doutora em Psicologia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unifor

A psicóloga também aponta que pertencer a grupos minorizados, como pessoas negras, pessoas com deficiência (PcD) ou corpos fora do padrão, torna ainda mais intensa a sensação de inadequação social. O preconceito, no entanto, não afeta todos da mesma forma. Cada tipo de “categorização” imposta a um indivíduo traz suas próprias particularidades.

Um exemplo disso é quando lidamos com o envelhecimento — que também carrega estigmas particulares na sociedade —, especialmente no âmbito feminino, uma das áreas onde o preconceito se manifesta com mais crueldade. Luciana destaca que o sexismo estrutural associa o valor da mulher à juventude e à beleza, o que causa sofrimento psicológico à medida que o tempo, inevitavelmente, passa.

“Enquanto homens envelhecem e são vistos como charmosos, mulheres são consideradas desleixadas”, afirma. Esse duplo padrão de julgamento reforça a invisibilidade da mulher mais velha e afeta sua autoestima, saúde emocional e até oportunidades no mercado de trabalho.

A valorização da chamada “boa aparência” também atua como uma barreira de acesso social, seja ao mercado de trabalho, aos serviços de saúde ou mesmo a relacionamentos. Pessoas fora dos padrões estéticos hegemônicos frequentemente enfrentam dificuldades em espaços onde sua imagem é julgada como inadequada.

O capacitismo, que é a discriminação contra pessoas com deficiência, e o etarismo, preconceito em razão da idade, são duas formas menos discutidas de exclusão, mas igualmente danosas. Muitas vezes, se manifestam de forma sutil, como na infantilização de uma pessoa idosa ou na suposição de que alguém com deficiência não tem autonomia, explica Luciana.

“Mulheres negras e idosas enfrentam múltiplas camadas de exclusão”, aponta a psicóloga ao lembrar que o preconceito se agrava quando há sobreposição de marcadores sociais como gênero, raça e idade.

O papel dos influenciadores e o perigo das mensagens públicas

No universo digital, onde imagens e discursos ganham grande alcance, a responsabilidade das figuras públicas é enorme. Quando influenciadores propagam ideais estéticos excludentes, ajudam a normalizar o preconceito.

Em fevereiro deste ano, a influenciadora Maya Massafera causou polêmica nas redes sociais após publicar um vídeo falando sobre beleza e magreza . “Os desfiles de moda, a elite, gostam de uma pessoa magra. Então, não tem por que a gente atacar o outro: você aprendeu a gostar de gente mais gorda por causa da sua condição financeira. E quem é magro, vice-versa [...] É uma questão de cultura”, disse em um trecho do vídeo.

Sobre a fala da influenciadora, o professor Augusto Carioca é direto: “Sugiro não seguir esse tipo de conteúdo”. Para ele, esse tipo de mensagem contribui para o aumento da insatisfação corporal e dos transtornos alimentares, especialmente entre jovens e adolescentes.


​​​​​​​Maya Massafera havia recebido críticas sobre sua magreza extrema, razão pela qual gravou o vídeo que gerou polêmica (Foto: Divulgação)

O nutricionista recomenda seguir influenciadores que promovam uma visão ética e diversa sobre o corpo. “É fundamental orientar jovens a consumirem conteúdos com senso crítico e a buscar referências comprometidas com a saúde integral”, acrescenta.

Tanto Luciana Maia quanto Augusto concordam que a transformação cultural começa na escuta. “Empatia e escuta ativa são necessárias, mas não suficientes”, alerta a psicóloga. Para ela, políticas públicas, campanhas educativas e práticas institucionais inclusivas são essenciais.

Projetos como o Dialogando sobre Preconceito , coordenado pela própria professora na Unifor, são exemplos de como ações educativas podem provocar mudanças reais em comunidades escolares, universitárias e sociais.

Para construir uma sociedade mais justa e saudável, é necessário romper com os estigmas que limitam vidas. E, como reforça o professor Augusto, “uma abordagem mais inclusiva, baseada em evidências e respeitosa com a diversidade corporal, é essencial para promover uma saúde verdadeiramente integral”.