seg, 3 julho 2023 15:28
Entrevista Nota 10: Cristina Santiago e a reflexão sobre gordofobia na sociedade
Doutoranda em Saúde Coletiva, ela discute sobre gordofobia na sociedade e no ramo da saúde, além de pontuar as implicações na qualidade de vida das pessoas que sofrem com esse preconceito
Você já deve ter ouvido, quem sabe até mesmo falado, comentários como “tem que preparar o corpo para o verão”, “ela é bonita de rosto” ou “agora só falta emagrecer”. Expressões como essas — tal qual “dicas” sobre dieta e opiniões não solicitadas sobre a aparência — se enquadram em uma categoria de comportamentos violentos conhecida como gordofobia.
Esse problema atinge milhares de indivíduos, que sofrem diariamente com a discriminação direta por serem gordos. Além das consequências por vezes devastadoras à saúde mental e autoestima, esse tipo de atitude acaba desaguando ainda na exclusão social dessas pessoas. Um dos exemplos disso é a falta de acessibilidade a serviços, sejam eles públicos ou privados.
“O preconceito é tão forte que nos deparamos com alguns entraves relacionados à infraestrutura nos espaços de saúde, tais como mobiliário inadequado, dificuldade de acesso aos serviços e equipamentos para aferição de sinais vitais, além da elaboração de materiais educativos sem contemplar pessoas gordas”, explica a fisioterapeuta Cristina de Santiago Viana Falcão.
Docente do curso de Fisioterapia da Universidade de Fortaleza — mantida pela Fundação Edson Queiroz —, ela pesquisa sobre gordofobia em sua tese no doutorado em Saúde Coletiva pela instituição. A profissional pontua que a condição de saúde das pessoas gordas deve ser avaliada com uma visão mais ampla, a partir de vários fatores que se interseccionam, e não só pelo valor na balança.
“Sabemos das comorbidades que esses pacientes podem apresentar e que temos um papel importante nesse cuidado à saúde”, diz, mas também reflete que o peso deve deixar de ser tratado somente como doença. Caso contrário, há a possibilidade de reforçar o dualismo “gordo doente” e “magro saudável”
Graduada em Fisioterapia e mestre em Saúde Coletiva pela Unifor, Cristina é especialista em Fisioterapia Dermatofuncional pela Associação Brasileira de Fisioterapia Dermatofuncional (ABRAFIDEF) e bolsista do Programa de Apoio a Equipes de Pesquisa, da Vice Reitoria de Pesquisa (VRP).
Na Entrevista Nota 10 desta semana, a docente levanta questões sobre a gordofobia na sociedade e no ramo da saúde, além de pontuar suas implicações na qualidade de vida das pessoas que sofrem com esse preconceito.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 – A pressão estética é algo corriqueiro na sociedade, especialmente com o boom das redes sociais, seja na implicação de padrões visuais como sinônimo de sucesso ou na idealização de certos estilos de vida como o “jeito certo” de ser/estar/viver. Nesse tipo de discurso, é muito comum esbarrarmos em posicionamentos que destilam body shaming e gordofobia. Apesar de trazerem ideias semelhantes, o que difere um termo do outro? Que tipo de pressão cada um carrega?
Cristina Santiago – O body shaming traz, na sua definição ao pé da letra, a vergonha do corpo, mas sabemos que vai muito além disso e está ligada à pressão estética imposta pela nossa sociedade. Trata-se de um preconceito sofrido, também, por pessoas magras, gordas, negras, altas, baixas, enfim, que não se enquadram no padrão de corpo “perfeito” imposto pela mídia.
Já gordofobia é a discriminação direta às pessoas gordas, sejam estes corpos gordos menores ou maiores, o que leva a exclusão social e nega a acessibilidade às pessoas gordas, ou seja, é uma estigmatização estrutural e social.
Considera-se que um dos maiores desafios para essas pessoas é a inclusão social, pois não se encaixam nos padrões midiáticos. Por exemplo, há dificuldade em acessar serviços (particulares e públicos) e comprar roupas que se adequem aos seus corpos.
Entrevista Nota 10 – Sabemos que essa pressão estética afeta toda a sociedade, mas também é histórica e persistente a imposição de padrões físicos e de estilo às mulheres. Como a cobrança pela magreza e a antagonização de corpos gordos afetam de forma diferente cada gênero? Isso também se estende às questões raciais e de sexualidade?
Cristina Santiago – Para compreender as questões de raça e de gênero relacionadas aos padrões físicos é interessante refletir a partir do conceito de interseccionalidade, pois ele lança mão de um instrumental teórico metodológico que leva em consideração alguns marcadores, tais como raça, classe social e gênero, para pensar nas opressões aos indivíduos. Interessante considerar que as categorias apresentadas são mutáveis, fluidas e permeáveis por outras categorias, por isso elas se intersectam e moldam umas às outras.
É sabido que tanto homens quanto mulheres sofrem gordofobia, destacando essa cobrança maior para mulheres, devido às pressões estéticas midiáticas decorrentes de um sistema patriarcal, na tentativa de controlar esses corpos.
Entrevista Nota 10 – De acordo com a Vigitel 2021, pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, cerca de seis a cada dez brasileiros (57,25%) apresentam sobrepeso, enquanto 22,35% da população tem obesidade no país. Apesar do nível de gordura corporal fazer parte das preocupações médicas, não é incomum encontrar falas gordofóbicas vestidas de opinião profissional nos consultórios. Em que ponto se diferencia o âmbito de saúde da questão do preconceito? É possível haver a ideia de ser saudável sem, necessariamente, perder peso?
Cristina Santiago – O conceito apresentado pela Vigitel aponta o sobrepeso e a obesidade de forma isolada e considera o índice de massa corporal (IMC) como determinante. Esse aspecto reforça uma estigmatização pelos estudantes e profissionais de saúde em relação às pessoas gordas que nos direciona para a compreensão da formação profissional (biologicista), reducionista e patologizante (Silva e Cantisani, 2018). Quando penso no conceito de saúde preconizado pela OMS — completo bem-estar físico, mental e social, não somente a ausência de agravos e doenças —, paro e me questiono.... como assim? Por que a gordofobia ainda é tão forte nos ambientes de saúde?
O preconceito é tão forte que nos deparamos com alguns entraves relacionados a infraestrutura nos espaços de saúde, tais como mobiliário inadequado, dificuldade de acesso aos serviços, equipamentos para aferição de sinais vitais — como esfigmomanômetros que não se adequam à circunferência do braço para aferição de pressão arterial — a elaboração de materiais educativos sem contemplar pessoas gordas.
E quando você coloca se é possível ser saudável sem necessariamente perder peso, a minha resposta é sim. Muitas vezes não questionamos uma pessoa magra se está saudável ou não, mas a pessoa gorda ao buscar um serviço de saúde para realizar algum tratamento, muitas vezes, recebe a orientação de perda de peso para melhorar o quadro clínico apresentado, mesmo que o motivo da busca pelo profissional não tenha sido a diminuição do peso corporal, o que reforça o dualismo “gordo doente” e “magro saudável”.
Aquela frase clássica estigmatigmatizada e tão frequente na fala de profissionais de saúde, amigos e familiares — “estou dizendo isso porque me preocupo com sua saúde” — é um exemplo disso. Não estou “romantizando” a gordofobia, mas cada pessoa deve ser avaliada e orientada a partir de vários fatores que se interseccionam, pois sabemos das comorbidades que esses pacientes podem apresentar e que temos um papel importante nesse cuidado a saúde.
Entrevista Nota 10 – O Grupo de Estudos em Fisioterapia Dermatofuncional (GEFIDEF), do curso de Fisioterapia da Unifor, busca debater gordofobia nos espaços universitários e promover diálogos sobre a patologização dos corpos gordos. Como a fisioterapia dermatofuncional atua no atendimento deste assunto e promove a qualidade de vida desta parcela da população?
Cristina Santiago – Na Fisioterapia Dermatofuncional, principalmente na área de atuação estética e cosmetologia, diariamente surgem equipamentos, métodos e técnicas que ajudam nessa busca pelo corpo e rosto perfeitos, como as famosas harmonizações faciais e corporais, incentivada pela pressão estética. Se levarmos em consideração os dados apresentados pela OMS, até 2025, haverá cerca de 167 milhões de pessoas gordas (adultos e crianças) de acordo com o IMC. Deveremos ter espaços direcionados a essas pessoas, concorda?
Durante os cinco anos do curso de Fisioterapia, orientamos o nosso fisioterapeuta em formação a ter uma visão mais ampla sobre a condição de saúde do paciente. Por isso, desde o início da formação, os estudantes são orientados a classificar a condição de saúde do(a) paciente de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), que classifica a situação de saúde baseada na função, estrutura, atividade e participação social, fatores ambientais (que podem ser barreira ou facilitadores) e pessoais. Deixa a condição de se tratar somente a doença. O acolhimento às pessoas gordas perpassa por todos os níveis de atenção à saúde.
Entrevista Nota 10 – Qual a importância de ter espaços de discussão e estudo como esse no ambiente acadêmico? Como a pesquisa pode contribuir no avanço da saúde e na compreensão da sociedade sobre corpos gordos e a gordofobia?
Cristina Santiago – Sabe-se que nas diretrizes curriculares dos cursos de ensino superior existem princípios que norteiam a formação e que assuntos relacionados à gordofobia têm espaço em algumas disciplinas. Destaca-se que a parceria das instituições de ensino por meio de esforços conjuntos — incluindo profissionais de saúde, estudantes, pesquisadores, mídia, gestores, ativistas e pacientes/clientes — é o que fomenta o surgimento de novas políticas públicas direcionadas ao combate da gordofobia.
A pesquisa proporciona a sensibilização da comunidade em geral, principalmente a acadêmica, a refletir sobre a importância do acolhimento às pessoas gordas, principalmente pelos profissionais da saúde. E para reforçar a importância da discussão, em 2020, uma equipe multidisciplinar de especialistas internacionais, baseada em evidências disponíveis sobre as causas e os danos do estigma do peso, desenvolveu uma declaração de consenso conjunta com recomendações para eliminar o viés de peso para acabar com o estigma da obesidade. Os Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil, que têm à frente a ativista Malu Jimenez, trazem para a sociedade espaços potentes para discussão sobre a gordofobia.
Aproveito para agradecer a Universidade de Fortaleza pelo incentivo à pesquisa a nós, professores, por meio da Vice-Reitoria de Pesquisa (VRP) e o doutorado em Saúde Coletiva. Agradeço também aos meus orientadores, o professor Dr. Augusto Carioca e a professora Dra. Ana Catrib, e à coordenação do curso de Fisioterapia da Unifor pelo incentivo.