qua, 5 março 2025 15:25
Entrevista Nota 10: Flávia Rossette e a arte de vestir histórias
Figurinista reconhecida internacionalmente fala sobre a recriação de trajes icônicos para a exposição “Armorial 50” e a importância do figurino na cultura

Em fevereiro, o Espaço Cultural da Universidade de Fortaleza — instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz — abriu suas portas para a exposição “Armorial 50”, uma celebração das cinco décadas do Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna.
Entre os destaques da mostra está um núcleo dedicado aos figurinos do filme “A Compadecida” (1969), obra-prima adaptada do texto de Suassuna, com trajes originais criados pelo artista plástico Francisco Brennand.
Quem assumiu o desafio de recriar essas peças históricas foi a figurinista Flávia Rossette, profissional com duas décadas de experiência na moda e no audiovisual. Recentemente, ela se destacou pelo trabalho nos figurinos do documentário “Transo” (2024), produção indicada ao Emmy Awards, um dos principais prêmios do setor.
Flávia esteve imersa no campus da Unifor para acompanhar a montagem da exposição. Além disso, participou de um bate-papo com alunos dos cursos de Moda (bacharelado e tecnológico) sobre o tema "Figurino em foco: a arte de vestir personagens e contar histórias".
Formada em Design de Moda pela Universidade Belas Artes de São Paulo, a figurinista começou sua carreira no teatro e na publicidade, mas foi no cinema e na televisão que consolidou seu nome. Trabalhou com diretores como Jake Scott, Miguel Falabella e Luis Fernando Carvalho, além de vestir artistas da música em videoclipes e festivais como o Rock in Rio.
Desde 2021, ela integra a equipe da exposição “Armorial 50”, onde recriou figurinos do filme “A Compadecida”, mesclando técnicas tradicionais e pesquisa histórica.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, Flávia detalha os bastidores desse projeto, reflete sobre o papel do figurino na preservação cultural e compartilha sua visão sobre o reconhecimento da categoria.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Com sua trajetória de mais de 20 anos no universo da moda e uma década dedicada ao figurino, como você vê a evolução do papel do figurino na construção de narrativas, especialmente em projetos como a exposição “Armorial 50”? Quais são os principais desafios na recriação de figurinos históricos, como os icônicos trajes originalmente desenhados por Francisco Brennand?
Flávia Rossette — Ter figurinos expostos em um projeto dessa dimensão, que engloba diversas formas de arte — cinema, literatura, dança, teatro, artes plásticas, entre outras —, é mais do que um privilégio.
O Movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna, é um marco da cultura brasileira, e ver figurinos e filmes em museus ainda não é algo tão comum no Brasil. No entanto, a cada ano que passa, essa arte de contar histórias por meio do figurino tem conquistado mais espaço nas instituições culturais.
Mostrar ao público os figurinos de Brennand, que antes só podiam ser vistos no filme de Suassuna, é proporcionar uma experiência única, aproximando o espectador da riqueza estética desse artista.
É possível observar nos trajes os mesmos elementos presentes em suas telas — cores vibrantes, frutos, folhas e flores —, que também adornam os personagens do filme. Dessa forma, além de evidenciar o figurino como parte fundamental da narrativa cinematográfica, a exposição ressalta as intersecções entre diferentes formas de arte.
Recriar os figurinos para a exposição foi um grande desafio no início, pois havia poucas referências disponíveis. O filme estava em arquivo digital, o que dificultava a identificação precisa das cores, tecidos, modelagens e bordados.
Com o avanço das pesquisas, encontramos fotografias dos bastidores da produção, além do traje original da Compadecida, que se tornou um guia essencial para a construção dos figurinos dos demais personagens.
Entrevista Nota 10 — A “Armorial 50” traz um núcleo voltado aos figurinos do filme “A Compadecida”, onde você recriou peças como as vestimentas do “Palhaço” e do “Cristo Negro”. Como foi o processo de pesquisa e reconstrução desses trajes? Que materiais e referências foram essenciais para garantir a fidelidade visual e histórica dos figurinos na mostra?
Flávia Rossette — Mergulhar no mundo e na obra dos mestres Francisco Brennand e Ariano Suassuna foi primordial para materializar esses personagens por meio do figurino.
Os arquivos encontrados por Regina Godoy (idealizadora da exposição), em uma conversa com Rosa Jonas (viúva do diretor George Jonas), foram essenciais para o início do processo de modelagem, pesquisa de tecidos, e confecção juntamente com a pesquisa da curadora da exposição Denise Mattar, com quem eu pude alinhar também cada detalhe do processo
Além disso, sinto que foi primordial ter experiência, e uma base sólida de estudo em Design de Moda, pois o bacharelado me permitiu ter conhecimentos diversos, além da construção de uma roupa e de matérias primas que eu pude identificar com facilidade para que a recriação dos figurinos acontecesse da maneira mais fiel possível para a exposição.
Entrevista Nota 10 — Durante sua visita à Unifor, você participou de um bate-papo sobre a arte de vestir personagens e contar histórias. Na sua visão, qual é a importância de discutir o figurino no ambiente acadêmico, especialmente em cursos como Moda e Design? Como a presença da exposição “Armorial” 50 na Universidade contribui para ampliar o conhecimento das novas gerações sobre a cultura popular brasileira?
Flávia Rossette — O ambiente acadêmico, na minha opinião, é um laboratório em ebulição criativa, onde podemos unir diversas visões, experiências, diversidade cultural, habilidades e conhecimentos diversos numa troca entre alunos, professores e profissionais atuantes no mercado.
Essa foi a minha experiência de passagem pela Unifor, onde pude compartilhar um pouco do meu processo criativo e também sobre a minha experiência neste mercado atuando como figurinista, que pode ser bastante diverso, abrindo um campo de possibilidades para os alunos que desejam ingressar nesta área.
No entanto, esse ciclo é ainda mais amplo se considerarmos que a variedade de cursos oferecidos pela Unifor também propicia um ambiente fértil de trocas entre diversas áreas de ensino conectadas, como moda, cinema, fotografia, publicidade e até artes plásticas, facilitando a troca de experiências e conhecimentos, e até projetos em comum entre alunos, propiciando um ambiente estudantil ainda mais criativo.
Ter a exposição “Armorial 50” presente numa das melhores universidades do Brasil, trazendo para perto das novas gerações as nossas raízes da cultura popular brasileira, é celebrar a nossa arte e mantê-la viva.
Entrevista Nota 10 — Além da recriação de figurinos históricos, você também trabalha com figurinos para diferentes produções e atua como stylist para artistas da música. Como essa diversidade de experiências influencia sua abordagem ao vestir personagens? Em que momentos essas referências se cruzam e se complementam no seu processo criativo?
Flávia Rossette — Acredito que ter uma experiência diversificada pode ampliar o olhar, trazendo mais repertório criativo e artístico, além de novas fontes de pesquisa e do imaginário que podem facilitar a criação de personagens.
Muitas vezes, a criação funciona de maneira orgânica e intuitiva: é entrar em contato com novos mundos e histórias. Dependendo da obra e do projeto realizado, acabo trazendo comigo, de maneira inconsciente ou consciente, o olhar da contemporaneidade na criação, seja em uma obra atemporal, futurista ou histórica. Muitas vezes, esses elementos temporais podem fundir-se, assim como na história da moda.
Entrevista Nota 10 — Em 2024, o documentário “Transo”, no qual você assinou os figurinos, foi indicado ao Emmy Awards, um reconhecimento significativo para o audiovisual brasileiro. Como essa conquista contribui para a valorização do figurino no cinema e na televisão? Você acredita que a categoria de figurino ainda precisa de maior reconhecimento no setor audiovisual?
Flávia Rossette — Ter um projeto brasileiro, feito com poucos recursos, e indicado a uma premiação internacional é de grande importância para o setor audiovisual e para a valorização de nossos profissionais que atuam em todo o país e propagam informações extremamente importantes pelo mundo, como no caso deste documentário “Transo”, exibido pelo canal Futura e também disponível no Globoplay.
Ainda temos muito a aprimorar no que se refere ao reconhecimento da categoria de figurino em premiações, pois, em muitos casos, outros setores criativos são mais citados e valorizados, não somente em premiações, mas também no modus operandi do audiovisual, do cinema nacional e internacional. Incluindo a mídia em geral, que publicam muitas matérias sobre figurinos de filmes icônicos sem ao menos citar o figurinista e sua equipe.
Entrevista Nota 10 — O Movimento Armorial tem raízes profundas na cultura nordestina e busca a fusão entre arte popular e erudita. De que forma esse conceito pode inspirar novas abordagens para figurinos na moda, no teatro e no audiovisual? Quais lições do Armorial podem ser aplicadas na criação contemporânea sem perder a essência da tradição?
Flávia Rossette — O Movimento Armorial busca unir a arte popular nordestina com a erudita, e isso pode ser traduzido no figurino moderno ao mesclar elementos culturais tradicionais com técnicas e materiais contemporâneos.
A preservação da identidade cultural pode ser mantida ao usar símbolos, estampas e até bordados, trazendo a contemporaneidade através de um olhar moderno em cortes e modelagens.
O Armorial nos ensina a importância de valorizar as raízes culturais e a fusão entre diferentes linguagens artísticas, o que pode inspirar soluções inovadoras, como a experimentação de novas formas e materiais, ao mesmo tempo em que se mantém o respeito pela história e tradição.