seg, 6 maio 2019 18:39
Entrevista Nota 10: Hermínia Lima e o cuidado de si e do outro
A ordem é esculpir sensibilidades, a partir de um voltar-se para dentro de si e de um olhar para o outro, o meio em que se vive, os problemas sociais e não só individuais.
Como coordenadora do projeto de extensão Educação e Saúde na Descoberta do Aprender e professora do Intercursos, disciplina abrigada no Centro de Ciências da Comunicação e da Gestão (CCG) da Unifor, a também escritora e poeta Hermínia Lima leva para a sala de aula, em cursos aparentemente tão díspares como Administração e Cinema, aquilo que chama de tomada de consciência.
Há sete anos, ela coordena a atuação conjunta de alunos bolsistas e voluntários com pacientes que fazem hemodiálise em clínicas especializadas de Fortaleza, preenchendo aquele doloroso passar das horas de quem está preso às máquinas com atividades libertadoras de natureza cognitiva, mas também lúdicas.
Humanizadora, a ação, que teve sua semente plantada há 18 anos na Unifor, dialoga justamente com uma trajetória docente desde sempre comprometida com a ética e a estética da existência, onde o belo e o sensível andam de mãos dadas com o racional e o pensamento lógico a serviço de um bem comum.
Entrevista
UNIFOR: Professora, qual a origem do projeto de extensão Educação e Saúde na Descoberta do Aprender e o que justifica essa longevidade: são 17 anos de atuação e, nesse ano, alcança a maioridade?
HERMÍNIA LIMA: Isso. A intenção desse projeto era unir pessoas, professores e alunos, voltados para uma ação de extensão, que tinha e tem como objetivo amenizar o sofrimento de pacientes que fazem hemodiálise. Então nós temos dois objetivos: um é levar um pouco de ludicidade para essas pessoas durante o período que estão lá nas máquinas, onde passam no mínimo 12 horas semanais, em sessões de quatro horas. São crianças, jovens, adultos e tem alguns idosos também. Nós atuamos em três clínicas em Fortaleza: o Instituto do Rim, o Instituto de Doenças Renais e a Policlínica do Rim. Trabalho com 13 alunos bolsistas e, no momento, 10 voluntários. Então, nos horários em que os pacientes estão fazendo a hemodiálise e ficam ali, paradões, a gente atua. No momento, a predominância de alunos é da Psicologia. Mas é bom deixar bem claro que não é atendimento psicológico o que a gente faz. É psicopedagógico, mas pedagógico do que psíquico, porque eles não têm ainda nem autorização para fazer atendimento psicológico. Eles fazem uma escuta, mas é uma escuta informal. Na verdade o que é que a gente faz? A gente leva atividades de conteúdos como português, matemática, ciências. E também atividades lúdicas, pintar, recortar, com essa intenção de, digamos, distrair essas pessoas, tornar aquele momento menos doloroso. Ali, pelo próprio sofrimento da doença, muitos entram em estado depressivo, porque sabem que a vida delas dependem daquela máquina, então há sequelas físicas e psicológicas graves. Tanto que alguns nem querem participar. E o projeto não é obrigatório, é para quem quer. Mas o projeto tem uma ótima aceitação. Eu considero que é uma experiência de sucesso. Não é um sucesso meu, é do grupo que vem até agora que, desde a professora Lina de Gil criou e outras professoras antes de mim coordenaram.
UNIFOR: Mas se trata também de um projeto de alfabetização, confere?
HERMÍNIA LIMA: Não é um projeto de alfabetização, mas a gente tenta, na medida do possível. Não é fácil. Atuamos em um ambiente hospitalar, totalmente adverso, uma sala de hemodiálise, onde tem enfermeira, psicóloga, acompanhante... Mas a gente tem atividades voltadas para isso e se orgulha também de dizer que, nesse tempo, já alfabetizamos mais de 500 crianças. E alguns adultos também. Porque principalmente as crianças têm muitos problemas com a escola. Imagina: elas têm que ficar pelo menos três manhãs em uma máquina, só aí já prejudica muito porque não conseguem frequentar a escola normalmente. E tem muitas pessoas carentes A maioria vem do interior, de ônibus, para fazer a hemodiálise. Então, é muito doloroso. A palavra é essa.
UNIFOR: Imagino que existam aí histórias de vida que por si só dizem sobre a eficiência e a importância de projetos desse tipo.
HERMÍNIA LIMA: Exatamente! Tem um paciente que há algum tempo nos disse que tinha a maior vontade de montar uma bodega onde ele morava. Um pequeno comércio, mas ele disse que não conseguia, porque não sabia fazer conta. Aí ele aprendeu no projeto a tabuada e acabou montando o negócio. Ele conta isso muito feliz. Tem um outro que, inclusive, chegou a atuar junto com o grupo, como voluntário, depois que saiu do projeto.
UNIFOR: Enquanto alfabetizadora, sua perspectiva é freiriana?
HERMÍNIA LIMA: Sempre foi. Acho que não existe alfabetização dissociada da realidade, do mundo em que cada um vive e gente tenta, no projeto, trazer à tona questões que tenham a ver com a realidade deles, que parta de algo que eles saibam, conheçam ou se interessem. Nós temos um programa, conteúdos divididos por bimestre. Trabalhamos até aspectos cívicos, educação ambiental, higiene... E a gente tem a intenção, que ainda não se realizou, é um desejo meu, de publicar trabalhos deles: textos, desenhos... porque aí não é um desenho ou texto qualquer. São pessoas que produziram aquilo em uma cadeira de hemodiálise, o que não é fácil.
UNIFOR: Na própria Unifor, agora dentro de sala de aula, essa atuação humanizadora e comprometida com a responsabilidade social permeia o Intercursos. Como surge essa demanda?
HERMÍNIA LIMA: A disciplina Intercursos é um projeto bem diferente e relativamente novo. Foi implantado pela professora Candice Costa Nóbrega dentro do Centro de Ciência da Comunicação e Gestão e é obrigatória para os cursos do CCG. Como o nome já diz, promover o diálogo entre estudante de áreas diferentes. A disciplina segue por duas veredas: tem tanto a parte mais lógica, racional, onde a gente trabalha com um pensamento complexo, e a parte que se volta mais para o sensível, o artístico. E ela não é dada por um professor, mas por pares. Nós temos a coordenação da professora Xênia Diógenes, pedagoga, que no conduz muito bem. E a gente utiliza o método do Design Thinking. É uma metodologia que tenta identificar e olhar para os problemas, mas não um problema específico e rotineiro de cada área. É um problema outro, vamos dizer assim, algo que envolva uma realidade mais ampla e complexa, um problema social. E o grupo vai então mergulhar no problema, analisar, estudar e tentar trazer possíveis soluções. Eles não vão resolver o problema, mas eles vão pensar juntos uma solução para aquilo e apresentar um protótipo. É a culminância da disciplina. Normalmente, a gente expõe esse trabalho final no hall do Teatro Celina Queiroz.
UNIFOR: E o que normalmente sai de interessante daí?
HERMÍNIA LIMA: A gente sugere quatro eixos: desigualdade social, sustentabilidade, empreendedorismo social e responsabilidade social. Não que dizer que esses eixos são separados, ao contrário, até se intercruzam. Mas eles escolhem temas, como, por exemplo, o preconceito contra a comunidade LGBT; o abandono de animais; a questão do lixo; o mobiliário urbano ou a própria mobilidade; os microempreendedores individuais, pessoas que trabalham por conta própria, mas não têm noção econômica ou administrativa para organizar melhor um negócio. Eles focalizam um grupo na cidade de Fortaleza, apresentam uma cartografia situacional, que é o mapeamento da situação, e demonstram o que poderiam fazer para melhorar a condição de vida dessas pessoas. A idéia, portanto, é que, aos poucos, o projeto Intercursos sensibilize os estudantes e trabalhe esse olhar para o outro, utilizando desde textos literários até episódios de séries como o Black Mirror. E essas leituras, até nisso a disciplina é diferente, não são previamente determinadas. Ela não tem livros fixos. A gente conversa e às vezes propõe, por exemplo, começar com um autorretrato, que pode ser através de uma música, uma performance, um texto, uma charge, o que quiserem. Justamente porque primeiro é importante olhar para si mesmo e depois olhar para a sociedade, o grupo, o outro. E eu comecei esse semestre me expondo. Eu disse: se eles vão fazer, eu também tenho que fazer.
UNIFOR: E como foi o seu autorretrato?
HERMÍNIA LIMA: Para mim, que sou escritora e poeta, o mais fácil seria escrever um poema. Mas decidi seguir outro caminho. E lembrei de uma entrevista que eu tinha dado para um colega do teatro, Ricardo Guilherme, que pediu para eu levar para a conversa três objetos que fossem marcantes para mim. Daí eu disse: vai ser isso daí. Eu roubei a ideia e levei vários objetos para a sala de aula. Levei uma lamparina, um souvenir ligado à cultura egípcia, um dos meus livros, uma garrafa de vinho e fui falando de mim a partir daqueles objetos. E eu converso com eles que não é fácil, que é muito difícil, que a gente evita olhar para a gente mesmo. É muito fácil olhar para o outro, apontar o outro, mas olhar para mim mesmo e me ver... E como é que eu me vejo? E como é que o outro me vê? E como uma pessoa que cursa cinema pode ajudar em um projeto outro, de economia ou administração? E eles vêem que pode muito. Porque aí não é mais só olhar para você nem para a sociedade. É o seu olhar, com a sua formação, sobre um problema. E o objetivo maior é mostrar que, quando pessoas de diferentes formações se juntam em torno de um problema, ele fica mais fácil de resolver. É uma visão holística, né? E eu vejo como uma intenção de uma educação mais humanista, que tenta ir além dos saberes específicos. Que tenta ultrapassar os muros da universidade. E, nesse mundo que a gente está hoje, onde cada um corre atrás da sobrevivência voltado para o seu projeto pessoal, há de se atentar também para olhar e cuidar do outro, para se envolver e se implicar com o que está em torno. É uma tomada de consciência.