Entrevista Nota 10: Samuel Brasileiro e a construção de narrativas audiovisuais

seg, 22 janeiro 2024 14:20

Entrevista Nota 10: Samuel Brasileiro e a construção de narrativas audiovisuais

Diretor e roteirista pontua os elementos-chave para a criação de histórias envolventes e explica a importância de pensar no roteiro como uma primeira montagem do filme


Mestre em Comunicação Social, Samuel Brasileiro é professor do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Paula Carrubba)
Mestre em Comunicação Social, Samuel Brasileiro é professor do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Paula Carrubba)

As narrativas audiovisuais desempenham um papel crucial na maneira como as sociedades experienciam e compartilham histórias. Caracterizadas como o conjunto de técnicas cinematográficas responsáveis por criar enredo, ambientação e clima de um filme ao utilizar imagens, sons e efeitos visuais, elas se diferenciam das narrativas textuais, que apenas transmitem a trama de forma literária. 

Nesse contexto, a narrativa é a ferramenta principal utilizada para envolver e capturar a atenção do público. No entanto, o diretor e roteirista Samuel Brasileiro, docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, pontua que a experiência tanto de quem escreve quanto de quem faz filmes, e também dos próprios espectadores, é algo singular. 

“A própria noção do que é envolvente, ou seja, do que envolve as pessoas em uma narrativa, pode ser muito pessoal. [...] Mas, de modo geral, quando pensamos em uma escrita de um filme, é fundamental, dentro do processo, pensarmos no que a história que estamos querendo contar nos toca. Encontrar qual é o nosso lugar pessoal dentro dessa história, por mais que ela não tenha uma relação direta com a nossa experiência”, explica o professor.

No cerne do processo de criação de narrações envolventes, o roteiro assume um papel importante, já que não se trata apenas da história em si, mas de como ela é estruturada, montada e apresentada. O roteiro serve como bússola, guiando a jornada do espectador por meio de um mundo de imagens e sons, mantendo-o conectado à narrativa. 

À Entrevista Nota 10 desta semana, o mestre em Comunicação Social (ênfase em Fotografia e Audiovisual) pela Universidade Federal do Ceará fala dos elementos-chave para a construção de narrativas audiovisuais envolventes, explica a importância de pensar no roteiro como uma primeira montagem do filme e destaca quais são os diferenciais da graduação para quem deseja seguir no ramo. 

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Professor, você já dirigiu e escreveu diversos curtas e longas-metragens, além de séries. De acordo com essas experiências, quais são os elementos-chave para a construção de uma narrativa audiovisual envolvente?

Samuel Brasileiro – Acredito que podemos observar esta pergunta por uma perspectiva técnica da escrita de roteiro, das possibilidades, do enredo e também a partir de uma compreensão de que a experiência tanto de quem escreve quanto de quem faz filmes, e ainda dos próprios espectadores, são singulares. Essa própria noção do que é envolvente, ou seja, do que envolve as pessoas em uma narrativa, pode ser muito pessoal.

Pode ser que, por exemplo, o espectador se envolva com histórias de estudos de personagem, nas quais os personagens não têm exatamente um arco dramático, uma trama sendo desenvolvida, mas talvez esteja trabalhando questões mais íntimas. Já para outras pessoas, o envolvente pode ser, na verdade, uma história com muitas tramas e reviravoltas, com pontos estruturais muito marcados. Então, esses elementos-chaves acabam também se tornando um pouco singulares. 

Mas de modo geral, quando pensamos em uma escrita de um filme ou de qualquer narrativa, principalmente no cinema e no audiovisual, é fundamental, dentro do processo, tentarmos pensar no que a história que estamos querendo contar nos toca. Encontrar qual é o nosso lugar pessoal dentro dela, por mais que não tenha uma relação direta com a nossa própria experiência. Esse é um campo central de entrada nas construções das narrativas, exatamente para que possamos nos entender também na medida em que estamos entendendo a história que estamos escrevendo. 

O “envolver” muitas vezes vai estar conectado à lógica da própria identificação, que estará mais pautada dentro da dimensão de uma narrativa mais clássica. Essa narrativa retrata um protagonista com objetivos, que enfrentará conflitos na tentativa de alcançá-los. Seus objetivos serão representados, muitas vezes, por outro personagem exercendo uma força antagônica a ele, seguindo a lógica do antagonista. No final, o protagonista poderá ou não alcançar seu objetivo, o que o levará a uma transformação, podendo ser positiva ou negativa.

Na estrutura clássica, a organização é dividida na ideia dos três atos. O primeiro ato apresenta o universo, o personagem e o conflito principal; já o segundo ato desenvolve o conflito principal, e o terceiro ato organiza a transformação desse personagem. Portanto, a narrativa clássica, de modo geral, se organiza dessa forma. Para pensar em uma narrativa audiovisual envolvente dentro dessa lógica, é importante entendê-la, pois será por meio do personagem dentro dessa história que nós, como espectadores, nos envolveremos. 

Então, quais são os elementos-chave principais dentro de uma estrutura clássica? Para elaborar uma narrativa envolvente, é crucial refletir sobre o personagem que você está desenvolvendo e a história na qual está inserindo esse personagem. Ao juntar esses dois elementos, é importante tentar ponderar sobre o que você deseja comunicar, pois esse é um pouco o ponto de vista que nós, como criadores, estaremos colocando dentro da história.

Entrevista Nota 10 – Considerando a constante evolução tecnológica e suas influências no campo do cinema e audiovisual, de quais formas a interação entre tecnologia e narrativa visual tem impactado as produções cinematográficas contemporâneas?

Samuel Brasileiro – Podemos pensar nas questões das transformações tecnológicas e nas influências no campo do cinema e audiovisual de modo muito amplo, desde a própria invenção do cinema. Porque, na verdade, o cinema surge como uma invenção tecnológica, mais do que como uma linguagem artística. Essa linguagem artística, que entendemos hoje ao pensar no cinema narrativo e no cinema experimental também, será desenvolvida a partir dessa inovação, que é a imagem em movimento. 

Então, quando pensamos nessa dimensão da tecnologia, ela está intrinsecamente ligada à própria história do cinema. Já pensando dentro de uma perspectiva narrativa, a evolução tecnológica modifica os processos de escrita, uma vez que temos programas específicos para escrever e possibilidades de desenvolver nossas histórias em diferentes plataformas. Hoje é possível, por meio de programas de roteiro como o Writer Duet, ter pessoas em lugares diferentes do mundo escrevendo simultaneamente.

Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos modificam nosso pensamento sobre as próprias possibilidades do cinema e daquilo que podemos escrever. Nós temos cineastas do cinema clássico de ficção, do cinema hollywoodiano, como o James Cameron (Exterminador do Futuro e Avatar), que atrela a pesquisa tecnológica às possibilidades narrativas em toda a sua carreira. Isso abre as possibilidades para nós, criadores, pensarmos em outras imagens, porque durante muitos anos, um certo imaginário do cinema era o de que seria uma arte capaz de capturar o movimento do mundo, ou seja, a câmera e a película gravariam isso.

Então, o que entendo é que essa evolução tecnológica e as influências no campo do cinema e do audiovisual não são separadas. Estamos falando desde equipamentos de câmera até geração de imagens computadorizadas. Isso abre possibilidades para que possamos pensar novas imagens que não sejam apenas aquelas muito encenadas, mas também mais espontâneas. 

Para as narrativas audiovisuais, não é muito diferente, e o que temos visto hoje são entradas de novos processos tecnológicos no Brasil. Acredito que, na verdade, as tecnologias vêm também para enriquecer, e o importante é que nós as entendamos para pensar o que desejamos fazer com essas novas ferramentas. Acho que é aí onde entra o fazer artístico. Como é que nós pensamos essas ferramentas para desenvolver as nossas próprias histórias e não ficarmos amarrados às narrativas que as ferramentas, teoricamente, nos querem narrar? 

Entrevista Nota 10 – No processo criativo, é importante pensar na estrutura do roteiro, além das imagens que serão apresentadas na tela. Como essa abordagem integrada contribui para a construção de uma narrativa audiovisual mais rica e impactante? Você poderia compartilhar exemplos práticos de como essa sincronia é explorada em projetos cinematográficos?

Samuel Brasileiro – Na verdade, quando estamos escrevendo, não estamos pensando só em imagens, também estamos pensando em som. Talvez esse seja um dos elementos centrais do amadurecimento quando estamos escrevendo para o roteiro.

Existem algumas máximas, algumas regras que encontramos nos manuais de roteiro, por exemplo. Uma clássica que todo mundo conhece é a ideia do “show, don't tell”, (em português, “mostre, não fale”), que estaria impondo uma certa ideia de que a fala possui um caráter expositivo, enquanto o mostrar está ligado às ações. Ou seja, você deve encontrar uma forma de colocar aquelas informações, aqueles sentimentos do personagem em ação, porque no fundo haverá alguém, um ator ou uma atriz, agindo em cena. 

Essa ideia, acho que é interessante para podermos refletir sobre essa pergunta, pois abre uma certa discussão e traz também alguns questionamentos. Na verdade, quando estou pensando na escrita de imagens e sons, considerando o cinema, se estou ponderando sobre os personagens, estou pensando nas ações deles. Então, o que vejo e, ao mesmo tempo, o que escuto por meio dessas ações?

Mas também é interessante termos cuidado, porque a frase “mostre, não fale”, parece criar uma certa repulsa ao diálogo, à fala. E eu não acho que seja assim, na verdade, essa expressão parece dizer que a fala não é dramática. Se a fala não fosse dramática, não teríamos como base dos textos dramáticos as tragédias gregas, que são majoritariamente faladas.

Então, o mais importante quando estou pensando na estrutura de um roteiro e no desenho das cenas, é tentar – e aqui dentro de uma perspectiva, obviamente, de um sistema clássico – pensar em como as informações que coloco no roteiro serão vistas e escutadas. Acredito que essa abordagem cria a possibilidade de uma ampliação sobre a própria escrita do roteiro. Se, por exemplo, eu entrego o roteiro a alguém, quero que essa pessoa o leia, mas, ao mesmo tempo, desejo que ela o leia imaginando um filme, pois o roteiro se transformará em uma película. Portanto, se o roteiro se tornará um filme, é essencial que essa pessoa veja e escute.

É fundamental que eu traga para o meu roteiro não apenas os elementos estruturais ou os movimentos dramáticos. Também é importante trazer as nuances e as presenças que estarão ali. Então, o que vejo, como vejo, o que escuto, como escuto, qual o ponto de vista, qual o ponto de escuta. Assim, na escrita, como podemos experimentar essa possibilidade que é o cinema? 

Lembro-me muito de uma frase que aprecio bastante, uma citação de Jean-Claude Carrière, um importante roteirista francês que colaborou muito com Luís Buñuel. Ele afirma que se você quer ser um roteirista, precisa conhecer muito sobre montagem. De modo geral, algo que costumo discutir com meus alunos é que o roteiro funciona como uma primeira montagem do filme, pois você está lendo uma proposição do começo ao fim, ou seja, uma proposição de um texto que é, do começo ao fim, repartido por cenas.

É fundamental para quem deseja roteirista conhecer os processos de cinema, mas principalmente, pensar o cinema a partir desses seus elementos ligados à imagem e ao som, e à junção da imagem com o som. Por isso, a montagem. Ou seja, o que acontece quando coloco uma imagem depois da outra? Quais são os efeitos ao unir uma imagem específica e um som específico? O trabalho do roteirista é pensar também como escrevemos isso, como estruturamos, como descrevemos e quais são as funções narrativas relacionadas a isso.

Entrevista Nota 10 – Além de docente do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor, você é um dos orientadores do Núcleo Criativo da graduação. Pode falar um pouco sobre a função do núcleo e o que é produzido dentro dele? 

Samuel Brasileiro – O Núcleo Criativo é coordenado por mim e pelo professor Marcelo Müller, e acontece às quartas-feiras, no Labomídia. Ele é um espaço de experimentação para que os alunos da graduação tragam seus projetos pessoais para uma conversa, uma orientação, e para proposições de processos criativos específicos. 

Dentro do núcleo, temos trabalhado com projetos de diferentes formatos, desde roteiros de ficção a documentários de observação, construção de projetos e bíblias de séries de animação, além de projetos propostos de realidades virtuais. É um espaço múltiplo, acolhedor, de escuta e discussão coletiva entre nós, coordenadores, o aluno ou aluna que apresenta o projeto e todos os outros estudantes que participam do grupo. 

A ideia é que consigamos explorar metodologias diferentes, que às vezes não cabem ou não têm tempo para serem trabalhadas em sala de aula. Também é interessante experimentar processos e propor para os alunos abordagens para desenvolverem seus projetos ao longo do semestre ou durante o período em que participam do núcleo criativo.

É um espaço muito rico, muito único, na verdade. Você tem dois professores acompanhando o seu processo, ou seja, dessa vez, não há uma obrigação de entrega no sentido avaliativo. A proposta é tentar trabalhar um pouco essa paixão pela própria criação e pela experimentação dentro do audiovisual.

Já tivemos alunos saindo com bíblias de séries de animação completas, inclusive sketches de desenhos. Nós estamos com projetos de animação também agora em andamento, já com roteiros revisados e alguns sketches desenhados. Vamos seguindo, desenvolvendo, convidando e acolhendo os alunos que desejarem pensar seus próprios projetos e amadurecer seus processos, que eu acho que é um pouco o lugar que o Núcleo tem dentro do curso, principalmente. Também fazemos esse movimento de dialogar com os desejos dos alunos e, de alguma forma, encaminhá-los da melhor maneira possível para que consigam fazer o trabalho que querem fazer, para que desenvolvam as obras que desejam desenvolver.

Entrevista Nota 10 – Como a graduação em Cinema e Audiovisual da Unifor prepara profissionais capazes de desenvolver narrativas audiovisuais coesas? Quais são os diferenciais da graduação para quem deseja seguir no ramo da direção e/ou roteiro?

Samuel Brasileiro – A graduação em Cinema e Audiovisual da Unifor tem um diferencial muito interessante, que está na própria proposição de estruturação do curso. O aluno não terá os assuntos, por exemplo, de direção e roteiro, apenas nas disciplinas que são diretamente ligadas à direção e roteiro. Então, temos as disciplinas, mas ao mesmo tempo, vai ter toda uma lógica transversal em que esses assuntos retornam, e os estudantes praticam e experimentam ao longo de todo o curso.

Pensando na perspectiva do roteiro, a graduação tem um olhar bem aprofundado para a construção do roteiro cinematográfico, por vezes considerando o lugar do roteirista, mas em outras ocasiões, já integrando o roteiro à realização, estabelecendo conexões com outras áreas. Desde o início do curso, os alunos têm contato com discussões acerca das narrativas audiovisuais por meio da disciplina do primeiro semestre “Narrativas Audiovisuais”, ministrada por mim. Nela, exploramos as diversas formas, ao longo da história do cinema, de narrar. Ou seja, como o cinema narra, quais são as suas possibilidades, e de onde vêm as heranças narrativas cinematográficas.

O aluno segue com a disciplina “Roteiro I” no segundo semestre, que é a primeira oficial do tema. É uma disciplina de roteiros de curta-metragem, na qual trabalhamos bastante a prática de roteiro e, ao mesmo tempo, discussões sobre os principais conceitos e ferramentas introdutórias. Isso permite que os alunos desenvolvam seus roteiros ao longo de um semestre, um tempo relativamente curto para a escrita, mas que tem se revelado uma experiência muito interessante. Quando se pratica a escrita de roteiro, você está, na verdade, estudando as bases teóricas e fortalecendo-as.

Essa relação entre a prática e a teoria é fundamental. Não devemos pensar que o roteiro é só teoria nem apenas prática. Assim, esses roteiros são desenvolvidos em “Roteiro 1” e vão para uma disciplina chamada “Cine Experiência 3”, na qual os alunos realizam alguns desses projetos. Ou seja, o pensamento de roteiro retorna, agora diretamente atrelado à direção. Como mencionado anteriormente, as imagens e os sons que escrevemos e como eles se transformam e se traduzem são cruciais para o pensamento de direção e também para o roteiro. 

O curso ainda possui mais uma disciplina obrigatória de roteiro, denominada “Roteiro II”. Essa disciplina, ministrada pela professora Natália Maia, também é focada em roteiros de curta-metragem, mas, dessa vez, os alunos já têm a base da escrita de roteiros e eles podem focar mais no próprio processo de escrita. Os estudantes já vêm com esse embasamento, tanto teórico quanto de ferramentas introdutórias, e eles vão agora trabalhar de maneira mais aprofundada novas histórias e ideias, que serão levadas para a disciplina “Cine Experiência 5”. Nesta etapa, desenvolverão e revisarão os roteiros para apresentação à banca avaliadora, que será responsável por selecionar os que serão filmados posteriormente.

Por fim, a graduação ainda tem uma disciplina optativa de roteiro, que é a disciplina “Roteiro III”, na qual trabalho narrativas longas, que seriam as estruturas de longas-metragens e narrativas seriadas. Nela, os alunos desenvolvem seus próprios projetos de longa ou de série, mas o mais importante é aprofundarmos algumas ferramentas, estruturas e questões de personagens ligadas à construção de séries televisivas, séries contemporâneas, e também a escrita de longas-metragens de ficção. 
O curso de Cinema e Audiovisual da Unifor atrela constantemente a escrita de roteiros à realização prática, ou seja, pensar o roteiro que vai ser filmado, e não o roteiro que guardamos na gaveta. Isso é um ponto fundamental e um diferencial muito grande nesse processo de entender que os roteiros são palavras que, na verdade, serão traduzidas em imagens e sons.

Acho que a graduação tem feito isso muito bem. Tem proposto e provocado os alunos a pensar sobre a relação com a cidade, pensar sua relação com o trabalho, seu espaço íntimo, pensar sua relação com o narrar, com a ficção. Então, pensando a narrativa como um espaço mais amplo, o curso tem feito uma proposta muito importante para que os alunos saiam narradores de suas próprias histórias. Além disso, temos nos dedicado muito a pensar e amadurecer as narrativas audiovisuais de maneira mais ampla e crítica também.