Pequenos negócios, grandes responsabilidades

seg, 17 janeiro 2022 11:23

Pequenos negócios, grandes responsabilidades

Disciplina de Responsabilidade Social e Ambiental aproxima estudantes da Unifor a empreendedores da Comunidade do Dendê, proporcionando aprendizado, crescimento pessoal e financeiro a partir da troca de experiências


Líder comunitário, Raimundo Severo destaca que habilidades de gestão dos alunos trazem desenvolvimento aos pequenos negócios da região do Dendê (Foto: Ares Soares)
Líder comunitário, Raimundo Severo destaca que habilidades de gestão dos alunos trazem desenvolvimento aos pequenos negócios da região do Dendê (Foto: Ares Soares)

O foco é sobre o bem-estar comum, a ética nas relações socioculturais, a ideia de que qualquer cidadão ou instituição pode transformar uma realidade e contribuir com a superação de questões sociais. Desde o início de 2021, a disciplina Responsabilidade Social e Ambiental faz parte da grade curricular da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz. No rol das optativas, é oferecida e atrai estudantes de toda e qualquer área de graduação que, intuitivamente ou não, cedo percebem a relevância estratégica de ações individuais ou coletivas capazes de impactar positivamente na qualidade de vida das pessoas.

“A criação da disciplina de Responsabilidade Social e Ambiental atende à missão de fortalecer a economia local e afirmar o desenvolvimento econômico da região Nordeste. A disciplina busca capacitar o microempresário e o gestor de pequenos negócios das comunidades circunvizinhas ao campus, para estimular a geração de emprego formal e agregar apoio técnico, contábil, jurídico e sanitário aos negócios, movimentando a economia local. Assim, buscamos fomentar o capital social, ao atender às demandas da comunidade sem o viés assistencialista e com ações continuadas e não pontuais”, apresenta o Vice-Reitor de Extensão da Unifor, professor Randal Pompeu.

Predominantemente prática, a disciplina é acompanhada de perto pelo chefe da Divisão de Responsabilidade Social da Unifor, professor Marcus Mauricius. Ele descreve: “primeiro, alunos e alunas passam por uma formação teórica introdutória, onde terão noções sobre gestão de negócios, gestão de pessoas, empreendedorismo, marketing, formação do capital humano e social e temas afins; depois, o momento é de escuta. Convidamos um dos mais atuantes líderes comunitários da Comunidade do Dendê, o Severo, para falar com a turma. É ele quem vai explanar com detalhes como se vive e se trabalha naquele território hoje, tratando particularmente dos pequenos negócios, os empreendimentos informais de lá”.

Do todo às partes

É com o mapa mental elaborado por Raimundo Severo da Silva, líder comunitário, instrutor de capoeira e educador físico graduado na Unifor, graças à política de descontos e bolsas de estudos da instituição, que professores da disciplina Responsabilidade Social e Ambiental dão o passo seguinte: convidar alguns dos pequenos comerciantes do Dendê para também irem à sala de aula compartilhar os altos e baixos dos seus negócios, confiando aos estudantes algumas de suas expectativas e limitações, os seus desejos e demandas.

“É a partir daí que alunos e alunas se dividem em equipe para ficar responsáveis por um daqueles comerciantes, apresentando soluções para entraves de seus pequenos negócios. Ao longo do semestre, portanto, cabe a cada equipe desenvolver planos de negócios específicos para seus “clientes”, ao mesmo tempo em que vão criar workshops para capacitá-los. Ou seja, a ordem não é só pensar em como impulsionar os negócios, mas também levar conhecimento aos microempreendedores selecionados”, sublinha o professor Marcus Mauricius.

Na reta final, olho no olho. Cada equipe de estudantes deve apresentar ao seu “cliente” tudo o que pensou e projetou para melhorar aquele negócio. Detalhe: as ideias com maior potencial de aplicabilidade podem se transformar em projetos de extensão e serem financiados pela própria Unifor, como aconteceu com o curso “Arte com papel”, que acabou por integrar a grade de oferta dos cursos gratuitos oferecidos pelo Centro de Formação Profissional da Unifor. “Essa nova disciplina veio a calhar porque todos os comerciantes do Dendê que foram assessorados pelos alunos e alunas da Unifor só têm maravilhas a contar: que agora sabem como vender e propagandear melhor o seu produto, que a apresentação daquilo que vendem e a forma como atendem seus clientes podem ser diferenciais, que mesmo sendo informais devem estar atentos à legislação, que seus negócios podem crescer muito depois de uma simples orientação”, comemora Severo.

O que já é bom pode ficar ainda melhor? Segundo ele, sim. “Se em time que está ganhando ninguém mexe, espero que a Unifor não só permaneça investindo em formação na área de Responsabilidade Social como volte ao Dendê para ampliar essa capacitação no próprio território. Hoje, infelizmente, temos sérios problemas na comunidade quanto à segurança e liberdade de ir e vir. Grupos rivais não permitem, por exemplo, que moradores de um lado do Dendê passem para o outro. Então muitas pessoas não podem acessar a Unifor, porque são proibidas de ultrapassar certos limites. Nosso próximo passo seria levar a Universidade para o Dendê, sobretudo para atender diretamente a cerca de 5 mil pessoas que moram no Residencial Yolanda Queiroz, meio que ilhadas, dada a insegurança”, reivindica o líder comunitário.

*Matéria originalmente publicada na 10ª edição (2022.1) da Revista Unifor.

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Aluno de Comércio Exterior, Gustavo Luna compartilha experiências que teve com a disciplina de Responsabilidade Social (Foto: Arquivo Pessoal)

Útil e necessária. Assim, o estudante do 8º semestre do curso de graduação em Comércio Exterior da Universidade de Fortaleza, Gustavo Luna, 22, refere-se à disciplina Responsabilidade Social e Ambiental, ofertada desde o início de 2021 a estudantes das mais diversas áreas de formação e atuação. “Me interessei em cursar porque o tema responsabilidade social e ambiental está na pauta e na agenda de todas as profissões do mundo hoje. É um conhecimento obrigatório, no sentido de ser uma ética e de reforçar valores como justiça social, equidade e solidariedade. Tudo isso está ligado à construção de uma cidadania e ao desafio global de diminuir e contornar a extrema desigualdade social em que vivemos”, observa.

Para ele, nada mais acertado, portanto, do que as universidades colocarem todo o conhecimento científico gerado nelas a serviço da transformação social, voltando-se prioritariamente ao ambiente que as cercam. “A vocação para o empreendedorismo no brasileiro é nata! Desde muito cedo as pessoas em situação de vulnerabilidade social ou que tem baixa renda procuram se virar, vivendo de ‘bico’ e trabalhando na informalidade. Então, quando a Universidade chega junto injetando conhecimento nesses pequenos negócios e desenvolvendo ainda mais as habilidades desses comerciantes acredito que isso vai gerar, em curto, médio ou longo prazo, mais empregos e renda naquele território. Penso que a educação empreendedora é uma linha de ação fundamental para que esses empreendedores mudem o seu destino e possam garantir seu lugar no mercado de trabalho sem precisar de assistencialismo”, defende Gustavo.

Formadas as equipes em sala de aula, o desafio de centrar esforços e todo um aprendizado acadêmico acumulado para impulsionar pequenos negócios foi abraçado com gosto. À equipe que Gustavo integrava, coube assessorar a empreendedora Gisele, que, mesmo com emprego formal, decidiu investir numa loja virtual de roupas para complementar a renda. “Ela não tinha maiores expertises para usar todos os recursos disponíveis nas redes sociais a favor das suas vendas. Então, no plano de negócios personalizado, sugerimos uma série de ações para promover e publicizar melhor a sua marca. Geramos alguns possíveis conteúdos para ela ter como modelo, criamos um cronograma para uma série de posts e stories, a fim de que pudesse fazer propaganda de forma sistemática e planejada, e também promovemos um workshop sobre marketing digital. Noções sobre legislação também foram compartilhadas, para caso ela venha formalizar o negócio”, descreve o estudante.

O estudante do 5º semestre do curso de graduação em Jornalismo da Unifor, Vinícius Costa Lima, 21, não nega que sentiu o peso da responsabilidade na disciplina que se arvora a interferir e impactar positivamente junto à dinâmica dos pequenos negócios. A ele e sua equipe coube o desafio de assessorar na prática a venda online de empadas da empreendedora Carla Firmino, moradora da Cidade dos Funcionários. “Ela perdia muito tempo e dinheiro fazendo as próprias entregas, porque não compensava pagar iFood ou apps do tipo. Então, no plano de negócios, sugerimos que passasse a usar o aplicativo dos entregadores do próprio bairro, bem mais em conta. Carla percebeu que era possível sim e que ainda ganharia tempo para produzir mais e atender um maior número de encomendas. Foi nosso primeiro acerto com ela, uma alegria geral”, comemora o estudante.

Na sequência, Vinícius e equipe também puderam compartilhar com Carla noções de precificação, em um workshop pensado especialmente para pequenos empreendedores. “Convidamos um profissional para tratar sobre o assunto e ao final percebemos que esses comerciantes passaram a levar seus negócios virtuais mais a sério, mesmo sendo uma segunda fonte de renda. Penso que perceberam o potencial que tinham e se sentiram mais estimulados a seguir melhorando quando tiveram acesso a mais informações e orientações. Isso me leva a concluir que esse papel que fazemos na disciplina pode não ter um efeito prático imediato, mas também é um esforço para mudar a mentalidade das pessoas que estejam acomodadas ou desacreditadas de sua capacidade em gerar seu próprio sustento, à revelia do emprego formal”, acredita Vinícius. 

Para Carla Firmino e suas empadas também foi preparada uma receita de precificação, para que experimente e adote em um futuro próximo ou não. “Entregamos um conjunto de estratégias para que a comerciante possa se preparar gradativamente para um crescimento também gradual, de acordo com sua receita e lucro. Isso já é muito animador para ela, como também a chance real de ter mais visibilidade, já que também damos um upgrade nas redes sociais dela, profissionalizando inclusive o Whatsapp. Por fim, ainda estamos devendo um ensaio fotográfico com a Carla, já que Vinícius também é fotógrafo e decidiu dar mais esse ‘presente’ a ela”, comemora o colega de equipe e estudante da graduação em Ciência da Computação, Leonardo Quezado, 25.

Para ele, o trabalho multidisciplinar em equipe na disciplina Responsabilidade Social e Ambiental é outro ganho que merece destaque. “Cada estudante, com sua expertise, interage e compartilha conhecimentos para uma solução comum. Em termos de aprendizado isso é muito rico para nós porque experimentamos na prática a gestão de pessoas e o próprio exercício da criatividade, duas habilidades fundamentais para o profissional do século XXI, além da empatia, que tem a ver justamente com essa postura de responsabilidade para com o outro, o ambiente que compartilhamos. Saímos dessa experiência de contato e troca com os pequenos comerciantes mais estimulados a não abandonar esses valores quando estivermos administrando nossos próprios negócios ou em cargos de diretoria no mundo corporativo que, aliás, cada vez mais, busca o selo de responsabilidade social”, sublinha.

Há nada menos do que 32 anos atuando como esteticista, Dinah Andrade, moradora da Comunidade do Dendê, não titubeia em dizer que o trabalho de consultoria dos estudantes da Unifor veio em boa hora. “Sempre sobrevivi do mercado da beleza, mas quando tive uma hérnia de disco precisei parar de trabalhar fixo nos salões e clínicas de estética. Então passei a atender em domicílio, fazendo design de sobrancelhas, depilação, limpeza de pele e banho de lua. Com isso, as redes sociais - e principalmente o Instagram - são essenciais pra mim, porque preciso divulgar meu trabalho. E tive essa ajuda especializada dos alunos e alunas da Unifor para aprender a separar meu perfil pessoal do perfil profissional, o que vem me ajudando bastante nessa divulgação”, relata.


Para Michelle Weyne, participar da disciplina possibilitou a prática de habilidades que exercerá futuramente como administradora (Foto: Arquivo Pessoal)

Integrante da equipe que assessorou de perto o empreendimento informal de Dinah, a estudante do curso de graduação em Administração da Unifor, Michelle Weyne, 27, considera que o contato direto de quase seis meses com os pequenos empreendedores do Dendê, através da disciplina de Responsabilidade Social e Ambiental, não só lhe rendeu amizades como a fez sair da caixinha como futura administradora. 

“Trabalhar com comerciantes de pequeno porte é um desafio singular porque estamos tratando com alguém que tem limites financeiros muito significativos. E não estamos habituados a pensar a partir dessa realidade instável e frágil. Então considero que aprendi na prática a encarar uma realidade bem diferente da minha e da que buscava encontrar no mercado de trabalho. Entendi, por fim, que precisamos cada vez mais nos preparar para isso: contornar momentos de crise e pensar no coletivo, em como alavancar a economia criando as condições necessárias para dar sustentabilidade a todo um ambiente de negócios que pode e deve se retroalimentar, a fim de diminuir os abismos criados entre os diversos segmentos sociais”, declara a futura administradora.   

Para ela, o aprendizado foi uma via de mão dupla. “Se conseguimos deixar o perfil e as redes sociais da Dinah mais profissionais e esse pequeno gesto já impactou positivamente no negócio dela imagina o que podemos fazer quando estivermos em cargos de decisão ou chefia dentro de uma grande empresa. Podemos fazer muito mais. E, sim, não é à toa que a área de responsabilidade social e ambiental ganha cada vez mais centralidade no mundo dos negócios. Quem está no topo depende de quem está na base. E descobri que na base há muita potencialidade nos pequenos negócios que precisam ser incentivadas em nome de um crescimento econômico e bem-estar comum”, conclui Michelle.