ter, 26 outubro 2021 16:14
Saiba o que é o capacitismo e por que é importante combatê-lo
Enraizado na sociedade, esse tipo de discriminação contra pessoas com deficiência impede a inclusão e a diversidade
O sufixo nominal "-ismo", de origem grega, cria palavras que designam conceitos de ordem geral, como alcoolismo, ou serve para formar substantivos e adjetivos que exprimem ideias de doutrinas religiosas, sistemas políticos, fenômenos linguísticos e literários, ou terminologias científicas. Ele está presente em palavras como machismo e racismo, que caracterizam atos de discriminação contra mulheres e raças, respectivamente.
Além de compor esses conceitos, o sufixo "-ismo'' também forma a palavra "capacitismo". Porém, ao contrário dos previamente mencionados, esse termo é relativamente novo na sociedade, assim como na própria esfera dos movimentos sociais. O conceito vem, ainda que vagarosamente, ganhando destaque nas mídias sociais e em rodas de conversas e debates, mas o caminho para a sua ampla divulgação ainda parece longo.
De acordo com Luciana Maia, psicóloga e professora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, "o capacitismo é um preconceito dirigido a qualquer pessoa que apresenta uma deficiência, seja ela física, intelectual ou sensorial (...) Como outras formas de preconceito, ele contribui para privar os direitos e a dignidade humana das pessoas com deficiência, determinando e perpetuando desigualdades e injustiças sociais, e contribuindo diretamente para a exclusão social de membros desse grupo", elucida.
Ainda segundo a docente, que também é coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES) da Unifor, o capacitismo é expresso por meio de atitudes negativas e depreciativas, e de comportamentos hostis e discriminatórios dirigidos a qualquer pessoa que apresenta algum tipo de deficiência. Ele também pode ser manifestado sob formas que, a princípio, podem parecer positivas, como a superproteção, a piedade e elogios exagerados dirigidos a essas pessoas.
"Se considerarmos a concepção de deficiência que se baseia no modelo social, é possível incluir as pessoas neurodivergentes sob essa perspectiva. O modelo social da deficiência estabelece que a deficiência é um fenômeno que decorre da interação social entre uma pessoa que apresenta uma característica específica e uma sociedade incapaz de reconhecer as necessidades dela e de equiparar as condições visando superar os obstáculos e promover a participação social", Luciana Maia, psicóloga e professora do curso de Psicologia da Unifor.
Assim, o capacitismo busca atingir a "capacidade" do indivíduo, e está diretamente associado com a ideia normativa do "corpo ideal" e dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade. Ao ser capacitista, o indivíduo retira das pessoas com deficiência (PcD) a sua capacidade e aptidão de realizar tarefas e alcançar a independência, em virtude de sua deficiência.
É preciso informar!
De acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como parte da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, 8,4% da população brasileira acima de dois anos possui algum tipo de deficiência, o que equivale a aproximadamente 17,3 milhões de pessoas.
Mesmo com esse número expressivo, e ações públicas governamentais como a Lei de Cotas, criada em 1991, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído em 2015, o capacitismo ainda não é tão conhecido em território nacional. "Atribuo esse desconhecimento ao fato de a própria luta pelos direitos das pessoas com deficiência ser mais recente se comparado a de outras minorias sociais. De fato, são recentes as principais conquistas legais e políticas das pessoas com deficiência", afirma a psicóloga.
Luciana explica que a perspectiva de autonomia, liberdade e participação social das pessoas com deficiência começou a ganhar mais espaço a partir da "Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência", assinada em 2007. A convenção é um importante instrumento de defesa dos direitos das PcDs, e é o primeiro documento desenvolvido a partir da participação direta das pessoas com deficiência, o que, segundo a docente, é uma grande conquista.
Além disso, esse preconceito se manifesta, principalmente, de maneira velada, e, como mencionado antes, pode ser confundido com elogios e palavras que reforcem conceitos como superação e adaptação. Essas atitudes camuflam o capacitismo, e tornam difícil a propagação de seu significado, o que faz com que ele se torne cada vez mais estrutural e inconsciente. Isso reflete a falta de preparação, informação e propagação sobre o assunto na sociedade brasileira, consequência da forma como as pessoas com deficiência, e as próprias deficiências, são encaradas no país.
Atitudes capacitistas
O capacitismo pode ser manifestado de diversas formas, seja por meio de palavras, expressões, "brincadeiras" ou ações. Alguns termos são, inclusive, bastante utilizados no cotidiano da maioria das pessoas, que, por falta de conhecimento, podem nem imaginar que se tratam de termos preconceituosos. De acordo com Maia, existem muitas atitudes e expressões capacitistas que estão naturalizadas na sociedade e que precisam ser superadas.
"Em relação às atitudes, temos desde formas mais flagrantes, que consideram as pessoas com deficiência como incapazes, defeituosas, imperfeitas. Essas atitudes partem de um modelo de pessoa que segue padrões normativos corporais, intelectuais e funcionais do que é humano. Então, a própria defesa de um corpo normal, de uma forma específica de pensar, perceber e de se comunicar, são atitudes capacitistas. Por outro lado, há atitudes mais sutis, tais como considerar que as pcds são seres especiais, divinos e que precisam ser superprotegidas", informa a docente.
Sobre as expressões, a psicóloga traz exemplos de termos considerados capacitistas e que são usados para se referir diretamente às pessoas com deficiência, como chamar alguém de "deficiente", "aleijado", e "mongol". Existem também provérbios e expressões populares que reproduzem e mantêm vivas as representações capacitistas. Alguns exemplos são: "dar uma de João sem braço", "que mancada!", e "não tem quem diga que você tem uma deficiência, pois é tão inteligente". É importante notar que se referir a uma PcD com o termo "portadora de deficiência" também é considerado capacitista e inadequado.
Formas de combater
De acordo com a coordenadora do LEPES, "o combate ao capacitismo deve envolver, sobretudo, a produção e disseminação de informações que contribuam para mudar as representações da deficiência como algo negativo; a promoção de espaços e contextos de socialização que possibilitem a interação entre pessoas com e sem deficiência; o estabelecimento de normas, leis e procedimentos que expressem o apoio institucional da sociedade, de uma forma geral, e de escolas e empresas, de forma específica, para assegurar a inclusão de pessoas com deficiência".
É fundamental que o conceito seja amplamente discutido nos mais diversos ambientes e contextos, para que, assim, cada vez mais iniciativas sejam criadas para o seu combate e prevenção. Mas esse assunto não deve, de forma alguma, partir apenas de pessoas que sofrem com o capacitismo. Luciana afirma que, embora as pessoas com deficiência devam ser protagonistas da luta por seus direitos, todas as pessoas, com ou sem deficiência, devem se engajar em prol de uma sociedade anticapacitista.
"Então, é papel de todas as pessoas questionar padrões de normalidade, repensar suas próprias crenças e atitudes capacitistas, contribuir para a visibilidade de pessoas com deficiência em diferentes contextos sociais, endossar políticas afirmativas em prol de pessoas com deficiência, combater violências flagrantes e sutis dirigidas a pessoas com deficiência em instituições de ensino, organizações de trabalho e em outros contextos sociais", finaliza Maia.
Falar sobre capacitismo e expor as atitudes preconceituosas que o termo engloba é extremamente necessário. Essa é uma luta de todos. Uma frase muito utilizada pela comunidade de pessoas com deficiência é: "Não basta não ser capacitista. É preciso ser anticapacitista". Afinal, a acessibilidade e a inclusão vão muito além de posts legais nas redes sociais e rampas para cadeirantes (que não deixam de ser importantes).