seg, 18 abril 2022 15:10
Curso de Design de Moda da Unifor é destaque no Dragão Fashion Brasil
Criada por estudantes, coleção selecionada para o “Concurso dos Novos” apresenta desfile inspirado na Lei Maria da Penha
Uma tempestade de ideias agita anualmente o Dragão Fashion Brasil, maior encontro de moda autoral da América Latina, sediado em Fortaleza. E muito desse frescor de criatividade vem do Concurso dos Novos, competição aberta a estudantes de instituições de ensino superior e técnico de todo o país que são desafiados a criar coleções conceituais a partir de um tema pré-determinado. Em 2022, a Universidade de Fortaleza, por meio do curso de graduação em Design de Moda, é uma das seis selecionadas nacionalmente que, partindo de uma pesquisa em torno do tecido 100% algodão, vai levar às passarelas o resultado de uma proposta conceitual que tem a Lei Maria da Penha e as tramas do feminicídio como inspiração.
Para a coordenadora do curso de graduação em Design de Moda da Unifor, Priscila Medeiros, a possibilidade de trazer o troféu para o campus não soa como novidade. “Não é a primeira vez que passamos com louvor pelo crivo de um júri técnico composto por profissionais da imprensa especializada, estilistas, designers e técnicos convidados pelo DFB. Atribuo esse resultado positivo e repetidamente alcançado ao fato de que, desde os primeiros semestres, nossos alunos e alunas já passam a desenvolver projetos de criação, encarando concursos internos, editais e bancas julgadoras formadas por professores”, pontua.
“A moda autoral também é muito estimulada aqui dentro, assim como a valorização da cultura regional e uso de matéria-prima local. Portanto, todo esse universo nos é familiar. Além disso, contamos com a mentoria do nosso corpo docente durante todo o processo seletivo do Concurso do Novos, orientando e instigando nossos estudantes a criarem livremente”, Priscila Medeiros, coordenadora do curso de Design de Moda da Unifor.
Treinada e devidamente autorizada a escapar do lugar-comum quanto à concepção de uma “coleção-cápsula” que deveria ter o algodão como principal matéria-prima, a equipe de estudantes do curso de graduação em Design de Moda achou por bem fazer uso político da própria criatividade, levantando uma bandeira de luta da hora: ao pesquisarem sobre fibra e textura da matéria-prima proposta em edital, Sara Frazão, Caroline Moura, Iara Paulino, Enzo Emanuel, Yury Duarte e Élida Queiroz, estudantes do 4º semestre, chegaram à conclusão de que deveriam homenagear mulheres cearenses de fibra, apontando ao mesmo tempo para um rasgo no tecido das relações sociais que as fazem vítimas de um tipo de violência cada vez mais comum, embora hoje criminalizada: a doméstica.
De olho nos números crescentes de feminicídio no Brasil, a equipe de estudantes do curso de Design de Moda da Unifor criou assim a coleção “Reexistir da Despedida”, tendo como personagem-inspiração a cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que, não à toa, dá nome à Lei 11.340, criada para punir os mais diversos tipos de violência contra a mulher.
“Maria da Penha foi uma vítima emblemática da violência doméstica. Chegou a ficar paraplégica depois de levar um tiro nas costas efetuado pelo próprio marido. Mas mesmo em meio a tanto sofrimento, encontrou forças para denunciar o agressor e buscar justiça não só para ela como para outras mulheres brasileiras vítimas da violência. Foi essa capacidade de resistir, reexistir e reunir forças para se despedir da dor, criando uma maleabilidade capaz de costurar toda uma rede de apoio voltada aos direitos das mulheres, que inspiraram nossos looks”, Sara Frazão, estudante do curso de Design de Moda da Unifor e aluna-monitora.
E se a artesania do macramê, envolta em fio 100% algodão, permeia todas as criações da coleção “Reexistir da Despedida”, há uma das peças que, segundo a equipe, merece destaque e deve abrir o desfile que chega ao DFB entre 25 e 28 de maio próximo: trata-se de um casaco trançado no formato da coluna vertebral. “É uma alusão direta ao local do tiro que levou Maria da Penha a ficar em cadeira de rodas e foi a partir dessa criação que todas as outras vieram à tona, marcadas por muito volume justamente para retratar esse peso que ela carregou e permeia sua história de vida. Mas há, por outro lado, muita fluidez também retratada nas tiras de tecidos que utilizamos e na cartela de cores escolhida, que começa com o laranja vibrante e vai sendo diluída até o marsala. Esse roxo escuro representa as feridas, mas também é a cor da transmutação. E é essa mensagem de força e superação, própria do universo feminino, que queremos passar ao público”, frisa Sara, lembrando que a trilha-sonora do desfile não poderia ser outra senão a do álbum 'A Mulher do Fim do Mundo', de Elza Soares.
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Simbologias sobre tecido
Moda como modo de expressão e comunicação, reflexo do espírito de uma época, imagem alegórica de culturas, saberes, fazeres e valores vigentes. É entendendo a roupa como uma segunda pele, cravada de subjetividade, que as seguidas gerações de estilistas e designers “gritam” o que lhes passa pela cabeça e aguça a sensibilidade. “A moda pode e deve ser política. E cada vez mais ela vem sendo usada como mensageira para quebrar padrões, questionar certas verdades, combater preconceitos ou estereótipos e falar sobre o que se passa no íntimo das pessoas. É uma maneira de afetar e se deixar afetar pelo outro e pelos acontecimentos. Daí porque esse pensamento crítico ligado à moda autoral tem centralidade no curso de Design em Moda da Unifor e vem sendo reconhecido e premiado nacionalmente”, reforça a coordenadora do curso, Priscila Medeiros.
Um soco no estômago. Sem medo de errar, é assim que Caroline Moura, 20, consultora de moda e estudante do 4º semestre do curso de Design de Moda da Unifor define a coleção “Reexistir da Despedida”:
“Tivemos que quebrar a cabeça para tentar traduzir a dor da violência contra a mulher em roupas. Mas com a mentoria dos nossos professores e muita pesquisa dentro do Laboratório de Criação chegamos aos looks de gola alta, que remetem à ideia de sufocamento, aos tecidos permeados por buracos, para dizer dos hematomas e até cordas amarrando as modelos foram usadas para retratar o relacionamento tóxico e abusivo que aprisiona mulheres em todo o Brasil”, Caroline Moura, estudante do curso de Design de Moda .
A moda como instrumento inventivo de luta sim. “Sempre encarei a moda como arte, porque queria fazer teatro, mas acabei me desenvolvendo como figurinista interessada na área têxtil. Então, como profissional em formação também interessada em pesquisa percebo um pensamento disruptivo cada vez mais aguçado”, anima-se a estudante Iara Paulino, 19.
“A moda pensando e gritando por sustentabilidade, igualdade de direitos, representatividade, diversidade, respeito às diferenças. É isso que o Concurso dos Novos afirma a cada ano. E por isso amamos tanto fazer parte desse evento, que é vitrine para o que pensamos, mas também sentimos e queremos compartilhar”, Iara Paulino, estudante do curso de Design de Moda.
Para a colega de turma Élida Queiroz, 22, aprender sobre ativismo político e direitos das mulheres através da coleção “Reexistir da Despedida” já representa um prêmio em si. “Essa formação da Unifor que nos faz crescer não só como profissionais, mas como pessoas, privilegiando o lado humano e a responsabilidade social que deve ser comum a todas as profissões, é um aprendizado que levamos para a vida e enriquece muito nossa atuação profissional”, defende.
“Conhecer a história de vida da Maria da Penha, desde quando ela se apaixonou e se casou, para então sofrer abusos e violências que culminaram no trágico tiro na costela e o confinamento na cadeira de rodas, fez também a gente entender o verdadeiro significado das palavras luta e resistência. Essa realidade impactante precisa ser lembrada para impactar e indignar outras tantas mulheres, quebrando a cultura do silenciamento ainda tão presente entre nós”, Élida Queiroz, estudante de Design de Moda.
Eles por elas
Há dois jovens alunos do curso de graduação em Design de Moda da Unifor fazendo a diferença na equipe criadora da coleção “Reexistir da Despedida”, selecionada para concorrer no Concurso dos Novos do DFB: Enzo Emmanuel, 20, e Yury Duarte, 22, se envolveram tanto quanto as colegas mulheres na pesquisa em torno da Lei Maria da Penha e de feridas sociais ainda abertas quando se mergulha fundo no universo feminino, como o feminicídio. Para ambos, o trabalho realizado no campus, portanto, também foi de desconstrução.
“Somos uma geração especialmente preocupada com o futuro, porque caiu no nosso colo a tarefa de conter a destruição do planeta. Mas mesmo tendo passado por uma pandemia, algo que nos fez olhar muito para dentro de si, ainda precisamos cuidar melhor do futuro das relações entre homens e mulheres. Ainda é difícil parar para pensar em patriarcado e machismo, por exemplo. Mas a moda pode sim ajudar a mudar certos comportamentos entranhados em nossa cultura e é esse caminho que quero seguir: moda para fazer pensar. Tudo para que a gente consiga evoluir como sociedade”, Enzo Emmanuel, aluno do curso de Design de Moda da Unifor e monitor do Ateliê de Confecção e Costura.
Para o colega Yuri Duarte é urgente praticar inclusão social nas passarelas. “Me deixa muito feliz tratar não só de feminicídio como de acessibilidade quando criamos a coleção Reexistir da Despedida, inspirados na força da Maria da Penha”, compartilha.
“Precisamos abrir espaço no mundo da moda para a vida real e para corpos reais. Por isso a cadeira de rodas pode e deve sim desfilar, porque a moda deve ser para todos e todas. Qualquer pessoa pode ser modelo, vestir o que quer e reivindicar representatividade no vestir. E a minha geração quer estar cada vez mais atenta a tudo o que é silenciado, violentado ou excluído. São os nossos sentimentos, as nossas dores e os nossos desejos, individuais e coletivos, que merecem holofotes e prêmios”, Yuri Duarte, aluno do curso de Design de Moda.
Reexistir da Despedida
Me despeço do que me amarra, dos nós que reexistem em meu corpo.
Resistem tão fortemente quanto aos fios grossos de algodão que formam o macramê. Fios que me cercam, me limitam, me sufocam.
Despeço-me de toda a alegria, laranja, inocente e infantil, que um dia floresceu sobre meu ser, mas também dou adeus ao vermelho de sangue, que insistia em manchar a cada passo que eu dava.
O escuro, que prende meus passos, que me destrói como uma peste, deles eu me despeço para agora dar lugar para a transmutação. Aos poucos, sem eu perceber, foi me cercando e me dando coragem, me calçou e guiou de branco, aos poucos eu dominei essa transformação. Eu me fiz transformar.
Ali, na inquietude do novo, do medo e da esperança, me fiz Roxo. Cheia de dualidade, mas acima de tudo, cheia de coragem.
Sou Maria da Penha!
Mas sou Fátimas, Rosas, Franciscas.
Sou todas as mulheres que sofreram nas mãos de quem nos juraram amor.
Me vesti de coragem e lutei.
Sou a resistência, não parei diante das limitações.
Sem saber, me deram rodas e assim, fui mais longe do que pensaram.
Sou a mulher do fim do mundo.