qua, 13 agosto 2025 11:44
Centro de Formação Profissional promove inclusão e reduz desigualdades em Fortaleza
Projeto social oferece cursos gratuitos para pessoas de baixa renda, transformando trajetórias e ampliando oportunidades no mercado de trabalho

Em 2025, o Brasil foi apontado como o país mais desigual do mundo, de acordo com o Relatório Global da Riqueza divulgado pelo banco suíço UBS. A análise envolveu 56 países que concentram 92% da riqueza global.
A desigualdade que atravessa o território brasileiro, de Norte a Sul, tem raízes profundas no período colonial e ainda se reflete de forma evidente na sociedade atual. Essa realidade é visível nas paisagens urbanas, onde favelas e condomínios de luxo coexistem lado a lado, ocupando o mesmo espaço, mas revelando realidades completamente distintas.
A disparidade social no país vai muito além da geografia urbana — ela também se revela na educação. Mais de 9 milhões de jovens entre 15 e 29 anos abandonaram a escola em 2023, de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 2024.
Entre os principais motivos para a evasão escolar, a necessidade de trabalhar foi a razão mais citada pelos homens, representando 53,5% dos casos. Já entre as mulheres, 32,6% deixaram os estudos por gravidez, acúmulo de tarefas domésticas ou por assumirem cuidados com crianças, adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência.
Uma outra pesquisa do mesmo órgão, realizada em 2019, reforça o impacto das desigualdades sociais no acesso à educação: o abandono escolar entre jovens mais pobres é oito vezes maior do que entre os mais ricos. Os dados evidenciam que a escassez de recursos financeiros permanece como uma das principais barreiras para a continuidade dos estudos, dificultando a mobilidade social.
Na contramão desse cenário, o Centro de Formação Profissional (CFP) da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, surge como um agente de transformação, envolvendo alunos e funcionários da instituição na promoção do ensino de qualidade. Desde 2002, o projeto oferece, semestralmente, cursos profissionalizantes gratuitos voltados para a população de baixa renda na capital cearense.
Sob a coordenação da Divisão de Responsabilidade Social da instituição, vinculada à Vice-Reitoria de Extensão e Comunidade Universitária (Virex), o CFP integra um conjunto de ações que têm como objetivo reduzir desigualdades históricas. Para a chefe da Divisão, Maely Borges, iniciativas como essa são fundamentais para democratizar o conhecimento e fomentar a inclusão.
“Promovemos oportunidades e ampliamos o acesso a saberes que muitas pessoas talvez não teriam por outros caminhos. Ao envolver nossos alunos de graduação nesses projetos, contribuímos para a formação de profissionais conscientes do impacto social de sua atuação. Esse movimento fortalece a cidadania e a inclusão”, afirma.
Maely Borges, chefe da Divisão de Responsabilidade Social, durante ação na Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)
Esta reportagem retrata as trajetórias de Tatiana, Ricardo e Valmir, que, ao participarem do CFP, mudaram profundamente suas perspectivas de futuro. Suas histórias evidenciam como projetos sociais como esse transcendem a simples qualificação, atuando como pontes para novas oportunidades, ampliando redes e fortalecendo a confiança profissional.
Tatiana Cavalcante, 39 anos: "Me abriu portas"
A história mais recente entre os participantes do CFP é a de Tatiana. Em 2025, ela integrou a primeira turma do ano no curso de Auxiliar de Sala, realizado entre março e maio. A partir dessa experiência, não apenas aprofundou seu vínculo com a educação infantil, mas também abriu novas portas em sua trajetória profissional.
“Fiquei sabendo do curso por uma amiga, e o que me motivou foi a oportunidade de crescer como profissional — e acima de tudo, como ser humano”, conta.
Tatiana atua na Escola Yolanda Queiroz (Foto: Ares Soares)
Apaixonada por crianças, Tatiana já havia trabalhado em escolas anteriormente, mas foi no CFP que encontrou uma formação mais sólida. “Sempre gostei de trabalhar com crianças, mas através do curso eu me aprofundei mais", afirma.
Um dos principais desafios do curso, segundo ela, foi a produção de atividades pedagógicas individualizadas, especialmente voltadas para crianças com perfis diversos. “Consegui entender mais sobre crianças atípicas, consegui abrir minha mente e compreender melhor esse universo."
Pouco após a conclusão do curso, Tatiana teve a oportunidade de ingressar na área pedagógica da própria Unifor, atuando na Escola Yolanda Queiroz, instituição de educação básica vinculada à universidade. “Foi uma riqueza muito grande, profissionalmente. Hoje faço parte da equipe Yolanda Queiroz, que reúne profissionais de excelência”, destaca com orgulho.
Inspirada pela formação e pela vivência em sala de aula, ela pretende seguir estudando: “Tenho planos de fazer Pedagogia, que é uma área com a qual sempre me identifiquei e que eu amo”. A mensagem que ela deixa para quem busca transformação é direta e poderosa: “Acreditem nos seus sonhos, estudem e corram atrás".
Ricardo Mendes, 49 anos: "Depois do CFP, eu sou outra pessoa"
Em 2002, desempregado e determinado a mudar de vida, Ricardo deixou as proximidades da Avenida Aguanambi para se instalar perto da família, na comunidade do Dendê, localizada no Bairro Edson Queiroz — território vizinho à universidade.
A mudança coincidiu com a criação do CFP, que, em seus primeiros anos, tinha sede dentro da comunidade. “Cheguei junto, no mesmo ano em que o CFP começou. Estava sem trabalho e me inscrevi em um curso atrás do outro."
Há 15 anos, Ricardo dedica-se ao trabalho de garçom na Unifor (Foto: Ares Soares)
Sua primeira capacitação foi Plantas Arquitetônicas — área na qual não tinha formação prévia, mas que, graças à didática simples e clara, não representou obstáculo: “Não tive dificuldade, mesmo sem nunca ter mexido com isso antes”.
Posteriormente, ele seguiu se qualificando em diversos outros cursos, como o de Eletricista e Informática Básica. Para ele, a soma desses aprendizados “agrega valor” independentemente da área de atuação: “Seja na cozinha, como barman... Tudo acaba servindo para alguma coisa. O mais importante [...] não é apenas o conteúdo, mas a prática”.
Ele relembra que a motivação dos colegas de turma ia além da gratuidade e da proximidade: “Tinha gente que vinha de bairros a 20, 30 quilômetros de distância. E a vontade era a mesma".
Ricardo ministrando aula no CFP (Foto: Arquivo Pessoal)
Após tantas aulas, Ricardo tornou-se professor. Durante cinco anos, atuou como instrutor no CFP, onde foi responsável pela produção das apostilas utilizadas nas turmas, além de desenvolver planilhas e colaborar na criação de materiais didáticos. “Eu sendo um garçom, comprei um notebook para fazer o curso. Passei por tudo isso sem saber, e passei com nota 10”, conta, orgulhoso.
“Antes do CFP, eu era uma pessoa. Depois do CFP, eu sou outra”, resume. Para ele, os cursos profissionalizantes são ferramentas de autoconhecimento, planejamento de futuro e preparo emocional: “Você começa a enxergar onde quer chegar, como quer ser visto, como quer crescer".
Ao longo dos anos, e após diversas especializações, Ricardo ingressou na instituição como garçom, função à qual dedica-se há 15 anos.
Valmir Bezerra, 43 anos: "Através do curso, conheci a responsabilidade social"
Em 2011, recém-formado em Administração, Valmir já trabalhava na Universidade de Fortaleza. Na época, era responsável por operar o sistema de transmissão da TV Unifor, a televisão laboratorial da instituição voltada à prática dos alunos de Jornalismo, Cinema e Audiovisual, Publicidade e Propaganda, Marketing, Arquitetura e Urbanismo, além dos cursos de Moda (tecnólogo e bacharelado). Foi por meio da comunicação interna que ele conheceu o projeto.
Valmir no curso de Manutenção de Computadores (Foto: Divulgação)
Interessado pela área da tecnologia e motivado pela ideia de aprender a consertar seu próprio equipamento, ele decidiu se inscrever no curso de Manutenção de Computadores. “O que me motivou foi o fato de me interessar muito por computadores e poder fazer um curso no meu próprio local de trabalho”, relembra.
No antigo cargo, Valmir cumpria uma jornada de seis horas diárias e pensava em utilizar o conhecimento técnico obtido na formação para complementar o salário. “Pensei em gerar uma renda extra consertando os computadores de outras pessoas.”
Porém, o principal desafio foi conciliar o trabalho com o horário das aulas. “O curso começava bem na hora em que minha jornada de trabalho estava terminando. Apesar de ser no mesmo local, devido ao deslocamento, acabava chegando um pouco atrasado.”
Ainda assim, conseguiu concluir a formação e colocar o que aprendeu em prática — especialmente em benefício próprio. “Consegui consertar meu próprio computador várias vezes”, conta.
Valmir destaca que a importância da qualificação profissional vai além do currículo (Foto: Ares Soares)
Embora não tenha seguido profissionalmente na área de manutenção, a profissionalização representou um marco importante na trajetória de Valmir. Foi por meio do projeto que ele conheceu a Divisão de Responsabilidade Social da Unifor. Com o tempo, uma vaga surgiu no setor, ele se candidatou e foi selecionado. Desde então, integra a equipe, desempenhando a função de planejar e elaborar os cursos ofertados.
“De certa forma, sim, (o CFP mudou a minha trajetória) porque através do curso eu conheci o setor de Responsabilidade Social [...] Uma das minhas funções é elaborar, junto com a equipe, os cursos que são ofertados”, explica.
Para Valmir, a importância da qualificação profissional vai além do currículo. É uma ferramenta de transformação. “Nos dias de hoje, o conhecimento é muito importante para qualquer área. Os cursos ofertados são pesquisados e estudados para que estejam sempre de acordo com as tendências de mercado.”
Ele acredita que iniciativas como essa podem mudar vidas — e já viu isso acontecer. “Já vimos vários casos de alunos do CFP que se inscreveram, conseguiram emprego, depois fizeram faculdade na própria Unifor e realmente mudaram de vida.”
O conselho que deixa para quem ainda hesita é direto: “Não perca a oportunidade [...] Fazer um curso de qualificação gratuito pode ser um divisor de águas na sua vida".