Entrevista Nota 10 : Jesús Prieto de Pedro e os avanços internacionais no âmbito do direito cultural

seg, 23 setembro 2024 17:44

Entrevista Nota 10 : Jesús Prieto de Pedro e os avanços internacionais no âmbito do direito cultural

Jurista e professor espanhol fala sobre as questões históricas e o atual estágio do direito da cultura, assim como o papel de eventos acadêmicos para o debate e evolução do tema


Jesús é vice-presidente de Patronato na Fundación Gabeiras para el Derecho y la Cultura (Foto: Arquivo pessoal)
Jesús é vice-presidente de Patronato na Fundación Gabeiras para el Derecho y la Cultura (Foto: Arquivo pessoal)

Em 2024, a 13ª edição do Encontro Internacional de Direitos Culturais (EIDC) ganhou dupla ampliação internacional, contando com atividades em outros dois países. Além da novidade com a “Fase Portugal” nos dias 19 e 20 de setembro, em Lisboa, a associação com o II Congresso Ibero-Americano de Direito da Cultura leva o evento à Universidade Autônoma de Tlaxcala, no México, de 14 a 16 de outubro.

A parceria é um movimento da Secretaria-Geral Ibero-Americana e da Fundación Gabeiras para el Derecho y la Cultura. O espanhol Jesús Prieto de Pedro, vice-presidente do Conselho Curador da fundação internacional, surge como ponte nas conversas, participando ainda do painel “Patrimônio Cultural na Iberoamérica” na “Fase Portugal” do EIDC.

Um dos mais importantes juristas da temática a nível mundial, Jesús se refere à associação entre os eventos acadêmicos como “uma magnífica forma de afirmar o valor do Ibero-americano”, o que pode ser academicamente traduzido como importantíssimas atividades universitárias de internacionalização.

O EIDC é realizado anualmente pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza – instituição da Fundação Edson Queiroz –, por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais, ambos liderados pelo professor Humberto Cunha Filho. Além das realizações em Portugal e no México, o evento ainda conta com a tradicional programação em solo brasileiro, no campus da Unifor, de 25 a 29 de novembro.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, conversamos com Jesús, que também é presidente da Corte Iberoamericana para la Mediación y el Arbitraje de las Industrias Creativas e docente da Universidade Carlos III de Madrid (UC3M). Ele fala sobre as questões históricas e o atual estágio do direito da cultura, assim como o papel de eventos acadêmicos para o debate e evolução do tema.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — O I Congresso Ibero-Americano de Direito da Cultura foi realizado em 1999, na Espanha. Quais os principais impactos ele produziu neste quarto de século?

Jesús Prieto — É muito difícil avaliar o impacto de um evento científico como um Congresso. Talvez um método simples seja comparar o antes e o depois do congresso de 1999 e ver se existem diferenças significativas. Para tal, é necessário diferenciar o que tem a ver com o desenvolvimento legislativo e as políticas culturais e o que, por outro lado, tem a ver com o desenvolvimento acadêmico e a pesquisa em direito da cultura.

No que diz respeito ao desenvolvimento normativo, deve-se reconhecer que o Congresso de 1999 caiu num terreno já fértil. No final do século XX, os países ibero-americanos já tinham registrado grandes progressos na legislação cultural, sobretudo nas Constituições. Constituições como as da Colômbia de 1991, do Brasil de 1988, do Peru de 1982 e do Panamá de 1980 reservaram um espaço de destaque para os direitos e princípios da cultura. E tinham também leis antigas sobre outros assuntos, como a propriedade intelectual, o patrimônio cultural, o direito cinematográfico e demais temas. Ora, é certo que, a partir dos anos 2000, se observa um processo de renovação e atualização regulatória, bem como um enorme salto no projeto cultural das novas constituições (Bolívia, Equador, reforma constitucional do México em 2012).

Pode dizer-se que o fato de a Carta Cultural Ibero-Americana, em 2006, ter prosperado e ter sido adotada unanimemente foi facilitado pelo clima favorável que se gerou na região em torno dos benefícios que o direito traz à cultura e às artes.

Estes desenvolvimentos são consequência do Congresso? Seria um exagero dizê-lo, mas também é verdade que esta influência existiu, embora não se possa afirmar quanto foi; e, em caso algum, se poderia negar outras numerosas e importantes influências internas dos países e das regiões.

Pelo contrário, quando se trata de estudo e investigação, o impacto tem sido fundamental e indiscutível. Tem sido notável a elaboração de livros, estudos, pesquisas e teses de doutoramento nos dois lados do Atlântico, quando antes disso a massa crítica científica doutrinal era muito escassa. E não é um avanço pequeno, porque tem um grande valor simbólico, o de ter consolidado a expressão Direito da Cultura.

Entrevista Nota 10 — Que motivos levaram os organizadores a realizarem uma segunda edição do evento, com a parte presencial sediada no México?

Jesús Prieto —  O II Congresso Ibero-Americano de Direito Cultural pretende realizar uma reflexão geral sobre todas as questões que têm a ver com o direito e a legislação cultural, e não focar apenas em questões específicas ou setoriais. Por quê? Pois bem, porque já passaram muitos anos desde o congresso anterior e, além disso, a cultura e as suas áreas conheceram inovações notáveis ​​e, em alguns casos, profundas neste período.

É certo que há temas e questões jurídicas que se mantêm e, mesmo assim, necessitam ser atualizadas. Mas as últimas três décadas têm sido anos de uma certa vertigem jurídica conceitual que traz, para além, claro, dos direitos culturais, da diversidade cultural, da sustentabilidade e da transversalidade da cultura, a emergência da inteligência digital e artificial na vida cultural.

Por este motivo, o Congresso está estruturado em duas secções, uma de conferências gerais e outra de mesas-redondas temáticas. As conferências gerais, das quais são 12, centram-se nas questões mais estruturais do direito da  cultura (direitos culturais, a cultura como bem público global, a liberdade de criação artística, o impacto na cultura da sociedade digital e da inteligência artificial, os direitos dos povos indígenas, o financiamento da cultura, as instituições, as discriminações sistêmicas na vida cultural, os direitos de autor etc).

Por outro lado, as 18 mesas-redondas tratam de temas mais específicos que desenvolvem ou especificam os temas gerais anteriores (a legislação das artes plásticas e visuais, o patrimônio cultural dos museus, arquivos e bibliotecas, o regulamento do cinema, da música, das artes performativas e do livro, da cultura comunitária etc).

Entrevista Nota 10 — Na sua opinião, qual o estágio atual dos direitos culturais na Ibero-América? Eles continuam sendo “os filhos pródigos dos direitos humanos”, como o senhor afirmou em 2014, em entrevista concedida à revista Observatório, do Itaú Cultural?

Jesús Prieto —  É lícito reconhecer que foram os países ibero-americanos que lideraram e avançaram na normalização e desdramatização dos direitos culturais através de suas Constituições, leis e documentos culturais. A Europa manteve, praticamente ao longo de todo o século XX, uma atitude defensiva e temerosa face aos direitos culturais, por considerar que eram direitos coletivos com grande perigo de engolir os direitos individuais. No entanto, nos últimos 25 anos, assistiu-se a uma mudança lenta, mas ininterrupta na Europa, creio que devido, em grande parte, à normalidade e ao equilíbrio com que os direitos culturais se foram estabelecendo no espaço ibero-americano. 

A chave fornecida pelos países ibero-americanos – vários dos quais já incluíram, explícita ou implicitamente, esta categoria de direitos em suas Constituições – está na harmonização dos chamados direitos culturais coletivos (prefiro falar de direitos comunitários) e direitos culturais individuais. É certo que a tradição histórica dos países americanos tem um grande peso na comunidade e que na tradição europeia tem o indivíduo. Mas ambos os pólos podem e devem ser combinados. A comunidade facilita o desenvolvimento das formas culturais que geram a vida humana em grupo e a liberdade pessoal permite que, no interior, os membros do grupo não deixem de gozar da sua liberdade de autodeterminação pessoal. E que, no exterior, continuam a preservar a sua liberdade de escolha cultural, tal como expresso na Declaração dos Direitos Culturais de Friburgo.

A afirmação que fiz sobre os direitos culturais como “o filho pródigo dos direitos humanos” situa-se naqueles anos do início do século atual, quando a Europa começava a ser receptiva a esses direitos. Foi uma forma de assinalar esta reconciliação familiar, em contraste a outras declarações menos esperançosas (Symonides e Meyer Bisch) com as quais tinham sido descritas anos antes, como os “direitos culturais, uma categoria esquecida” ou “uma categoria subdesenvolvida de direitos humanos”.

Entrevista Nota 10 — Está nos planos do II Congresso Ibero-Americano de Direito da Cultura propor a criação ou renovação de documentos importantes para o universo cultural, como a Carta Cultural Ibero-Americana?

Jesús Prieto —  A Carta Cultural Ibero-Americana, aprovada em Montevidéu, em 2006, é um documento único e singular no mundo, pois é uma declaração referente a um dos grandes e significativos espaços culturais do planeta. E, sobretudo, porque é um texto que toma a cultura como um todo global e integrado, ao contrário, por exemplo, dos da UNESCO, que abordam a cultura de forma temática ou setorial. Por isso, para além do seu pressuposto político, social e de cidadão, a Carta deveria receber no Congresso uma proteção acadêmica científica que não foi proposta até agora, ao contrário do que aconteceu com o Direito da Cultura, e que poderia significar uma reavaliação dos seus objetivos.

Na minha opinião, em grande medida o texto ainda é válido, apesar dos quase 20 anos que passaram desde a sua adoção. Mas também seria possível incorporar um breve anexo ou protocolo na Carta que a abordasse e atualizasse em alguns aspectos muito específicos. E seria também interessante que o Congresso apresentasse sugestões e propostas de desenvolvimentos regulamentares para os países da região, como a elaboração de um tratado regional para o desenvolvimento de alguns pontos específicos da Carta que abordem problemas que necessitam de fortes tratamentos regulamentares, de forma a lhes conferir uma força jurídica superior.

Entrevista Nota 10 — O II Congresso Ibero-Americano de Direito da Cultura e o XIII Encontro Internacional de Direitos Culturais, realizado anualmente pela Unifor, resolveram associar-se. O que motivou esta parceria e o que se espera dela?

Jesús Prieto —  Os congressos e, em geral, os eventos académicos cumprem diversas funções. Promovem a divulgação e o debate do conhecimento, promovem a investigação, estimulam novos projetos e tecem redes da comunidade científica.
É claro que o II Congresso visa atingir estes objetivos. E uma forma de o praticar é apresentar eventos acadêmicos que acontecem praticamente ao mesmo tempo, como o Congresso Mexicano e os Encontros de Fortaleza e Lisboa.

Esta associação é uma magnífica forma de afirmar o valor do Ibero-americano que, neste campo dos direitos culturais, tem sabido ser pioneiro no mundo em muitas questões e estar na linha de criar um direito da cultura com identidade própria relativa à história e à singularidade dos seus povos e comunidades, como, por exemplo, a consideração dos direitos culturais.