O cuidado no campo do sensível

ter, 31 agosto 2021 10:52

O cuidado no campo do sensível

Saiba como a ciência psicológica tem se tornado cada vez mais fundamental na promoção da saúde humana 


Os cuidados psicológicos preventivos e interventivos estão entre as preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Ilustração: Getty Images)
Os cuidados psicológicos preventivos e interventivos estão entre as preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Ilustração: Getty Images)

De profissão elitizada a serviço essencial de promoção à saúde integral do ser humano. No Dia do Psicólogo, relembrado a cada 27 de agosto, a Psicologia pode comemorar sua notória popularização, além de uma crescente capilaridade em meio a diversos campos de trabalho. Tudo porque, da mesma forma que o século XX foi dominado pela Física, há quem aponte que o século XXI, fortemente marcado pela investida do capital sobre a subjetividade e as emoções, é da ciência psicológica.

Na Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, a psicóloga e coordenadora do curso de graduação em Psicologia, Anna Karynne Melo, consegue aferir como e por que os cuidados psicológicos, sejam eles preventivos ou interventivos, ganham cada vez mais centralidade entre as preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS): é que segundo estimativa do próprio órgão, a depressão se tornaria, até 2020, a doença mais incapacitante do planeta, já que os números gerais cresceram 18% entre 2005 e 2015, sendo o Brasil campeão de registros na América Latina e o segundo maior das Américas.  

“A depressão, o estresse, o pânico e outras psicopatologias levarão mais e mais pessoas a precisarem do sistema de saúde, sendo estas as principais causas de afastamentos do trabalho e de comprometimento da funcionalidade social. Não é à toa, portanto, que ao longo da história da profissão do psicólogo sua atuação também foi sendo ampliada para diversos campos”, acentua a professora. 

“Antes restrito à clínica ou ao campo da psicoterapia, hoje é possível e necessário pensar o profissional de psicologia na escola, na comunidade, nas instituições de saúde, no judiciário, nos hospitais, nas empresas públicas e privadas, entre outros locais. Tamanha diversificação mostra como os temas saúde mental e sofrimento psíquico estão organicamente infiltrados em todas as instituições permeadas pelas relações humanas”, Anna Karynne Melo, coordenadora do curso de Psicologia da Unifor. 

Para Anna Karynne, a pandemia da Covid-19 também já representa um divisor de águas quanto à necessidade vital da Psicologia em momentos de crise, já que lhe caiu no colo o desafio de dar suporte psíquico à população global em meio a um dos capítulos mais disruptivos da história. “Isolamento social, ensino virtual, convivência familiar, violência doméstica, dificuldades de acessibilidade virtual, exclusão digital, luto, perdas... ficamos sem saber como lidar com tudo isso ao mesmo tempo em um cenário adoecedor que trouxe consequências presentes e futuras para a saúde global. Assim é que surgiram de imediato pesquisas sobre saúde mental, bem como possíveis intervenções. A Unifor foi uma instituição que logo no início da pandemia lançou um edital de pesquisa para financiar, com recursos próprios, estudos voltados aos impactos físicos e emocionais da Covid-19. Nós, psicólogos, tivemos que propor novas modalidades para atender as demandas emergentes, como o atendimento virtual, por exemplo. E isso também resultou em revisão e reinvenção da nossa prática e dos próprios processos formativos”, lembra.

Na Unifor, o curso de graduação em Psicologia ainda tornou possível o projeto Escuta Solidária, realizando atendimentos de curta duração com estudantes que passavam por algum tipo de sofrimento psíquico decorrente da pandemia. “Foi uma forma de também dar retorno à nossa comunidade acadêmica, tentando promover a saúde mental na universidade inclusive com a colaboração de nossos egressos”, pontua. Ciente de que é na sala de aula que o psicólogo e a psicóloga do futuro começam a ser esculpidos, a coordenadora também vê como oportuna a mudança da matriz curricular que passa a vigorar a partir de 2022.

“A ordem agora é ampliar ainda mais os conhecimentos e possibilidades da atuação do psicólogo. O curso de graduação em Psicologia tem utilizado metodologias ativas que favorecem o desenvolvimento de habilidades e competências de excelência, primando pela ética, cidadania e protagonismo em ações sociais, de forma que impactem positivamente na vida social. Não é à toa que as práticas de estágio já estão presentes desde o primeiro semestre, possibilitando o contato e a inserção em campo. Com a nova matriz, teremos a curricularização da extensão em várias disciplinas, mais horas práticas e ciclos avaliativos”, adianta Anna Karynne. 

A busca, segundo ela, é por formar profissionais comprometidos com a promoção da saúde em seu caráter biopsicossocial. Autônomo para compor, ao longo do curso, o seu próprio processo de aprendizagem, o aluno ou aluna da Unifor faz-se, portanto, íntimo da interdisciplinaridade e capaz de escolher, com maior segurança, campos específicos de atuação, a partir das ênfases apontadas pelo curso: processos clínicos e intervenções em saúde, processos educativos e sociais, processos em gestão e saúde do trabalhador. 

O psicólogo ou psicóloga do futuro será cada vez mais capaz de atuar em equipe com profissionais de outras áreas, ganhando espaço em nichos diversos, como o esporte, por exemplo. Nos jogos olímpicos, por exemplo, ficou evidente como a psicologia também é fundamental para a manutenção da saúde mental dos atletas que sofrem com pressões e auto-cobrança de toda ordem ”, conclui Anna Karynne, defendendo a terapia como cuidado tão essencial no dia a dia quanto os exercícios físicos ou a boa alimentação.

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Séculos de auto-análise. E enfim a ciência psicológica que nasceu em laboratório e levou a cabo experimentos de base neurofisiológica em animais, levantando hipóteses a partir de treinamento e comportamentos observáveis ou explicáveis, deu lugar àquela que passou a compreender o humano como um contínuo, ou seja, um ser que se transforma continuamente e é atravessado por relações interpessoais e experiências de afetividade que transcendem a lógica pragmática das explicações ou dos diagnósticos fechados. 

Era o início de um longo caminho até o fenômeno contemporâneo da “deselitização” da Psicologia. “Fomos levados a “sair das nossas torres de marfim”, a expandir nossa atuação para um maior de pessoas e trabalhar numa perspectiva mais crítica, promotora da autonomia e do protagonismo, além de nos voltarmos à luta pela garantia dos direitos fundamentais da população. No Brasil, foi no final da década de 1970 e início dos anos 1980, a partir da inserção gradual da Psicologia nas políticas de saúde e assistência social, bem como da nossa inserção no terceiro setor, é que aqueles sem condições financeiras de pagar por atendimento particular em consultórios passaram a acessar a psicoterapia. E assim é que começamos a trabalhar com populações vulnerabilizadas, em situação de rua ou vítimas de violência, dentre outros públicos”, contextualiza a coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP) da Unifor, professora Normanda Araújo

Para ela, o movimento de abertura e ampliação dos campos de atuação da Psicologia obedece a um fluxo interno e externo a um só tempo. Tanto se deve à atuação de profissionais e pesquisadores da Psicologia preocupados com a construção de uma ciência alinhada com o bem-estar da população como, externamente, resulta da crise econômica, diminuição de demandas pelo atendimento clínico e abertura de postos de trabalho em outros contextos. Entre altos e baixos, há de comemorar: a terapia não mais figura como artigo de luxo, ao mesmo tempo em que psicólogo já não trabalha fechado em si. 

“Ao trabalharmos com processos psicossociais relacionados à saúde, clínica, educação, trabalho, lazer, gênero e sexualidade, dentre outros, é natural que novas demandas surjam a partir das transformações sociais que diariamente vivenciamos. Isso impacta inclusive na práxis em si do psicólogo”, destaca Normanda. 

“A reflexão que faço é que precisamos estar atentos a essas transformações sociais e a esses impactos sobre o bem-estar individual e coletivo. As adaptações e (re)adequações no nosso fazer devem prezar pela reflexão crítica, teórica e ética das ações que propomos”, Normanda Araújo, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor.

Capítulo à parte na história global, o combate à pandemia da Covid-19 e suas conseqüências não poderiam deixar de mobilizar saberes e fazeres no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unifor. Entre 10 projetos escolhidos para financiamento científico pela Fundação Edson Queiroz, através da Diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (DPDI) da Unifor, três estão diretamente voltados à saúde mental: Violência de gênero no isolamento social da pandemia da Covid-19: Uma proposta de intervenção em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade e risco, coordenado pelo psicanalista e professor Leonardo Danziato; A Covid-19 e o isolamento social: os impactos sobre a saúde mental, o uso do tempo e a relação pessoa-ambiente no domicílio, sob coordenação da professora Cynthia de Freitas e Saúde mental na Universidade: Intervenções psicológicas com universitários diante dos impactos da Covid-19, capitaneado pela professora Virginia Cavalcanti. 

“Desde o início da pandemia, não paramos de desenvolver estudos e intervenções diversas no PPGP, para além dos projetos contemplados em edital de financiamento com recursos próprios da Unifor. Investigamos desde o papel dos sonhos na elaboração emocional dos efeitos da pandemia até as repercussões da pandemia na vida da população brasileira e nas famílias em situação de vulnerabilidade social; além de estudos acerca da desigualdade de gênero e impactos psicossociais da pandemia. São pesquisas precursoras no nosso campo de saber e que certamente vão pautar ações e políticas nas esferas pública e privada”, assegura Normanda.
 

Graduação, mestrado e doutorado em Psicologia na Unifor. Aos 40 anos, a psicóloga Geórgia Feijão não tem dúvidas de que valeu a pena cada hora de estrada que enfrentou de Sobral, cidade-natal, até Fortaleza, para enfim tornar-se psicóloga. A realização pessoal não se restringe ao título em si. E nem mesmo à qualificação de excelência, reiterada em três diferentes momentos da vida. Inestimáveis mesmo, ela enfatiza, foram o mergulho na própria capacidade de autoconhecimento, assim como as vivências que, durante toda a sua formação, puderam lhe revelar inúmeras possibilidades de ser e estar no mundo.      

“Quando escolhi cursar Psicologia na Unifor o senso-comum dizia que viveria ali uma formação elitista, por ser uma universidade particular. Falácia total. Foi lá, entre estágios no Hospital do Câncer e Maternidade-Escola, além do atendimento à comunidade do Dendê no próprio NAMI, que pude ter contato com políticas públicas na área da assistência à saúde. Portanto, não foi à toa que, ao concluir a graduação, prestei concursos e atuei em municípios próximos atendendo mulheres vítimas de violência sexual e adolescentes em conflito com a lei. Ou seja, saí qualificada não só para a clínica psicológica, com ênfase em psicanálise, humanismo e terapia comportamental, mas segura para atuar em diferentes frentes do mercado de trabalho”, credencia a psicóloga que, como graduanda, também participou de projetos extensionistas nas áreas escolar e organizacional. 


“Comecei a fazer análise online e também passei a fazer meus atendimentos remotos. Minha clientela é que foi me dando os feedbacks e a partir das demandas e da aceitação deles fui me adaptando e constatando a funcionalidade das ferramentas, a depender do perfil e das necessidades apresentadas. Mas nas redes sociais é bom saber diferenciar terapeutas de coaches. Não estamos vendendo conselhos nem fórmulas de felicidade. Temos todo um embasamento científico e teórico para cuidar da saúde mental enfrentando a complexidade que lhe é peculiar, sem sermos simplistas ou superficiais”, Geórgia Feijão, psicóloga formada pela Unifor. 

Entre mestrado e doutorado, foi a verve de pesquisadora que ganhou tônus a ponto de levá-la para a docência, hoje a principal atividade profissional. “Sou coordenadora do curso de graduação em Psicologia de uma faculdade privada em Sobral e hoje nosso principal desafio tem sido justamente formar esse profissional do futuro que de uma hora para outra, diante da pandemia da Covid-19, passou a atender online, por exemplo. O uso excessivo das redes sociais, os testes psicológicos informatizados, a ética necessária para o uso adequado dessas ferramentas, a questão do sigilo que o terapeuta deve ao paciente, a forma como apresenta e divulga transtornos ou seus serviços na internet, tudo isso precisa ser pensado e inserido nos currículos das instituições de ensino, além de debatido urgentemente em sala de aula, à luz do Código de Ética”, defende Geórgia.

Aos 28 anos, a psicóloga Iara Oliveira integra a equipe diretora do Instituto Trêsmares, ONG que atende crianças, adolescentes e mulheres moradoras do bairro Serviluz, na periferia de Fortaleza. Com graduação e mestrado concluídos na Unifor, onde aprofundou estudos e pesquisas em torno de preconceitos e estereótipos sociais, ela tem a docência como profissão do futuro, mas hoje é a psicologia social e comunitária que dá base de sustentação científica a um trabalho coletivo e interdisciplinar que atende a demandas vindas do território e da própria associação de moradores.

“É através de dinâmicas de grupos que identificamos as potencialidades do lugar e tratamos de direitos humanos, promovendo em paralelo o autoconhecimento e as ações em rede. Não era exatamente esse o meu foco enquanto estudante de Psicologia, mas ter sido bolsista de iniciação científica ao longo de quase toda a graduação, com acesso a diversos projetos de extensão, certamente me levou a refletir sobre realidades bem diferentes da minha. No LET - Laboratório de Estudos do Trabalho –, por exemplo, fui conhecer e pesquisar a dinâmica da feira de confecções da rua José Avelino, investigando a qualidade de vida e a saúde mental daqueles trabalhadores. Cheguei até a acompanhar a prática de grupos espíritas, enquanto que, no mestrado, pesquisei sobre as cotas raciais nas universidades.Todas essas experiências me fizeram sair da bolha e acenderam inquietações que já estavam em mim ligadas ao desejo de transformação social”, acredita Iara.

Para ela, atuar como psicóloga e gestora em um território marcado pela vulnerabilidade social é também se perguntar diariamente o pode a Psicologia diante de históricas desigualdades, sobretudo em momentos disruptivos como o da pandemia da Covid-19.

“Não estávamos preparados e não tínhamos repertório para lidar com tantos medos e incertezas. A lógica do home office, o isolamento social, a possibilidade de contaminar e ser contaminado, o luto, tudo isso se instaurou como regra de maneira traumática. Então cuidar da saúde mental em tempos de crises complexas, quando nós mesmos tivemos que nos reinventar enquanto profissionais, adotando os atendimentos online, por exemplo, foi tão desafiador e atordoante quanto revelador”, Iara Oliveira, psicóloga egressa da Unifor. 

Diante do flagrante vazio de políticas públicas capazes de atenuar perdas de ordem econômica e simbólica durante a pandemia, a psicóloga e pesquisadora não deixou de perceber: o preconceito com as Ciências Humanas, historicamente consideradas “menores” ou “desimportantes”, continua se refletindo em parcos incentivos governamentais, assim como foi gritante o desinvestimento do Governo Federal na área da Ciência e Tecnologia. 

“Para completar, ainda tivemos que encarar o paradoxo de perceber a saúde mental como serviço essencial ao mesmo tempo em que não podíamos atuar profissionalmente diante de uma urgência ainda maior: a fome. Isso nos levou a parar tudo para arrecadar cestas básicas e pensar em alternativas de sobrevivência nas comunidades desprovidas de trabalho e renda Agora o momento é de pensar em como tornar os atendimentos psicológicos cada vez mais acessíveis – e não só dentro do âmbito do poder público. Sim, é possível usar as tecnologias para isso, mas também é algo novo para nós. Então precisamos aprimorar esse uso, sempre atentando para a ética, em nome de uma urgente e massiva promoção da saúde mental”, conclui Iara.