seg, 24 maio 2021 10:58
O futuro multifacetado das urbes
Saiba como os estudantes de Arquitetura e Urbanismo pensam o planejamento e a gestão das cidades do futuro
O futuro das grandes metrópoles tem forma e conteúdo: ao invés de simétrico ou padronizado é orgânico e sustentável. Rasurada em seu desenho original, a cidade modernista, fã da lógica industrializada de ordenação do espaço urbano, que outrora achou por bem separar o habitar do trabalhar e do recrear, já não se põe em pé sozinha. Arraigada e em atrito com ela, o que ganha volume na contemporaneidade é uma grita por maior compartilhamento e convívio social – ou a construção de um edifício humanista para melhor viver coletivamente.
Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, Camila Girão aferra: a cidade do futuro é um reflexo da cidade do passado e da cidade do presente. Portanto, não há ruptura radical possível. “A gente tem séculos de desenvolvimento e consolidação de uma maneira de pensar e de conviver nas cidades que não muda tão rapidamente a cada Plano Diretor, por exemplo. Mas os princípios do novo urbanismo requerem um olhar prioritário e urgente sobre questões como regularização fundiária e definição de áreas frágeis para melhorar a qualidade de vida tanto do ponto de vista da habitação quanto do espaço público. A lógica de reinvestir em espaços já qualificados só alimenta e estimula a retenção especulativa e a supervalorização do solo em algumas áreas urbanas em detrimento de outras”, observa.
Camila Girão, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unifor (Foto: Ares Soares)
É a partir da década de 1960, segundo a professora, que o protagonismo do espaço público volta a ser diretriz no escopo do planejamento urbano. “Essa ideia da retomada do convívio social e da organização do espaço público e natural como coração da sociedade, defendida por várias correntes, ganha destaque com a autora e ativista política americana Jane Jacobs, que, nesse período, construiu todo um raciocínio da vida coletiva, de que cidade saudável é feita pelo movimento de pessoas nas ruas e mais: que as pessoas são ‘olhos nas ruas’, promovendo a segurança e fazendo do espaço público o lugar do debate e do conflito... ela, enquanto formadora de opinião, empunhou essa bandeira em plena Nova Iorque, representando a sociedade civil americana e num enfrentamento direto com gestores locais que visavam expulsão de pessoas da área do centro da cidade para erguer novas edificações de valor imobiliário dentro da lógica capitalista da ilha de Ilha de Manhattan... nasce daí esse novo olhar que visa espaços mais igualitários e infraestruturas distribuídas de forma mais equilibrada nas cidades”, contextualiza Camila.
Para ela, a pandemia da Covid-19 só vem consolidar tendências projetadas desde então, apontando, em última instância, para o direito à cidade. “As cidades do mundo que já partiam desse princípio da qualificação do espaço coletivo como estruturadora do planejamento urbano tiveram maior capacidade de se recuperar de um contexto de isolamento e de tornar possível a retomada do convívio social e das atividades econômicas de uma maneira muito mais tranqüila diante de cidades que predominantemente tinham o espaço urbano desigual. Então, a proteção ambiental relacionada à interação das atividades urbanas é um ponto chave quando a gente pensa a cidade. Isso também vale para a habitação. É preciso pensar em espaços com salubridade e também em ações para cessar o estoque imobiliário que permanece vazio ou subutilizado... Mas o direito à moradia e essa cidade para todos, que fortalece os princípios da igualdade e solidariedade, passa pela condição de decidir como as cidades podem ser produzidas e direcionadas. O processo de planejamento urbano deve ser, portanto, coletivo e participativo, um direito amplo e essencial”, enfatiza.
Valorização do espaço público sim, mas também políticas públicas ligadas ao planejamento urbano para tornar as cidades do futuro menos desiguais e desagregadoras. “A política ambiental relacionada à política habitacional é talvez um dos principais desafios que temos pela frente... Há de se entender que as áreas ambientalmente frágeis devem ser protegidas, mas não podem estar reclusas do convívio das pessoas. Então, investimentos em grandes parques e áreas verdes de menor escala ou praças comunitárias devem vir com o envolvimento direto das pessoas na consolidação desses espaços, o que culmina na produção coletiva do espaço”, frisa Camila.
Em termos de planejamento urbano, acrescenta, nada é pontual e tudo está interligado: a proteção das calçadas, o acesso universal para todos circularem amplamente nos espaços públicos, as políticas de mobilidade mais inclusivas, o transporte público tratado como artifício que oriente o uso e ocupação do solo, os tipos de transportes não motorizados, a ampliação da malha cicloviária contínua. “São várias frentes, mas o que ainda nos falta é um planejamento embasado numa vontade mais coletiva, capaz de organizar os equipamentos públicos urbanos de acordo com as reais demandas das pessoas. Há de se ter centralidades urbanas mais próximas, onde o deslocamento casa-trabalho seja menor e os equipamentos comunitários básicos, como escolas, postos de saúde, creches, centros de arte e cultura ou igrejas estejam à mão, afirmando o adensamento e não a dispersão urbana”, conclui.
Estude na Universidade de Fortaleza em 2021.2
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A paisagem porvir
Olhar para o próprio quintal, ao invés de importar modelos. Para a criadora da disciplina de paisagismo do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Unifor, professora Fernanda Rocha, a cidade do futuro terá que respeitar suas preexistências (naturais e humanas), lembrando que tudo é paisagem. “Trata-se de uma visão integrada e integradora: devemos integrar o meio ambiente, valorizar fauna e flora, rios, árvores, espaços livres e construídos, públicos e privados, costumes e práticas culturais. A ideia é tratar as cidades de modo mais sensível, com intervenções urbanas menos pontuais e mais comprometidas com todo nosso suporte biofísico. Precisamos atentar que nossas necessidades enquanto seres humanos são apenas algumas entre aquelas de outros tantos seres vivos e que, se formos de fato inteligentes, saberemos que nossas ações podem sim ser compatibilizadas com as demais”, defende.
Fernanda Rocha é coordenadora do Laboratório de Paisagem do curso de Arquitetura da Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)
Como coordenadora do Laboratório da Paisagem, a preservação do patrimônio natural e paisagístico local é outro desafio que Fernanda identifica no presente e projeta para o futuro, já que a natureza, ao contrário da arquitetura, não finda a sua “obra” viva e mutante. “A cidade é morada e assim devemos tratá-la. Portanto, é necessário compreender as morfologias espaciais, as características socioambientais, as linguagens paisagísticas e o paisagismo brasileiro para intervirmos ou não paisagem, com toda humildade. Refletimos muito sobre isso no curso de arquitetura e urbanismo da Unifor através de projetos de pesquisa que vão desde o estudo dos jardins de Roberto Burle Marx em Fortaleza até a catalogação de espécies vegetais nativas para uso na arborização urbana, considerando seus componentes arbóreos, as condicionantes ambientais e as questões de sustentabilidade em geral”, sublinha a arquiteta que sonha, dentro e fora de sala de aula, com uma Fortaleza cada vez mais arborizada, sombreada, caminhável e de clima ameno.
Sonho que não sonha sozinha. Aluno do 9º semestre da graduação em Arquitetura e Urbanismo, Paulo Henrique Sá Jr. é o “pupilo” que se deixou fisgar pela complexidade da arquitetura paisagística casada ao interesse por patrimônio histórico. Autor de um TCC que lança mão da primeira planta técnica cartográfica do Passeio Público para propor sua requalificação, ele resume em uma palavra o que deve marcar e guiar a construção coletiva da cidade do futuro: sustentabilidade. “O homem contemporâneo vai descobrir que devastar a natureza foi uma herança maldita deixada pela revolução industrial, algo que só fez mal a si mesmo. Vejamos aqui em Fortaleza: a avenida Heráclito Graça tem o rio Pajeú por baixo dela e esse tipo de aterramento é um dos fatores responsáveis pelas ilhas de calor que se espalham pela cidade. A ordem, portanto, é não mais passar por cima, mas passar junto de. O mundo já aprendeu isso”, alerta.
Paulo Henrique Sá Jr, aluno do curso de Arquitetura e Urbanismo (Foto: Arquivo pessoal)
Foco na “renaturalização” da cidade e no reaproveitamento dos edifícios construídos, ao invés de botar abaixo prédios e malha viária para construir algo novo. A cidade sustentável do futuro, que quer diminuir os impactos ambientais e os gases poluentes, também reivindica: “por que não planejar uma cidade para o pedestre e sim para os carros? Por que não priorizar a mobilidade não motorizada, como a bicicleta, ou abrir mais linhas de metrô? A tendência contemporânea é, ao invés de continuar a rasgar as cidades com largas avenidas, aumentar a extensão das calçadas ou criar parklets como áreas de estar para os pedestres e ciclistas. Uma cidade para as pessoas também deve proporcionar um amplo campo de visão e ser mais baixa, com prédios de no máximo cinco andares, promovendo a sensação de inclusão no espaço urbano, algo que se perde quando a maioria mora ou trabalha no vigésimo quinto andar. Do alto, não se vive a cidade e você não se sente incluído ou participando dela”, reflete o estudante que lê na cartilha de Jane Jacobs, Jan Gehl e François Ascher.
E vale a advertência: para se alcançar um desenvolvimento sustentável, segundo Paulo, não basta apenas plantar árvores inadvertidamente. “Uma das maiores causas de perda de sustentabilidade é a presença de espécies exóticas e invasoras no ambiente. O nim indiano, por exemplo, trazido para a área verde do Parque do Cocó, sufoca o ipê, uma espécie nativa, causando um impacto ambiental negativo e um choque em toda a cadeia. Ser sustentável não é simplesmente abrir praças e parques sem planejamento paisagístico. Há de se atentar para o equilíbrio do ecossistema”, afirma. A lição vale para o patrimônio histórico material. “Um edifício de 1951, como o São Pedro, na Praia de Iracema, que é o 'abre-alas' da nossa orla, quando se vê rodeado de arranha-céus parece estar ali como um alienígena, porque deixa de dialogar com o entorno e destoa do contexto urbano, sendo por isso facilmente derrubado. É preciso então que a cidade do futuro respeite o seu passado”, ensina o estudante.
Outros modos do viver
Na Universidade de Fortaleza, as estratégias de construção da cidade do futuro também fervilham e são postas à prova no Mestrado Profissional em Ciências da Cidade. Sob coordenação da arquiteta e professora Cristina Romcy, é lá que estudantes oriundos da arquitetura, engenharias e tecnologias se dedicam à compreensão interdisciplinar do espaço urbano em seus mais diversos aspectos a fim de desenvolver de forma sistemática e metódica atividades relacionadas ao planejamento e gestão urbana.
Professora Cristina Romcy, coordenadora do Mestrado Profissional em Ciências da Cidade (Foto: Ares Soares)
Foco na potencialidade das urbes para a inovação e a criatividade, na intrincada lógica da mobilidade urbana, nas ações integradas e sustentáveis que visam a qualidade ambiental, nas nuances políticas do Direito Ambiental e Urbano, nos desafios intrínsecos a uma política habitacional e de acessibilidade, nas novíssimas tecnologias que guiam as cidades inteligentes. “A população está cada vez mais urbana. Portanto, alinhar desenvolvimento com sustentabilidade em cidades compactas e diversas é o modelo de funcionalidade perseguido. Todas as ideias e ações devem convergir para o compartilhamento do uso do solo e de equipamentos e espaços urbanos com serviços diversificados, acessíveis à maioria das pessoas”, pontua Cristina.
Para ela, a pandemia deixou evidente o que não queremos: um modelo de metrópole em que somente uma privilegiada parcela da população tem acesso à habitação de qualidade ou a serviços e infraestrutura urbana. “Com o lockdown e diante do imperativo do 'fique em casa' as desigualdades sociais ficaram muito mais evidentes, nos fazendo rever modos de morar e conviver. O mundo inteiro passou a discutir isso e essas cidades do futuro terão que ser repensadas e construídas coletivamente, na contramão do individualismo e da segregação. As políticas públicas precisam vir junto com o que já vem sendo tema de pesquisas: normas sanitárias estruturantes, o direito à habitação e questões relacionadas ao saneamento urbano e à escassez da água terão que ser enfrentadas, com foco nos mais vulneráveis”, reivindica.
Egresso do mestrado profissional em Ciências da Cidade, o engenheiro civil Euclides Castelo já põe o conhecimento científico a serviço da vida urbana: sua dissertação propôs um planejamento eficiente para o reuso de águas residuárias na própria Universidade de Fortaleza. “O sistema de tratamento de esgoto não gera água potável, mas uma água residuária que pode ser utilizada na agricultura, na irrigação de paisagismo, nas reservas de incêndio, isso dependendo da qualidade do nível de tratamento. E como temos um paisagismo exuberante na Unifor, com um suposto consumo elevado de água, então propus fazer o tratamento de esgoto das nossas estações em um nível um pouco mais elevado do que já é feito, de tal forma que pudesse utilizar no paisagismo”, explica.
Euclides Castelo, egresso do Mestrado Profissional em Ciências da Cidade (Foto: Arquivo pessoal)
Frise-se: desde 1997 a Unifor se vale da tecnologia de bifurcação, com sistemas de abastecimento de água potável e água bruta em alguns blocos para diferentes tipos de utilização. “Sabemos que a potável é para abastecer bebedouros, lavatórios e chuveiros e a bruta para mictórios e paisagismo. O bloco T, depois o bloco K, M, D, B, todos os novos foram dotados com essa tecnologia. Acontece que colhendo a água bruta de poços e da lagoa. Então pensei em tratar o esgoto utilizando eletro-oxidação e eletrocoagulação para a reutilização nas instalações. Estados Unidos, Europa, Israel já se valem de tecnologias para reuso de água. É um conceito aplicado nas chamadas smart cities, justamente as “cidades do futuro”, afirmando uma visão de alta sustentabilidade”, defende Euclides.
Segundo ele, a ideia a ser aplicada na Unifor também já caberia bem em Fortaleza. “Nossa cidade tem várias estações de esgoto com um nível de tratamento muito baixo, tanto assim que o efluente tratado polui os mananciais dos rios quando lançados lá. Tudo porque não há tratamento em nível terciário. Essa tecnologia de tratamento que propus é de alto nível e fácil de acoplar nas estações de tratamento. Assim, a Cagece estaria disponibilizando água para a irrigação de praças, parques, áreas verdes ou para lavar ruas e como reserva de incêndio do Corpo de Bombeiros. Ao invés de gastar água potável utilizaria água de reuso”, sugere.
Por cidades criativas e participativas
A cidade do futuro também quer ser criativa, refletindo modos espontâneos de convívio social e usos fora dos padrões ou extra-oficias dos territórios urbanos. Antenada com tal tendência e recém-graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Fortaleza, Maria Paula Arcanjo Medeiros tem no topo do seu portfólio de trabalho o próprio TCC: “Amplifica: a arquitetura como suporte para as ocupações não-hegemônicas do espaço público” é um projeto que cria estruturas interativas e móveis para acolher trabalhos e manifestações artísticas de coletivos locais ou de indivíduos que se valem do direito à cidade e do livre uso das áreas livres e comuns para interações de ordem simbólica.
Maria Paula Medeiros, recém-formada em Arquitetura e Urbanismo pela Unifor (Foto: Ares Soares)
“A estrutura criada possui a capacidade de ser montada, transportada e desmontada, de forma rápida e dinâmica, possibilitando que o módulo atenda as demandas e as necessidades dos artistas. E partiu de uma reflexão sobre as possibilidades de experimentação de linguagens híbridas, envolvendo as relações entre arquitetura, urbanismo e o corpo do cidadão, no sentido mesmo de abrir frestas para se pensar de forma criativa e viva o futuro das cidades e a atuação contemporânea do arquiteto-urbanista interessado em criar novas possibilidades espaciais para incentivar e dar suporte às interações cotidianas e eventos culturais. Essa intervenção teve como base teórica o estudo das relações não-hegemônicas entre o indivíduo e a cidade, as formas e os espaços não convencionais ou oficiais, explorando a interligação entre o espaço público e a cultura urbana”, esmiúça Maria Paula.
Quando estudante de arquitetura, ela também integrou o grupo de pesquisa intitulado “Metodologia para implementação das ZEIS na cidade de Fortaleza”. Experiência que a fez perceber o quão fundamental para o futuro das cidades é a participação popular enquanto ferramenta de análise para a requalificação de espaço público. “As cidades, com seus múltiplos usos, é plural e não abstrata. Então, essa atuação insurgente de artistas, ativistas políticos ou lideranças comunitárias no espaço público vai de encontro justamente à política liberal de planejamento urbano de cima para baixo, aquele que não ouve as pessoas, seus desejos e necessidades, antes de intervir. Daí porque a valorização e apropriação do território já não parte somente dos governos. As pessoas já não aceitam mais essa leitura imposta da paisagem e querem participar dos processos de requalificação territorial, além de criar por conta própria sua própria política de ocupação e uso dos lugares. O olhar do planejador tem que estar atento a isso e respeitar as experiências cotidianas vividas”, encerra.